domingo, 30 de novembro de 2008

Um livro por dia: 2 FÁBULAS TECNOCRÁTICAS



Quando nos propomos explorar uma série contada de títulos, é sempre difícil escolher com qual terminar. Por um qualquer motivo que se prende com a tentação inata de colocarmos uma ordem onde esta é apenas ilusão, o último é a apoteose... o grand finale. Mas como escolher um entre centenas e dizer que este é de facto superior a todos os outros? É intuito a que me não atrevo. Mas como é preciso escolher um título para terminar, nenhum me parece mais oportuno do que este 2 FÁBULAS TECNOCRÁTICAS de João Barreiros.

Publicado em 1977, em edição de autor, este pequeno volume (apenas 34 páginas) marca de certa forma a estreia pública de João Barreiros enquanto autor de Ficção Científica. Só isso já justificaria a sua inclusão neste carrossel da nostalgia. Mas o mais interessante são as circunstâncias da sua publicação, no ano em que a Ficção Científica tomou de assalto o mundo através das fantasias tecnológicas de George Lucas: vendido na rua, à entrada do metro, por um amigo entusiasta em cadeira de rodas - que teve a iniciativa da publicação - não podia encontrar raízes mais simbólicas para aquela que viria a ser uma das obras mais fascinantes da literatura fantástica portuguesa, espalhada por títulos como O CAÇADOR DE BRINQUEDOS E OUTRAS HISTÓRIAS (1994), TERRARIUM (1995, com Luís Filipe Silva), A VERDADEIRA INVASÃO DOS MARCIANOS (2002), DISNEY NO CÉU ENTRE OS DUMBOS (2006), O PROJECTO CANDYMAN (2007) e uma série de textos avulsos, dos quais me merecem especial destaque os dois artigos que integram o grande volume que acompanhou o CICLO DE CINEMA DE FICÇÃO CIENTÍFICA da Cinemateca/Gulbenkian (1984).

Autor de fractura, visto por uns como o melhor autor nacional de FC, por outros como alguém que conta sempre a mesma história (bom, não era isso que Goddard dizia que distinguia os grandes génios?), é pelo menos o único autor actualmente no activo que podemos considerar que escreve uma ficção científica genuinamente portuguesa - esperem, não desembainhem já as facas, vou explorar esta ideia num post a publicar nos próximos dias, à laia de ensaio para posterior desenvolvimento.

Há muitas razões que levam alguém a optar pela edição de autor: tornar público um texto de interesse limitado mas que não queremos deixar na gaveta, escoar algo que ninguém considera digno de publicação, ou simplesmente querer fugir dos sistemas tradicionais de edição e distribuição. O advento de serviços como o que são prestados pela Lulu.com vieram facilitar a tarefa de auto-publicação, removendo algumas das dificuldades que as gráficas tradicionais implicavam (não só custos, como estudos prévios de capa, etc.). No entanto, há ainda algo de pioneiro, de aventureiro no método de auto-publicação em stencil, ou por fotocópia, uma magia amadora que fala bem lá do fundo da vontade individual.

Gosto de pensar que estas duas fábulas, compostas na Tipografia Monarca, na Amadora, contendo ainda em bruto o inconfundível estilo Barreiros, são uma manifestação da vontade de começar sem empurrões de ninguém. Cotoveladas desferidas para abrir lugar, marcar presença e apontar o futuro.

O futuro é, afinal, o nosso domínio...


sábado, 29 de novembro de 2008

Um livro por dia: A LARANJA MECÂNICA



Um tradutor profissional é alguém que vive da escrita... dos outros. Nesse sentido é um parasita que consome os sumos criativos alheios e, qual Humpty Dumpty sobre o muro do debate, balança-se na dicotomia entre plot e linguagem, substância e forma, prestes a quebrar-se ao menor encontrão. Se, de facto, entendemos que há muitas maneiras de contar a mesma história, umas melhores do que outras, mas todas tendo como bitola do sucesso a solidez da trama que lhes empresta o esqueleto que vão vestir com as teias da linguagem, então o tradutor é como uma aranha que vai apenas tentar remendar o máximo possível os rasgões que se abriram, os fios que se quebraram, os sentidos que se rasgaram na passagem de uma língua a outra. Se, pelo contrário consideramos que a forma tem a primazia, sendo a história apenas um pretexto para luzir os artifícios linguísticos, então o tradutor esvazia-se de sentido, pois a sua tradução nada terá a ver com os artifícios linguísticos próprios de quem primeiro escreveu.

É fácil, por isso, sobrevalorizar o trabalho do tradutor... considerar que aquilo que o tradutor faz é escrever uma nova "versão" daquilo que o autor fez na sua língua: mas nenhum engano seria tão vácuo. O século XIX português assistiu a uma febre de traduções: Camilo traduziu - desastrosamente - LE DIABLE AMOUREUX de Cazotte; Eça lançou-se às KING SOLOMON'S MINES de Haggard, assinando uma tradução que ainda hoje é vendida pela Europa-América como sendo superior ao original. Fatal ilusão: se há algo que a tradução não pode ser nunca é superior ao original: o máximo a que pode aspirar, será à máxima fidelidade ao original - a fazer-nos sentir que estamos a ler o livro tal como o leríamos se ele tivesse sido escrito na nossa língua. Aí, todo o mérito é do tradutor.

Por isso, é também fácil subvalorizar o trabalho do tradutor.

A triste realidade, porém, é que o texto original tem que estar à altura das ambições de quem traduz. O mesmo é dizer, só um grande livro permite uma grande tradução; todos os demais não podem ambicionar a mais do que a não trair a fonte.

Mas o que quero dizer com isto de "um grande livro" no presente contexto (e só no presente contexto)? É simples: um livro que, à semelhança de Joyce, peça emprestada uma língua e a enriqueça um pouco. Que lhe torça um pouco a gramática, que lhe verbalize um bocado os substantivos, que lhe negue um pouco da sua rigidez. Os exemplos não são muitos: Eça, sem dúvida, construiu a melhor literatura portuguesa; Dias Gomes fez do brasileiro um prazer inigualável de se ouvir; King emprestou ao inglês o vernáculo da cultura popular. Há outros autores canónicos que tiveram ainda mais impacto - e se calhar mais mérito - Joyce, Proust, Hemingway e até Saramago (que acabou de vez com as regras e convidou a um divórcio com a literatura).

Se há género literário capaz de fazer brilhar um tradutor é a Ficção Científica, que foi sem dúvida o género que mais contribuiu para engordar os dicionários: robô, robótica, ciberespaço, andróide ou ciborgue são palavras que ou foram criadas por autores de FC, ou foram por eles popularizadas, entrando no falar do quotidiano.

Mas nem todas as obras de FC podem aspirar a ser "um grande livro", no sentido acima proposto. Mas uma é-o certamente: A LARANJA MECÂNICA, um tour de force literário que alia uma proposição fascinante - o método Ludovico - a uma inovação linguística - um novo calão, construído essencialmente a partir do inglês e do russo e que é utilizado pelo personagem principal (e narrador) ao longo de todo o livro. O resultado é fascinante, hipnótico, convincente, genial. É um daqueles livros - FEERSUM ENDJINN de Banks é outro - que realmente necessita de um excelente tradutor para sobreviver numa língua diferente.

A LARANJA MECÂNICA, publicada pelas Edições 70 em 1974 encontrou em José Luandino Vieira, um tradutor à altura da hercúlea tarefa: tanto mais que a tradução foi levada a cabo sob vigilância da P.I.D.E., com o tradutor a contrabandear os capítulos traduzidos para um igreja, onde se encontrava com o seu editor. A edição que ilustra este post (2ª edição de Setembro de 1974, hardback) representou um dos meus primeiros contactos com a literatura de FC a sério (daquela que "trata de assuntos mais profundos", como dizia o outro). Foi no primeiro ano de universidade, por intermédio do Pedro Marques que possuía ele próprio um exemplar, e com quem passava horas a ler em voz alta o texto magnífico da tradução, saboreando os ritmos e cadências da linguagem, o ímpeto da narrativa e - coisa que praticamente não se voltou a repetir - esquecendo que o livro não tinha sido escrito em português.

