Um tradutor profissional é alguém que vive da escrita... dos outros. Nesse sentido é um parasita que consome os sumos criativos alheios e, qual Humpty Dumpty sobre o muro do debate, balança-se na dicotomia entre plot e linguagem, substância e forma, prestes a quebrar-se ao menor encontrão. Se, de facto, entendemos que há muitas maneiras de contar a mesma história, umas melhores do que outras, mas todas tendo como bitola do sucesso a solidez da trama que lhes empresta o esqueleto que vão vestir com as teias da linguagem, então o tradutor é como uma aranha que vai apenas tentar remendar o máximo possível os rasgões que se abriram, os fios que se quebraram, os sentidos que se rasgaram na passagem de uma língua a outra. Se, pelo contrário consideramos que a forma tem a primazia, sendo a história apenas um pretexto para luzir os artifícios linguísticos, então o tradutor esvazia-se de sentido, pois a sua tradução nada terá a ver com os artifícios linguísticos próprios de quem primeiro escreveu.
É fácil, por isso, sobrevalorizar o trabalho do tradutor... considerar que aquilo que o tradutor faz é escrever uma nova "versão" daquilo que o autor fez na sua língua: mas nenhum engano seria tão vácuo. O século XIX português assistiu a uma febre de traduções: Camilo traduziu - desastrosamente - LE DIABLE AMOUREUX de Cazotte; Eça lançou-se às KING SOLOMON'S MINES de Haggard, assinando uma tradução que ainda hoje é vendida pela Europa-América como sendo superior ao original. Fatal ilusão: se há algo que a tradução não pode ser nunca é superior ao original: o máximo a que pode aspirar, será à máxima fidelidade ao original - a fazer-nos sentir que estamos a ler o livro tal como o leríamos se ele tivesse sido escrito na nossa língua. Aí, todo o mérito é do tradutor.
Por isso, é também fácil subvalorizar o trabalho do tradutor.
A triste realidade, porém, é que o texto original tem que estar à altura das ambições de quem traduz. O mesmo é dizer, só um grande livro permite uma grande tradução; todos os demais não podem ambicionar a mais do que a não trair a fonte.
Mas o que quero dizer com isto de "um grande livro" no presente contexto (e só no presente contexto)? É simples: um livro que, à semelhança de Joyce, peça emprestada uma língua e a enriqueça um pouco. Que lhe torça um pouco a gramática, que lhe verbalize um bocado os substantivos, que lhe negue um pouco da sua rigidez. Os exemplos não são muitos: Eça, sem dúvida, construiu a melhor literatura portuguesa; Dias Gomes fez do brasileiro um prazer inigualável de se ouvir; King emprestou ao inglês o vernáculo da cultura popular. Há outros autores canónicos que tiveram ainda mais impacto - e se calhar mais mérito - Joyce, Proust, Hemingway e até Saramago (que acabou de vez com as regras e convidou a um divórcio com a literatura).
Se há género literário capaz de fazer brilhar um tradutor é a Ficção Científica, que foi sem dúvida o género que mais contribuiu para engordar os dicionários: robô, robótica, ciberespaço, andróide ou ciborgue são palavras que ou foram criadas por autores de FC, ou foram por eles popularizadas, entrando no falar do quotidiano.
Mas nem todas as obras de FC podem aspirar a ser "um grande livro", no sentido acima proposto. Mas uma é-o certamente: A LARANJA MECÂNICA, um tour de force literário que alia uma proposição fascinante - o método Ludovico - a uma inovação linguística - um novo calão, construído essencialmente a partir do inglês e do russo e que é utilizado pelo personagem principal (e narrador) ao longo de todo o livro. O resultado é fascinante, hipnótico, convincente, genial. É um daqueles livros - FEERSUM ENDJINN de Banks é outro - que realmente necessita de um excelente tradutor para sobreviver numa língua diferente.
A LARANJA MECÂNICA, publicada pelas Edições 70 em 1974 encontrou em José Luandino Vieira, um tradutor à altura da hercúlea tarefa: tanto mais que a tradução foi levada a cabo sob vigilância da P.I.D.E., com o tradutor a contrabandear os capítulos traduzidos para um igreja, onde se encontrava com o seu editor. A edição que ilustra este post (2ª edição de Setembro de 1974, hardback) representou um dos meus primeiros contactos com a literatura de FC a sério (daquela que "trata de assuntos mais profundos", como dizia o outro). Foi no primeiro ano de universidade, por intermédio do Pedro Marques que possuía ele próprio um exemplar, e com quem passava horas a ler em voz alta o texto magnífico da tradução, saboreando os ritmos e cadências da linguagem, o ímpeto da narrativa e - coisa que praticamente não se voltou a repetir - esquecendo que o livro não tinha sido escrito em português.
Por tudo isso, e no que a mim me toca, A LARANJA MECÂNICA é o santo graal da tradução de FC em Portugal, inexcedível e inigualado desde então. Uma fasquia demasiado alta, ou um desafio irrecusável, mas um marco que está no caminho e que devia ser de leitura obrigatória em qualquer curso de tradução.
4 comentários:
Boa noite João,
Aproveitar enquanto não chove para vir ler as novidades da blogosfera!
Já vi o filme há algum tempo, e gostei, gosto muito do Kubrick, e penso que foi um filme que quebrou a normal do cinema da altura.
Sei que existe um exemplar algures na familia, mas gostava de ter o meu.
Obrigado,
Bom fim de semana!
Olá, gracioso Mestre! Resta saber se essa tua edição da LARANJA MECÂNICA contem o último capitulo, o capitulo maldito que o Kubrik não incluiu no filme e que tb está ausente da edição da Pinguin. Ora é precisamente nesse capítulo que assistimos à mecanização do nosso Alex, pois, se não podemos vencê-los, aliemo-nos a eles. Alex acomoda-se. Alex arranja emprego. Alex abandona o gangue por tédio. Alex torna-se adulto e salariman. Alex faz tictac...
Olá Miguel e Barreiros.
Pois não, meus caros, a "nossa" edição da Laranja Mecânica não termina com o capítulo do nosso Alex a tictactear. Tem o fim "clássico": "Quanto a estar curado lá isso estava".
Quanto à adaptação do Kubrick, um excelente filme de FC a todos os níveis e um objecto cinemático ímpar, mas que funciona como mútuo complemento ao DR. STRANGELOVE, nada melhor do que dar a palavra a Kubrick numa entrevista a Michel Ciment que, precisamente lhe perguntava do porquê de não ter filmado o final do livro original:
"There are two different versions of the novel. One has an extra chapter. I had not read this version until I had virtually finished the screenplay. This extra chapter depicts the rehabilitation of Alex. But it is, as far as I am concerned, unconvincing and inconsistent with the style and intent of the book. I wouldn't be surprised to learn that the publisher had somehow prevailed upon Burgess to tack on the extra chapter against his better judgment, so the book would end on a more positive note. I certainly never gave any serious consideration to using it."
Update:
Já o tenho na mão(o tal que andava na familia), e ficou para mim, é a edição que aqui mostras!
Abraço
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