Por tudo isso, e no que a mim me toca, A LARANJA MECÂNICA é o santo graal da tradução de FC em Portugal, inexcedível e inigualado desde então. Uma fasquia demasiado alta, ou um desafio irrecusável, mas um marco que está no caminho e que devia ser de leitura obrigatória em qualquer curso de tradução.


sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Um livro por dia: OS HOMENS-LEÕES DE MONGO



Recordo-me de ver os seriados com as aventuras de Flash Gordon na televisão, lá para finais dos anos 70. Todo aquele visual retro-futurista à anos trinta e quarenta prestava-se maravilhosamente à imitação. Lembro-me de transformar o hall de entrada lá de casa na ponte de comando da nave fusiforme de Gordon, e a partir daí travar batalha com os esbirros do impiedoso Ming (ora o meu irmão, ora eu próprio, numa virtuosa multiplicação imaginária).

Por isso, não é surpresa que um dos meus livros preferidos fosse FLASH GORDON - OS HOMENS-LEÕES DE MONGO, primeira história de Alex Raymond publicada pela Portugal Press na sua Colecção Aventura, um conjunto de títulos fascinantes e claramente destinados ao público juvenil. Para além de Flash Gordon, a Aventura publicou ainda O SINISTRO DR. FU-MANCHU de Sax Rohmer e A FLECHA NEGRA de Robert Louis Stevenson.

Este volume, dado à estampa em 1975, tem capa de Carlos Alberto, ilustrador habitual das edições da Portugal Press e da Agência Portuguesa de Revistas, e que para mim permanecerá para sempre associado às maravilhosas capas e ilustrações que assinou para a revista ZAKARELLA (de Roussado Pinto).

Por seu lado, FLASH GORDON é, e permanecerá, um ícone imperecível da Ficção Científica e do imaginário pulp, tendo vivida uma e outra aventura em praticamente todos os meios de entretenimento - dos comics aos seriados, da rádio ao cinema, da animação à televisão, dos romances aos jogos de computador, renovando-se a cada passo mas nunca ultrapassando a magia das pranchas assinadas por Raymond, de cujo estilo a contra-capa nos oferece um exemplo.

A nostalgia não consegue ser mais agridoce do que isto.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Um livro por dia: A VOZ DE PANOR




No extremo oposto das luxuosas edições da Gradiva, encontravam-se as "revistas pulp" publicadas quinzenalmente pela saudosíssima Agência Portuguesa de Revistas, uma das experiências editoriais mais notáveis do nosso século XX português. A APR publicava de tudo - literalmente de tudo - tendo sido uma das pioneiras na publicação de Banda Desenhada, guias de TV, revistas femininas, e tudo mais que um leitor pudesse querer ler.


Com autores portugueses a escreverem sob pseudónimos anglo-saxónicos e um ritmo de publicação alucinante, as várias colecções de "livrinhos" da APR, com o seu inviolável e religiosamente controlado número de páginas, e escrita a condizer com esse limite, foi o mais próximo que alguma vez estivemos da experiência genuinamente pulp dos anos 30 americanos. No entanto, foram nuestros hermanos quem duplicou essa experiência, assinando milhares de títulos que foram publicados nas diversas colecções: FBI, 6 Balas, M. L. Estefânia, ZZ7 (um dos meus favoritos, e com uma ligação muito próxima ao Brasil, onde Benício elaborou capas deslumbrantes para os cerca de 500 títulos assinados por Lou Carrigan/Antonio Vera Ramirez), Kung Fu, e muitas outras.


Efectivamente, eram de autores espanhóis as dezenas de títulos publicados nas colecções Galáxia 2001 e Terror que surgiram nos escaparates em 1980 e desapareceram em 1984. Em 1987, a Agência Portuguesa de Revistas deixou de laborar, antes de ser declarada falida em 1988. Praticamente ao mesmo tempo, ali ao lado em Espanha tombava o gigante editorial Bruguera, "parceira" da APR, o que explicava este tremendo predomínio dos autores castelhanos.


À semelhança dos pulps originais e dos seus predecessores, nenhum dos volumes é particularmente memorável ou facilmente olvidável. Com as suas religiosas 126 páginas de ritmo endiabrado, era fácil ler dois ou três nas pachorrentas tardes de Verão, o que era facilitado pelo preço relativamente acessível (este A VOZ DE PANOR, custava 30$oo). E, no entanto, alguns títulos apresentavam ideias interessantíssimas, diálogos que fariam a inveja de Tarantino e cenários que empalideceriam um Cecil B. DeMille da série B que os quisesse adaptar ao cinema. Literatura popular para leitores pouco exigentes, ou condensado de ideias que pediam para ser melhor exploradas, cumpriam o que deles se esperava e, por vezes, iam muito além do que nos era prometido.


quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Um livro por dia: A LONGA TARDE DA TERRA



A última grande tentativa de criar uma colecção de FC capaz de aliar primorosos critérios de selecção dos títulos com uma soberba apresentação de livro-objecto de prazer, foi sem dúvida a malograda Colecção Contacto da Gradiva (1986-1988), que se ficaria pelos quatro volumes [3 publicados em 1986 e o quarto, a primeira tradução a nível mundial de Neuromancer (1984) de William Gibson, em 1988]. Mas que volumes: uma arrojada história alternativa de Harry Harrison, uma magnífica e distópica sátira política de Frederik Pohl, e um olhar glauco sobre uma terra futura e tropical, num sistema solar em fim de vida, assinada por Brian Aldiss. Não é, portanto, de surpreender encontrarmos o bem conhecido nome de João Barreiros ao leme da empreitada.

Aliando a escolha exemplar de títulos correspondentes a pontos altos da carreira dos seus respectivos autores a um cuidado aspecto gráfico, ao qual não falta mesmo um raro (e à data ainda mais do que hoje) recurso à "capa dura", a Contacto devia ter sido o culminar de um percurso incerto na evolução do conceito de "colecção de FC" em Portugal e, a partir daí, o parâmetro a seguir. Claro que não foi assim, e a colecção desapareceu ao fim de pouco tempo, para experimentar uma efémera sobrevivência no circuito das feiras do livro, que foi onde adquiri os meus exemplares, a um preço mais aceitável do que a exorbitância que então era cobrada em livraria, entre os quais se conta este A LONGA TARDE DA TERRA.

Lembro-me de o comprar num fim de tarde de verão, em plena época de exames, depois de o mesmo me ter sido recomendado, uma e outra vez, pelo Pedro Marques que o devorou com verdadeiro deleite de leitura. Comecei a lê-lo no MacDonald's que substituiu o velho Café Imperial na baixa do Porto, eu próprio deliciado por encontrar, para além do prometido livro, um excelente ensaio introdutório de Joseph Milicia, da Universidade do Wisconsin, que me despertaria o interesse e o entusiasmo pelo ensaísmo e pela crítica literária.

A LONGA TARDE DA TERRA, ficaria para sempre associado na minha memória a essa longa tarde de Verão no Porto, a umas horas de abstracção das minúcias do Direito Administrativo e das Finanças Públicas, e ao prazer da descoberta de um autor que então era para mim desconhecido, e que hoje é um dos meus predilectos.

A Contacto foi o último fôlego no esforço de estabelecer uma tradição de leitura de FC através de uma colecção de volumes de luxo, dignos de figurar em qualquer biblioteca e capazes de ultrapassar o preconceito adverso que parece marcar o género como anátema; foi, também, a última das colecções "extravagantes", das colecções que vicejaram brevemente, procurando demarcar-se do (ou suplantar o) padrão Argonauta, antes de caírem no esquecimento e na morte prematura. Enquanto tal, foi sem dúvida um dos esforços mais dignos e meritórios, que não logrou o apoio da própria editora e do público leitor. O seu desaparecimento poderia ter sido dramático, de tal forma as duas principais colecções de FC (Argonauta e FC Bolso da Europa-América) se estavam a tornar complementares, sem abrirem espaço a autores alternativos, não fora o ter deixado espaço à terceira das colecções de referência do panorama nacional: a Colecção Azul da Caminho.

O resto, como costuma dizer-se, é história, e estes quatro volumes têm o seu lugar obrigatório em qualquer biblioteca do fantástico que se preze, perfilando-se como exemplo e memória de uma época que não mais se repetirá.


terça-feira, 25 de novembro de 2008

Um livro por dia: TRON



Para os jovens de (e menos jovens) de hoje, habituados às sumptuosas criações CGI de qualquer mega-produção hollywoodesca, será difícil imaginar o impacto que teve na minha geração o aparecimento do filme TRON (1982) de Steven Lisberger. Numa altura em que não existiam Playstation nem X-Box, onde os ZX-Spectrum e os MSX eram apenas uma promessa, o filme dos estúdios Disney foi ao mesmo tempo um deslumbrante espectáculo visual e o motor de uma revolução na carreira profissional de muitos colegas meus. O impacto do filme é difícil de avaliar mas é sentido ainda no universo dos hackers, dos video-jogos, dos comics e do cinema. As célebres corridas de Lightcycles (um dos elementos do filme), aquelas motas que erguiam uma parede atrás de si visando a destruição dos adversários, tornou-se um dos jogos arcade e de pc mais memoráveis de sempre, influenciando ainda hoje incontáveis sequências cinematográficas, tal como é possível comprovar no recente Speed Racer (2008) dos irmãos Wachowski.

Quando em 1983 a Europress apresentou a sua colecção Bolso Noite, nada mais natural que escolher TRON, novelização do argumento do filme levada a cabo em 1982 por Brian Daley, afamado autor de tie-ins do universo Star Wars (sobretudo para a rádio), como primeiro título de FC a publicar.

A Bolso Noite, seguindo o exemplo da anterior Colecção Negra do Círculo de Leitores, incluía obras de quatro géneros literários - o policial/thriller (volumes de capa vermelha), Horror (capa preta), Ficção Científica (Capa Azul) e Western (capa amarela) - publicando autores nacionais e estrangeiros e dando a conhecer ao público português alguns autores magníficos como C. J. Cherryh, alguns títulos incontornáveis como Um Caso de Consciência (James Blish, 1958), e vários títulos dos nossos ases do pulp como Luís Campos (que dirigia a colecção), Roussado Pinto, ou o meu conterrâneo e amigo, Fernando Melim (um dos nossos poucos autores a apostar no horror, tendo aí publicado A CRIPTA e UM TÚMULO PARA NICODEMO).

Foi com esta colecção que me estreei na leitura de FC séria, mais concretamente com Héstia de C. J. Cherryh, de quem a Bolso Noite viria ainda a publicar uma extraordinária colecção de contos (O Sol Caiu) e uma novela extremamente interessante (Vaga sem Praia). Li TRON depois de ter visto o filme - numa época em que não existiam gravadores de vídeo nem DVDs, as novelizações eram a única forma de voltarmos a "ver" os filmes que mais nos tinham marcado sem estarmos dependentes da arbitrariedade da programação televisiva - e para um adolescente que acarinhava já aspirações de escrita (como todos os adolescentes, mais dominado pela dimensão visual do que pela dimensão literária), foi um dos primeiros objectos de estudo, através do qual tentava aprender a traduzir imagens por texto. Lembro-me de tentar reproduzir nas minhas próprias histórias desse período (1984) a descrição que o livro apresentava de um dos efeitos especiais que mais me fascinara no filme: a desconstrução das estruturas luminosas dos objectos.

Assim é também a memória nostálgica de quando o mundo era jovem: luminosa e sujeita a desconstrução...


segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Um livro por dia: AS MÁQUINAS DA DESTRUIÇÃO



E agora sim, cá está o histórico número 200 da Colecção Argonauta, apresentado ao público com menor pompa e muito menos circunstância do que o número 200 da Vampiro. Enquanto aquele teve direito a ser acoplado a um volume "extra-colecção" da Argonauta (ESTAÇÃO DE TRÂNSITO de Clifford D. Simak), AS MÁQUINAS DA DESTRUIÇÃO, primeiro volume de uma das séries mais populares da história da FC tem direito a apenas uma INTRODUÇÃO com 18 linhas de texto, que nos assegura que por se tratar do número 200 da Colecção Argonauta "o volume que o constitui foi cuidadosamente seleccionado". E disso não temos dúvidas, pois poucas escolhas poderiam ser melhores para assinalar o início de uma nova centena de títulos de uma colecção de longevidade inigualável.

Publicado originalmente em 1967, Berserker (título original), é uma colectânea de ficção curta que nos introduz às máquinas titulares, engenhos de Von Neumann, programados - como armas bélicas que são - para eliminar toda e qualquer forma de vida. Capazes de se adaptar, redesenhar e "evoluir", estas "máquinas da destruição" prontamente eliminaram os seus próprios criadores, entretendo-se agora a limpar a via láctea de toda e qualquer forma de vida, convertendo-se ao mesmo tempo num dos mais tenazes adversários que a humanidade alguma vez teve que enfrentar. Tenazes não só nas páginas destas histórias, mas na própria longevidade da série que viria a abranger catorze volumes, publicados entre 1967 e 2005 (tantos quanto as séries Fundação, Robôs e Império do Bom Doutor após a unificação).

A contra-capa deste volume memorável, já que não comemorativo, anuncia a publicação de IRMÃO ASSASSINO (Brother Assassin, 1969) como número 201 da Argonauta, que viria a ser publicado, tal como o seu predecessor, nesse histórico ano de 1974 (ou será 1973, como nos assegura José Simões?). No entanto, apesar de a introdução de AS MÁQUINAS DA DESTRUIÇÃO reconhecer que Fred Saberhagen "não é conhecido do público português", e nos assegurar que "o seu estilo é dos mais belos alguma vez surgidos na ficção científica", a Argonauta depressa o esqueceu, abandonando esses dois volumes como órfãos no grande vazio de referências que ela própria, anos mais tarde, também ajudou a criar.

O que mudou...




... e o que ficou na mesma...




in OPÇÃO, Ano 1, nº40, 27 de Janeiro a 2 de Fevereiro de 1977

... desde o ano em que George Lucas revolucionou a ficção científica e o cinema.

ASNEIRA


Pois é, para verem que também os grandes tropeçam e, como dizia o célebre Tuco (Elli Wallach) em O Bom, o Mau e o Vilão, quando caem fazem mais barulho. De tal forma que os ecos deste meu trambolhão chegaram a um outro blogue que normalmente não se ocupa destas coisas, mas cujo autor se dignou debruçar do seu pedestal para repor a verdade dos factos. Fê-lo, infelizmente, de forma pouco elegante e aproveitando o erro para ventilar algumas frustrações que o fandom bem lhe conhece e que por isso - se não por mera educação - não vale a pena estar aqui a esmiuçar. Não obstante, o meu agradecimento e a minha vénia, genuinamente extensivas - e com maior força de razão - ao José Simões que ademais de apontar o lapso, contribuiu com alguns detalhes preciosos para quem tem apreciado esta minha série de posts.

O médico bem me dizia para não me por a fazer várias coisas ao mesmo tempo, pois alguma havia de falhar. Cá está ela. O erro é de facto grave, tanto mais que possuo os exemplares em causa da Argonauta e ter-me-ia sido fácil tirá-los da estante - se não tivesse as estantes espalhadas por três espaços físicos distintos e em duas localidades portuguesas. Mas enfim, o que está feito, está feito, e tiremos daqui as lições que interessa tirar: para começar, a confirmação de que o bias é perigoso. Sem qualquer fundamento que não o entusiasmo por um género, nunca me passou pela cabeça que um volume de FC pudesse não ter a primazia: a ideia, inconsciente, era de que o livro policial seria um "bonus" numa colecção de FC, e nunca o oposto. Goes to show... Mas essa "impressão" puramente subjectiva conduziu inconscientemente a escrita do post anterior, servindo para colocar lá "factos" que não o eram e que, além de facilmente verificáveis, iam-me latindo ao ouvido à medida que os passava a escrito, como que querendo avisar-me de que algo não estava bem. Outra lição: nunca actualizem os vossos blogues de uma directa a tentar recuperar atrasos de tradução e de escrita.

Em segundo lugar, a confirmação do caos das nossas edições, caos que se reflecte necessariamente nas fontes de referência, como este blogue ou a Bibliowiki pretendem ser, sem que muitas tal se fique a dever a pura negligência. No entanto, a memória de um entusiasta da FC como o José Simões, mostrou-se mais fiável do que a informação do Blade Runner ou da Bibliowiki.

Bom, lembram-se de quando a Academia Nobel atribuiu o Prémio da Paz a Arafat e o da Literatura a Saramago? Lembram-se de quando o Silverberg assegurava a pés juntos que a escrita de James Tiptree, Jr (Alice Sheldon) era tão masculina que apenas um homem a poderia ter assinado? Pois bem, toda a gente tem direito a uma grande patacoada na vida. Já viram a minha. Aproveitem, que tão cedo não há outra.

PS: I've shamelessly ripped the image for this post from the wonder-blog ARBOGAST ON FILM. Hope he doesn't mind.

domingo, 23 de novembro de 2008

Um livro por dia: ESTAÇÃO DE TRÂNSITO



ADENDA: 24 de Novembro de 2008

O post que se segue contém incorrecções graves, devidamente apontadas pelo José Simões na caixa de comentários e pelo Jorge Candeias no seu blogue, motivadas por uma deficiente pesquisa da minha parte e de alguns erros de datação constantes da Bibliowiki (que, no entanto, não pode ser responsabilizada por este meu - imperdoável - deslize. Apresento por isso as minhas desculpas aos leitores do Blade Runner e aos organizadores da Bibliowiki. Como é óbvio, ser-me-ia extremaente fácil apagar este post, coisa que seria de uma desonestidade intelctual imperdoável. Assim, ao prosseguirem na vossa leitura, devem ficar cientes de que os excertos iluminados a azul contêm erros e incorrecções.

Vamos aproveitar o livro de hoje, ESTAÇÃO DE TRÂNSITO para falar um pouco mais de caos. ESTAÇÃO DE TRÂNSITO, um dos livros mais conhecidos e justamente celebrados de Clifford D. Simak (1904-1988), foi o título escolhido pela Colecção Argonauta para celebrar o seu duocentésimo volume publicado. Como a ocasião se proporcionava, o tomo inclui também o duocentésimo título da Colecção Vampiro (policial), a tradução de The Case of the Crooked Candle (1940), uma das aventuras de Perry Mason de Erle Stanley Gardner. Só por isso, o volume é já digno de nota e da estima de qualquer coleccionador; ademais, a Livros do Brasil adopta aqui a estrutura dos lendários volumes da Ace Double norte americana, publicando os livros dos-a-dos (costas com costas em francês, dois a dois em espanhol) seguindo um eixo horizontal. O único defeito da execução é o facto de a lombada indicar os dois títulos numa mesma orientação vertical, ao invés de em correspondência com a respectiva capa.


Até me arrepio só de pensar que já vi ambos os volumes à venda independentemente em alfarrabistas, pelo mero expediente de os separar pela lombada, destruíndo a unidade de uma peça de colecção.

Ora, seguindo o teor dos anteriores posts, onde de certa forma lamentei o desaparecimento de algumas editoras e colecções, ocorreu-me escolher este volume para mostrar que, apesar das dificuldades, algumas colecções atingiam os 200 números publicados com certa qualidade (a Argonauta passaria dos 600 antes de soçobrar). Mas aqui se levantam os problemas, pois como vem sendo hábito das nossas editoras, a data de publicação do volume é uma incógnita. E é aqui que nasce o caos.


Isto porque, quando aqui falei de OS AMANTES de Philip José Farmer, aventei a hipótese de a nossaediçao se ter baseado na edição da Ballantine, comemorativa dos vinte anos da publicação original, datando por isso a edição da Panorama por volta de 1972. Na sequência imediata desse post, o António de Macedo enviou-me um amável e-mail (que muito agradeço), chamando-me a atenção para o facto de que a Biblioteca Nacional indicava a data de publicação de OS AMANTES, como sendo 1970. Nada mau, isso apenas demonstrava acuidade editorial por parte de Lima Rodrigues, editor da Série Antecipação e da Antecipação Extra.

Pois bem, lembrando-me deste episódio, resolvi fazer o mesmo quanto a ESTAÇÃO DE TRÂNSITO. Way Station, título original da novela que em 1963 reuniu as duas partes de Here Gather the Stars, publicada nesse mesmo ano na revista Galaxy, viria a obter o Hugo de 1964 na categoria de Best Novel. Pois o site da Biblioteca Nacional lista o depósito legal da tradução da Livros do Brasil como sendo 1964, uma data de surpreendente celeridade na tradução - coisa a que não estamos minimamente habituados por cá.


Mistério resolvido. Só que...


ESTAÇÃO DE TRÂNSITO é o número 200 da Colecção Argonauta. E O CONSTRUTOR DE UNIVERSOS, de que já aqui falamos é o número 161 da mesma colecção. Ora, não tenho qualquer dúvida de que este título de Farmer foi publicado em 1970 - após as sequelas publicadas na Série Antecipação - coisa que pude comprovar com coleccionadores que já por cá andavam nessa altura (em especial a enciclopédia ambulante que é o João Barreiros). Surpresa, das surpresas, também a Biblioteca Nacional lista o depósito legal do título de Farmer como sendo 1970, o que invalida a data de publicação de ESTAÇÃO DE TRÂNSITO e, de ums só assentada, descridibiliza de vez as referências da BN.


(Observe-se, en passant, que o mesmo sucede com a Bibliowiki, que indicando correctamente a data de publicação de Farmer como sendo 1970, atribui ao livro de Simak a data de publicação de 1968, adensando ainda mais a confusão. A agravar tudo, o título de Simak nem sequer aparece referido como integrndo a Colecção Argonauta, cujo número 200 nos é indicado como sendo As Máquinas da Destruição de Fred Saberhagen, com data - mais credível - de 1974. Infelizmente, a informação extremamente esparsa da Bibliowiki - que exclui fontes e razões de ciência - não permite controlar a veracidade das suas informações, em muito empobrecendo o seu valor como recurso bibliográfico, como se demonstra por estes exemplos, entre muitos outros com que me fui deparando na elaboração destes posts.)


Assim, continua em dúvida a data de publicação de OS AMANTES (a Bibliwiki bate aqui com a BN, indicando 1970), e deste ESTAÇÃO DE TRÂNSITO, que tudo indica ter sido publicado em meados da década, algures por volta de 1974.


Mais um exemplo de como não existe uma "história" e uma tradição de "fantástico" em Portugal, por muito que os nossos patriotas mais entusiastas arenguem aqueles que acusam o nosso mercado, o nosso fandom, e os nossos editores (e leitores) de se moverem num vazio de referências que é bem real.


Sic transit gloria lusa...


sábado, 22 de novembro de 2008

Um livro por dia: OS PRIMEIROS HOMENS NA LUA



Há precisamente 45 anos atrás, JFK morria em Dallas, no Texas, com o encéfalo desfeito por uma bala disparada de uma Mannlicher-Carcano por Lee Harvey Oswald. A morte súbita e brutal permitiu-lhe tornar-se um mito americano, para sempre ligado às promessas de uma era, ela própria, quase mítica. Goste-se ou não de JFK, ele foi um dos presidentes americanos que, para bem e para mal - como Reagan, como George W. Bush - fizeram seus um mundo e uma época. No dourado da lenda, muitos passarão por alto o papel de Kennedy na Invasão da Baía dos Porcos, no despoletar da Guerra do Vietnam, ou na ligação à Máfia americana. No entanto, seu pulso de ferro na gestão da Crise dos Mísseis de Outubro de 1962, foi determinante para a História e - pelas imúmeras obras que esse momento inspirou - para a FC e para a cultura popular.

No entanto, acima de qualquer outro memorial, devemos-lhe a determinação de levar a humanidade à Lua, de lhe ter oferecido aquela esfera celeste que todos os amantes prometem... not because it was easy, but because it was hard. A Kenneedy devemos a determinação de tornar a FC realidade, de abrir um novo horizonte cheio de expectatitvas, e de alargar efectivamente o lebensraum da raça humana.

Nesse ambicioso projecto, o nome de Kennedy será sempre apareado com o de Wernher von Braun, o proverbial "rocket scientist", pai da V-2 e do Saturn V e, finalmente, do Projecto Apollo. Em 1958, von Braun publicou uma brever novela entitulada First Men to the Moon, uma narrativa profusamente ilustrada que descreve o primeiro voo de um foguetão tripulado até à Lua.

Pode-se dizer que é a epítome de uma FC que já não existe: hard-sf, escrita por um cientista, especialista na sua área.

Em 1966, a Livraria Betrand publicava em Portugal uma tradução dessa obra com o título OS PRIMEIROS HOMENS NA LUA, precedido de uma interessante entrevista (16 páginas) com von Braun efectuada em 1960 no famoso Redstone Arsenal em Huntsville, Alabama. O volume reproduz as fabulosas ilustrações do original, incluindo as duas páginas desdobráveis com a representação da atmosfera terrestre e do sistema solar. Misturando FC e ciência de ponta, o livro torna-se um estranho objecto editorial, tendo a Bertrand optado por trocar as voltas aos entusiastas da ficção científica ao incluir o volume na sua colecção Documentos de Todos os Tempos, entre O Mundo do Silêncio de Cousteau e Dumas e O Despertar dos Mágicos de Pauwels e Bergier (referido na contracapa como A Alvorada dos Mágicos).

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Um livro por dia: SEXTA-FEIRA POR EXEMPLO



Poucos anos depois do 25 de Abril, a euforia começava a estagnar sob o peso económico. O grande crescimento da segunda metade da década se sessenta e da primeira da década de setenta dava sinais de cansaço e esgotamento. Em Fevereiro de 1977, em editorial da revista OPÇÃO (Vol. 1, nº44, semana de 22 a 28 de Fevereiro de 1977) podia ler-se: "... assistimos nas últimas semanas à suspensão e ao encerramento de nada menos que nove publicações. É que os aumentos do papel e dos custos de produção, agravados por um nítido abaixamento do poder de compra, vieram agravar a situação quase periclitante em que vive a imprensa em Portugal". Era Secretário de Estado da Comunicação Social, Manuel Alegre, que acabava de ler um comunicado na televisão, justificando o teor do editorial.

Nos anos subsequentes, a situação iria deteriorar-se substancialmente. Entre os caídos, a DH Ciência (1975) e a Série Panorama (1977), a Portugal Press (1978) entre muitos outros. No entanto, nesse mesmo ano surgia uma nova colecção que, de certa forma, antecipava a colecção azul da Caminho e que, à falta de melhor título, poderemos chamar a Colecção Negra do Círculo de Leitores. E antecipava a colecção azul da Caminho por alternar obras de Ficção Científica, com policiais e títulos de horror (cada género identificado com o ícone respectivo - um robot para a FC, um detective para o policial e uma caveira para o horror). Alternar talvez não seja a palavra exacta, pois nem sempre os títulos alternavam estritamente, podendo um policial suceder-se a outro e só depois um de horror ou um de FC. Por motivos que se prendam com protocolos editoriais, ou com a limitação da aquisição de dólares em 1978, a maioria dos títulos - para não dizer todos - correspondem a obras de autores franceses, a maioria puro pulp, ou já caídos no domínio público.

No entanto, com 10.000 exemplares de tiragem e venda exclusiva aos sócios do Círculo de Leitores, é um conceito arrojado de colecção de literatura popular que procura acorrer aos gostos ainda em formação de uma população consumidora que acaba de sair de uma ditadura para mergulhar numa crise económica.

No final dos anos 70, recordo-me de olhar extasiado para as lombadas negras que se perfilavam na mesa da sala, entre dois suportes de livros que eram miniaturas de canhões das guerras napoleónicas; as imagens de capa, numa moldura cinzenta, inflamavam-me a imaginação - a estação orbital sobre a esfera azul-terrestre de REGRESSO A ZERO de B. R. Bruss, ou as silhuetas sinistras de OS TRANSLÚCIDOS do mesmo autor; a caneta cravada numa orelha que escorria sangue num dos títulos policiais, ou a imagem cinzenta de um ameaçador Frankenstein no volume desse título, eram as que mais me entusiamavam. No entanto, quando anos mais tarde, no início dos anos 80 me dediquei a ler cada um deles, foi SEXTA-FEIRA POR EXEMPLO o que mais me marcou. Publicado em Agosto de 1978, e assinado por Pierre Suragne (pseudónimo do célebre autor francês Pierre Pelot), apresenta-nos uma trama que assenta exclusivamente nas expectativas do leitor quanto às convenções genéricas para retirar o coelho final da cartola. História com tons apocalípticos, e partindo de uma ideia com ecos distantes de EYE IN THE SKY the Dick, serve-se de todos os condimentos de uma narrativa pulp - violência, sexo, destruição - e une-os a personagens bem construídas, com idiosincrassias próprias que se revelarão fontes de problemas (por exemplo, o político que recorre a uma máscara para manter um affair ilícito, máscara essa que impede a sua rápida salvação quando o mundo começa a derruir), sem negligenciar uma crítica social acérrima, tão ao jeito francês (veja-se, por insuperável nesse campo, Andrevon).

Infelizmente, das quase quatro dezenas de volumes que possuo desta colecção, apenas um escasso punhado pertence aos géneros do fantástico, assistindo-se a um claro predomínio do policial e da espionagem sobre os demais. No entanto, enquanto objecto-colecção, é dos mais curiosos que já alguma vez foram tentados entre nós.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Um livro por dia: O CONSTRUTOR DE UNIVERSOS



Por fim, e da forma mais inesperada, ainda em 1970 surgia nas bancas O CONSTRUTOR DE UNIVERSOS, primeiro volume da série World of Tiers de Philip José Farmer. É impossível dizer qual o efeito de tal publicação. Apesar de a Livros do Brasil vir posteriormente a publicar outras obras de Farmer - incluindo a justamente célebre saga do Mundo do Rio - este O CONSTRUTOR DE UNIVERSOS, nº161 da Colecção Argonauta, é o primeiro livro deste autor a surgir nessa colecção; e, antes do World of Tiers, apenas NOITE DE LUZ (tradução do Night of Light, 1965) tinha sido publicado pela Panorama (Série Antecipação) em 1969.

Para todos os efeitos, a primeira impressão que o leitor português recebe da obra de Farmer, é o coto amputado da saga World of Tiers, um tronco decepado na Antecipação, uma cabeça exangue na Argonauta. Certamente que não é maneira de incentivar a fidelização dos leitores à escolha (desejavelmente) criteriosa dos directores de colecção. Não duvido que muitos leitores terão adquirido os três volumes, tal como não duvido que muitos mais o não fizeram. Nenhuma das duas editoras voltaria ao World of Tiers, apesar de existirem mais quatro volumes publicados (Behind the Walls of Terra, The Lavalite World, Red Orc's Rage e More Than Fire).


quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Um livro por dia: O COSMOS DE KICKAHA



Depois do último post, não tinha intenção de falar individualmente de O COSMOS DE KICKAHA, terceiro volume da série WORLD OF TIERS de Philip José Farmer, e segundo (e último) publicado pela Galeria Panorama na sua Série Antecipação. No entanto, é impossível resistir à tentação de expor um exemplo tão claro do que ali tinha deixado escrito quanto ao desrespeito pela continuidade dentro de uma mesma série.

Publicado escassos seis meses depois de ARMADILHA CÓSMICA, O COSMOS DE KICKAHA conta agora com tradução de Pires de Carvalho, o que é o suficiente para lançar o caos na continuidade. Assim, e respondendo à infeliz escolha de "deuses" como tradução de "Lords", Carvalho opta por "Senhores", o que sendo mais fiel à intenção original, em nada contribui para uma tradução elegante. No entanto, e de forma perfeitamente arbitrária, o mesmo Carvalho opta por converter o nome de uma das personagens principais - Chryseis - que Tereza Curvelo mantivera intocado do original, em Cheyseis, rompendo desnecessariamente a continuidade patronímica (e permitindo-nos supor que o tradutor não leu o volume anterior).

Sendo Farmer um dos meus autores de eleição - ou seja, daqueles a que volto uma e outra vez a intervalos regulares - é-me pessoalmente penalizador ver uma das suas séries mais curiosas (se bem que longe de ser a melhor, a mais intrincada ou a mais literária) ser assim (mal)tratada por uma colecção que poderia ter feito concorrência à Argonauta durante muitos e longos anos.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Um livro por dia: ARMADILHA CÓSMICA



Sem passado, sem futuro, e com o presente a esvair-se-lhe por entre os dedos, o leitor português de ficção científica não tem que enfrentar apenas a fraca qualidade das traduções, a frequentemente pobre escolha dos títulos, a escassez de exemplares ou a distribuição incerta, a duplicação de edições sob títulos distintos ou o mesmo título para obras diferentes, mas também o carácter fragmentário do que se vai traduzindo. Nomeadamente séries interrompidas, publicadas sem respeito pela ordem dos diferentes volumes, multiplicados em três ou mais tomos por cada entrega do original, muitas vezes entregues a uma multiplicidade de tradutores que não respeitam a continuidade dos termos, topónimos ou expressões.

O fenómeno não é recente e não deixa incólume nenhuma das editoras nacionais, do passado ou do presente. Por um lado, a aposta numa série nem sempre é acompanhada da necessária fidelização do público leitor; por outro, esse mesmo público leitor volta as costas aos esforços editoriais.

Consideremos Philip José Farmer. O autor de Terre Haute, Indiana, que cumpriu este ano o seu nonagésimo aniversário, é um dos poucos escritores que consegue escrever primorosamente na FC, na Fantasia, na Science Fantasy, no Scientific Romance, no Policial, na Pornografia, no Horror, no ensaio e na falsa biografia (de que escreveu duas excepcionais: a de Tarzan e a de Doc Savage). É, além do mais, um dos poucos autores ainda vivos que consegue escrever ao estilo do genuíno pulp, sem necessitar de reproduzir os seus defeitos, indubitavelmente fruto de um amor e de um entusiasmo quase juvenil pela literatura de género, que o isenta de nela escrever com sobranceria ou consciência do carácter menor que muitas vezes lhe é atribuído. Vejam-se os contos pretensiosamente pulps escritos por Michael Chabon, Michael Moorcock, Jeff Vandermeer, Mike Resnick et al. para compreender a diferença. Talvez apenas Ron Goulart e Joe R. Landsdale (ou mesmo Kim Newman) consigam ombrear com Farmer.

ARMADILHA CÓSMICA, número 26 da Série Antcipação da Galeria Panorama foi publicado em 1969 em pleno vazio referencial. O leitor que então o encontrasse na livraria provavelmente não saberia que acabava de adquirir uma das obras incluídas na série The World of Tiers (7 volumes entre 1965 e 1993, dos quais apenas 3 foram publicados em Portugal). Nada no texto da contracapa o informaria da verdadeira natureza do livro, pois este é apenas a transcrição do primeiro parágrafo da obra. E, certamente, ninguém lhe diria que esta tradução de THE GATES OF CREATION (1966) é na verdade o segundo volume dessa série, dando continuidade às aventuras de Wolff/Jadawin no universo de múltiplos universos de que o World of Tiers é apenas um.

Jadawin é apenas um dos vários Lords que são senhores da criação destes vários universos de bolso, cada um deles governando o seu próprio planeta - construções artificiais que acompanham o gosto pessoal dos seus criadores (em A PRIVATE COSMOS, 3º volume da série, aprendemos que Jadawin, a pedido de Kickaha - herói por excelência do 3º e 4º volumes, embora intervenha também no primeiro - tentou reproduzir na Lua do World of Tiers o Marte de Burroughs que incendiava a imaginação daquele Kickaha quando vivia ainda na Terra). Ora, Tereza Curvelo, tradutora deste volume, escolheu traduzir aquele Lords por Deuses, dando azo, logo na 1ª página, a uma frase como: "Foi então que os Deuses descobriram que até eles, criadores de universos, possuidores de uma ciência que os colocava apenas um degrau abaixo dos deuses, necessitavam sonhar".

A Galeria Panorama viria a publicar A PRIVATE COSMOS, sob o título O COSMOS DE KICKAHA em 1970. A colecção não chegaria a publicar o quarto volume da série, BEHIND THE WALLS OF TERRA surgido em língua inglesa nesse mesmo ano. ARMADILHA CÓSMICA e o COSMOS DE KICKAHA contam duas narrativas independentes - a de Jadawin e a de Kickaha - que decorrem em simultâneo, unindo-se no final de ambos os volumes para darem origem à narrativa subsequente, passada na Terra, na Califórnia de 1970. Os laços estreitos que unem Jadawin e Kickaha, e que justificam esta última aventura, são estabelecidos no primeiro volume, que os leitores da Série Antecipação nunca puderam ler...

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Um livro por dia: PARA ALÉM DO INFINITO



Entre PESADELO GALÁCTICO e PARA ALÉM DO INFINITO, mediaram apenas nove anos. Uma eternidade no que concerne à memória do género em Portugal. O tempo suficiente para que desaparecessem as colecções Série Antecipação da Panorama e DH Ciência da Edições Dêagá; tempo suficiente para que surgisse e desaparecesse a colecção de capa negra do Círculo de Leitores, e para que praticamente o mesmo sucedesse à colecção Bolso Noite.

É o eterno recomeço de que falava nos últimos posts. Uma página virada, uma página da história apagada. Nada fica na memória colectiva do género.

É possível que quando PESADELO GALÁCTICO foi publicado em Dezembro de 1976, esta edição de PARA ALÉM DO INFINTO de A. E. Van Vogt (Junho de 1974) ainda lampejasse na memória daqueles que decidem os títulos das obras e traduzir. Esse mesmo constrangimento já não existe em 1985, quando é novamemnte publicado sob o título PARA ALÉM DO INFINITO. Os editores sabem que já ninguém recorda o livro de Van Vogt traduzido entre nós com esse título, uma mera década antes. Tal como hoje, provavelmente, ninguém recordará o papel preponderante de Van Vogt no dealbar da Ficção Científica.

Considerado como um dos quatro grandes da Golden Age campbelliana, Van Vogt foi um dos autores mais lidos e populares da FC. Amado e detestado em igual medida, ainda hoje os críticos do género se debatem quanto aos seus méritos e deméritos. O título de um dos seus livros mais populares, Slan (1946), popularizou-se como uma expressão do fandom da ficção científica (quem não se recorda do célebre slogan "fans are slans"?) ao passo que a sua primeira história publicada, Black Destroyer (1939), foi a base para inúmeros filmes de Ficção Científica, incluindo o célebre Alien (1979) de Ridley Scott. Para se aferir da sua importância relativa na literatura do género, foi o ensaio Cosmic Jerrybuilder (1945) que pela primeira vez centrou as atenções sobre o jovem Damon Knight, que podemos considerar o pai da crítica séria de Ficção Científica. Cosmic Jerryuilder (que pode ser lido no volume In Search of Wonder), é uma crítica demolidora à obra de Van Vogt, daquelas que hoje seriam consideradas entre nós como "crítica altamente negativa", "ataque ad hominem", etc... (mais um sintoma da infantilidade crítica nacional - e não apenas na FC).

Neste volume (que data originalmente de 1952, embora a nota de copyright refira 1963) reúne 8 narrativas curtas (entre o conto e a noveleta), das quais se destacam Segredo Inviolável e Os Vampiros do Espaço, como magníficos exemplos de um tipo de pulp fiction que já não se voltará a escrever.


domingo, 16 de novembro de 2008

Um livro por dia: PARA ALÉM DO INFINITO



Em 1985, a Via Óptima dava à estampa, também no Porto, uma nova antologia de contos fantásticos, reunidos sob o título PARA ALÉM DO INFINITO "e outras histórias espantosas". Tal como PESADELO GALÁCTICO, esta antologia foi impressa na Gráfica Firmeza, do Porto, e não identifica o compilador. No entanto, sem qualquer informação adicional, a ficha técnica do livro refere que esta é uma segunda edição, tendo a primeira tido lugar em 1976 por mãos da Editora Nova Crítica...

O eterno recomeço de um género sem passado manifesta-se também no revestir de antigas edições com novas capas e novos títulos. E, neste caso, literalmente: esta nova edição de PESADELO GALÁCTICO, apenas difere na capa e na contra-capa; no demais, é uma reprodução fiel da edição anterior, desde a magnífica ilustração inicial (e única do volume) do inconfundível Virgil Finlay, à disposição do texto, gralhas, grafismo e número de páginas. O mesmo índice que na edição anterior remetia para um Prefácio na página 7 - prefácio inexistente, numa e noutra edição - repete-se aqui sem qualquer alteração.

O que mudou, sim, foi o texto de contracapa, desta feita ilustrado com reproduções de capas de três revistas pulp, o qual refere a importância de tais publicações para a consolidação do fantástico (aqui referido como "literatura de imaginação") e reconhece o principal motor da multiplicação de publicações e autores um pouco por todo o mundo: o cinema.

É um texto demasiado breve para ser suficientemente informativo, mas isento dos blurbs berrantes, do apelo à identificação dos autores com outros porventura mais comerciais, possui uma sobriedade e uma dignidade que não tardarão a desaparecer. Gosto sobretudo (a um nível pessoal, ainda que não objectivo) desta referência ao fantástico como sendo a "literatura de imaginação". É marca do reconhecimento de que a literatura fantástica (mais do que a simples literatura de género), acrescenta algo à realidade tal como a conhecemos, respondendo por via desse acrescento, dessa dádiva enriquecedora, à mera representção que vamos encontrar na literatura mimética ou mainstream. Chamem-lhe sense of wonder se quiserem, mas é a verdadeira definição do específico carácter da espécie humana.


sábado, 15 de novembro de 2008

Um livro por dia: PESADELO GALÁCTICO



Apesar dos vários esforços envidados ao longo dos anos, pelos mais diversos agentes, nunca foi verdadeiramente possível criar uma tradição e uma cultura da literatura fantástica em Portugal; olhando para os listados das colecções com maior tradição - e, em sentido estrito, apenas a Argonauta mereceria essa qualificativo - cedo constatamos que a dois ou três títulos mais arrojados, e ao leque dos clássicos, segue-se sempre uma dezena de títulos indiferentes, ephemera marginalia da história da FC. E, com o avançar dos anos, a estagnação vai dando espaço a um intervalo cada vez maior entre o que se publica (lá fora) e o que se traduz. Porque, de produção própria, sempre estivemos muito mal servidos. A sensação que fica, inevitavelmente, é a de um eterno recomeço. O passado não conta, na história da "nossa" FC, porque esse passado não existe, enterrado em alfarrabistas, bibliotecas inacessíveis e colecções de alguns leitores mais entusiastas. Mas mesmo aqueles títulos que vão surgindo mensalmente, são muitas vezes passado, consistindo em traduções de obras com mais de 10, 15, 20 e 30 anos, que já há muito deveriam fazer parte do imaginário, da memória e do leque de referências dos nossos leitores, mas que só agora são recebidos com pompa de novidade requentada.

Uma forma de fazer frente a este eterno recomeço, onde a capacidade de escoamento de títulos fica muito aquém do vasto oceano de escolhas (mais uma vez, lá de fora), é apresentar vários autores aos seus potenciais leitores, através de antologias. Uma dessas antologias, publicada pela primeira vez em 1976 por Propaganda Lda, "por acordo com Editora Nova Crítica, Porto", foi PESADELO GALÁCTICO, uma antologia de histórias espantosas.

E, pela primeira vez, o texto entusiástico da contra-capa não anda muito distante da verdade, anunciando uma abrangente antologia, recolhendo relatos de "todos os géneros da literatura de imaginação: ficção científica, science fantasy, space opera, weird fantasy, heroic fantasy, terror e fantástico". É certo que poderíamos debater aquele "fantástico" ali no fim, e também não encontramos neste volume qualquer texto de hard sf, mas sob a capa pouco atractiva, encontramos 11 narrativas de autores canónicos da Weird Tales, que vão de Lovecraft a Bradbury, passando por Clark Ashton Smith, Frank Belknap Long, Ward Moore, Robert Bloch, Carl Jacobi, D. H. Keller, e ainda Graham Door, Ray Bradbury, Chan Corbett e William Tenn das revistas de FC.

Com um cuidado incomum neste tipo de publicações, cada história é acompanhada da indicação do seu título original e o volume conclui com um "dicionário de autores" anormalmente informativo (e que se estende por oito páginas de letra miúda). Infelizmente, não nos é dada qualquer informação quanto ao compilador desta antologia e confesso que a consulta às minhas fontes não me permitiram identificar qualquer antologia original com conteúdo idêntico a esta (o que, sugerindo a possiblidade de uma compilação nacional, não exclui, naturalmente, a hipótese oposta).

Independentemente de tal facto, é um exemplo a seguir. Um exemplo que, como não podia deixar de ser, desapareceu infértil na voracidade do passado glutão.

Ou será que não? Esperem pelo post de amanhã...

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Um livro por dia: UMA INFINIDADE DE ESTRELAS



1972 ano do caos na FC em Portugal? Bom, pelo menos não era apenas a Brasília Editora a trocar as voltas aos leitores. Considerem a surpresa e o espanto de quem pegasse no oitavo volume da colecção DH Ciência das Edições Dêagá esperando levar para casa UMA INFINIDADE DE ESTRELAS de Isaac Asimov, a terceira colectânea dos seus ensaios (de que a Dêagá publicara já A Ciência, os Números e Eu e Da Terra ao Céu), apenas para descobrir que acabara de adquirir a tradução portuguesa de A Wilderness of Stars, antolgia organizada em 1969 por William F. Nolan.

Certamente o leitor não saíria muito prejudicado, pois o conjunto de 10 contos que exploram as consequências e desafios da exploração espacial, não deixará de compensar largamente qualquer apreciador de FC (embora possa desgostar um pouco aquele leitor que procurasse apenas os ensaios do Bom Doutor). Entre as histórias seleccionadas no ano em que o Apolo XI levou o homem à Lua, contam-se dois magníficos contos de Walter M. Miller (que abrem e fecham o volume), um interessante conto sobre uma regata espacial da autoria de Arthur C. Clarke, um clássico conto marciano de Bradbury, um conto do próprio organizador, que todos reconhecerão como sendo o autor do não menos clássicos Logan's Run e Logan's World, para além de trabalhos de Sheckley, Chad Oliver, Charles E. Fritch e Ray Russel.

Para os amantes do caos, este modesto volume (196 páginas) de grande ambição, ainda oferece a "surpresa" de, entre as páginas 96 e 97, reproduzir novamente as páginas 81 a 96, sem porém obliterar qualquer página da história interrompida.

No texto de contra-capa, o leitor reparará que o editor salienta o facto de esta ser a "segunda antologia de Ficção Científica que incluímos na presente coleccção", bem traduzindo uma diferença fundamental entre o mercado de então e o mercado actual onde, com excepção de colectâneas de autor e das antologias necessariamente temáticas que a Saída de Emergência vem organizando (A Sombra Sobre Lisboa, A República Nunca Existiu), o conceito de colectânea de vários autores parece ser totalmente anátema. É certo que tal se deve à constatação de que no âmbito da literatura de género as formas curtas encontram-se moribundas, tendo perdido a importância que detinham entre guerras e durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, não é menos certo que a ausência de traduções para português de algumas das antologias anuais que compilam o que de melhor se vai fazendo durante o ano, como as de David Hartwell, Robert Silverberg, Stephen Jones e - menos a meu gosto - Gardner Dozois, dificulta o primeiro contacto entre os leitores que desejam experimentar algo novo e os novos autores que pretendem começar a escrever num género que mal conhecem.

Também nisso, apesar do caos, da desordem, da confusão e das más traduções, o Portugal dos anos 70 - e em parte o Portugal da ditadura - tinha mais para nos oferecer do que o Portugal de hoje... que nos oferece apenas a porta aberta e a oportunidade de por ela sairmos. Abençoado seja por isso.


quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Um livro por dia: GUERRA NA GALÁXIA



Edmond Hamilton é uma das figuras de proa na História da Ficção Científica, tendo estado presente desde o momento do nascimento do género em 1926 até à sua morte em 1977. Como todos os autores que escreveram na era das revistas pulp deixou-nos um conjunto de obras desiguais, mas imbuídas de um entusiasmo que deixava perceber a grande inteligência do autor. Frequentemente associado às aventuras do Captain Future, de que assinou 24 das 27 publicadas, foi um dos principais contribuidores da célebre Weird Tales, para além de efectuar várias incursões por outros géneros como o policial e o horror.

The Star Kings, publicada originalmente em 1949, é uma das suas space operas mais conhecidas, e recebe em português o título GUERRA NA GALÁXIA aquando da sua publicação (presumo que em 1972) pela Brasília Editora. Ora, no meu post anterior, referi como o título original que a editora fornecia para VIAGEM AO INFINITO de Poul Anderson (afinal, Star Ways) era Star King's. A publicação deste tomo, poderia vir por termo ao caos gerado pelo volume anterior, não fosse por um facto curioso: é que o texto do presente volume corresponde à tradução brasileira (da autoria de Jeronymo Monteiro e T. Monteiro Deutsh) de... Les Rois des Étoiles, edição francesa de The Star Kings de Hamilton.

A influência do panorama editorial francês na Ficção Científica - sobretudo nos anos sessenta e setenta, antes dea França se começar a fechar na sua concha autista - é notória: foram os franceses os primeiros a reconhecer o mérito de Philip K. Dick ou Philip José Farmer, e tiveram em Jacques Saddoul (que escreveu uma interessante hisória da FC entre 1911 e 1984), para além de uma produção própria invejável. Portugal, acometido como sempre foi do francesismo de que já Eça o acusava, não se fez peco em beber da fonte próxima - tão próxima quanto grande parte da nossa população emigrou para lá nesse período. Apesar da recente abolição das fronteiras, nunca a variedade editorial se aproximou anto do que foi nos anos sessenta e setenta, onde (quase) todas as colecções ostentavam pelo menos um par de títulos franceses, checos, polacos, ou russos.

Ignoro qual a relação entre França e o Brasil neste período, e é provável que editoras como a Brasília dividissem o seu mercado com o Brasil, partilhando traduções como forma de diminuir os custos editoriais. Também por esta altura, era frequente encontrarem-se por cá edições brasileiras de ficção científica (recordo-me particularmente da colecção da Bruguera) e mesmo livros de autores brasileiros. O que bem demonstra como desde essa época Portugal tem mantido um retrocesso constante e obstinado em questões culturais.

E pensar que há quem hoje se queixe da globalização...


quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Um livro por dia: VIAGEM AO INFINITO



Prometi-vos caos. Caos emergente da proliferação de títulos a que começamos a assistir desde meados dos anos sessenta e que se começa a intensificar no início da década de setenta. Abril de 1974 traria consigo a bonança, ainda que maculada pelo desaparecimento súbito de editoras e publicações no final da década, vítima da proibição de saída de divisas e da escassez - e consequente carestia - do papel. Essa súbita e inesperada bonança, que vinha já ganhando ímpeto, permitiu o momento que se estendeu até meados dos anos 80, com o surgimento de novas colecções e uma celebração generalizada da Ficção Científica depois dos sucessos encadeados de 2001: A Space Odyssey (1968), Planet of the Apes (1968), Barbarella (1968), A Clockwork Orange (1971), Silent Running (1971), Phase IV (1974), Star Wars (1977), Close Encounters of the Third Kind (1977), E.T. (1982) e a aproximação de 1984, o ano da FC por excelência.

Para o período em apreço (o breve intervalo 1971-1972, que enquandra este grupo de volumes de que vos quero falar), não há dúvidas de que é o cinema - sobretudo o sucesso estrondoso e inesperado de 2001 - que impulsiona o surto de publicações. Na contra-capa deste VIAGEM AO INFINITO de Poul Anderson, a Ficção Científica chega mesmo a ser referida como um "novo género de literatura que está conquistando cada dia, um maor número de fans" (sic), depois de nos informar que os três primeiros volumes da colecção Cosmonauta "tiveram do público uma aceitação invulgar". O que, além de desnecessário, é falso, pois é este o terceiro volume da colecção.

Daí a publicação oportunista, apressada e atabalhoada de títulos e colecções, antecipando de forma surpreendentemente exacta o mercado actual, onde as editoras correm atrás da "imagem", do "nome", do "tie-in", ao invés da qualidade intrínseca das obras. Parece despiciendo observá-lo, mas corram os olhos pelas edições de que já aqui falei, rebusquem nas vossas próprias colecções, em vossas casas, e depressa se aperceberão de que a maioria dos autores de então anuncia a "qualidade" da obra, o arrojado dos temas, a novidade das ideias ou, cedendo ao orgulho, os prémios arrecadados pelos livros ou pelos autores. Menos frequente, como no caso em apreço, apelo ao sucesso de vendas, à recepção do público, ao estatuto (ainda incipiente) de best-seller.

Esta corrida à moda da FC, não deixou de provocar os seus estragos; estragos que encontramos no aproveitamento célere de traduções brasileiras para o mercado nacional - com o brasileiro por vezes intocado, outras transformado de forma apressada em português; nas traduções de fraca qualidade, na confusão de títulos, na confusão de obras...

Exemplo claro de todos eles, este VIAGEM AO INFINITO de Anderson. Desengane-se o leitor que pensar que se trata do mesmo livro de que falei no post anterior. Apesar da quase simultaneidade de publicação - menos de um ano medeará entre ambos, atendendo ao autocolante colocado na contra-capa deste volume, anunciando "1972 - Ano Internacional da Leitura" - um mesmo título cobre duas obras distintas. Imagino a confusão do leitor que em 1972, desconhecedor das obras originais, procurasse identificar este livro.

A par do título, a Brasília Editora, do Porto, informa-nos que o volume que temos em mãos é a tradução portuguesa (da autoria de J. Ferreira de Almeida) da obra STAR KING'S (sic). Ora, Poul Anderson nunca escreveu um livro com esse título, nem antes de 1972, nem depois dessa data. Os leitores mais atentos, reconhecerão o título THE STAR KINGS, como pertencendo ao primeiro volume do díptico das aventuras de John Gordon que Edmond Hamilton esceveu em 1949. Levados pela informação da contra-capa, que anuncia um quarto-volume da série como sendo GUERRA NA GALÁXIA daquele Hamilton, ficará convencido de que se trata desse livro, traduzindo-se a capa e a lombada num erro gráfico que repetiu a capa do número 3 da colecção, que seria então a VIAGEM AO INFINITO de Anderson. Mas também esse leitor estaria enganado.

Também a capa não ajuda, sendo completamente alheia ao tema da obra, pese embora o atractivo da ilustração, tão ao gosto da corrente danikeniana tão em voga nessa altura.

É necessário ler o livro - apesar de não todo - para nos apercebermos de que se trata da tradução de STAR WAYS, primeiro volume do ciclo da Psychotechnic League que Poul Anderson publicou em 1956.

E assim se esclarece o mistério. Fica o leitor curioso em saber se o quarto volume foi realmente GUERRA NA GALÁXIA/THE STAR KINGS de Hamilton? Pois terá que aguardar pelo post de amanhã.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Um livro por dia: VIAGEM AO INFINITO



Nestes posts mais próximos quero falar-vos de um punhado de volumes de certa forma "estranhos" nalgumas das colecções que foram surgindo (e logo desaparecendo) concorrencialmente com a Argonauta da Livros do Brasil. Na verdade, são simples exemplos que demonstram que apesar do potencial de sistematização e organização oferecidos por uma colecção temática, o público leitor era frequentemente servido pela habitual desorganização - para não dizer caos - que sempre foi grassando neste tipo de esforços na realidade lusa. Na verdade, espero demonstrar, ainda que de forma enviesada, a origem de algumas das referências que foram informando os nossos directores de colecções e, quiçá, alimentando a entropia que paulatinamente vem impedindo o desenvolvimento de um esforço coerente de divulgação do género.

Para isso, e como ponto de partida, peguemos num exemplar normal da Série ANTECIPAÇÃO. VIAGEM AO INFINITO de Poul Anderson é o número 53 dessa colecção dirigida por Lima Rodrigues. A minha escolha não se prende com qualquer anomalia intrínseca deste volume - embora pudéssemos apontar desde já o erro no grafismo do apelido do autor em plena capa (não no interior, que idenifica correctamente o autor como Anderson). O alcance desta escolha tornar-se-á evidente no próximo post.

No entanto, este exemplar permite-nos desde já efectuar algumas observações menores. Começando pelo facto de que desde o número um a editora mudou de nome de Editorial Panorama para Galeria Panorama; em segundo lugar, que a par da goma que unia a face exterior das folhas garantindo ao leitor o carácter pristinal do seu exemplar, encontramos já o papel azulado, bastante agradável, que referi no post anterior. A própria editora informa-nos: "Este livro é impresso em papel especial, anti-reflexo, opaco e de cor, preparado cientificamente para a leitura nocturna", o que parece traduzir a participação numa campanha de incentivo à leitura. Coincidentalmente - ou não - 1972 viria a ser o "ano nacional da leitura".

VIAGEM AO INFINITO (Tau Zero) foi publicado originalmente em 1970, e embora o livro não identifique a sua data de edição nacional, podemos apontar com alguma segurança para finais de 1971 ou inícios de 1972 (o primeiro número da colecção, de acordo com a nem sempre fiável Bibliowiki foi publicado em 1967, e de acordo com o próprio volume, antes de Julho; admitindo que a colecção manteve uma publicação mensal mais ou menos regular, este volume teria sido publicado quatro anos e quatro meses após o primeiro, ou seja, por volta de Outubro de 1971). Sem estar ao nível do melhor de Anderson, é uma novela que joga de forma fascinante com os efeitos temporais relativisticos experimentados por quem se encontre a bordo de uma nave que viaje a velocidade próxima da da luz.

Embora o título da edição nacional não seja de todo descabido, é curioso notar a obsessão que as edições portuguesas votam ao "infinito", como se o momento histórico que se atravessava - uma ditadura em desintegração não inteiramente aparente, já com mais de quarenta anos - impusesse o sonho de um espaço de liberdade sem fronteiras que é simultaneamente significado de uma sentença (da História?) interminável (espaço infinito - tempo infinito).