quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Blood (The X-Files, s02e03, 1994)




Em meados dos anos 90, THE X-FILES dominava o panorama televisivo. Mesmo para quem não acompanhava a série, transmitida em Portugal pela TVI, a sua presença era sobrepujante, invadindo os intervalos publicitários, as capas das revistas, as conversas de café. O tema assombroso de Mark Snow era uma banda sonora omnipresente. E a imanente estupidez do empreendimento começava a contagiar a mundividência de muitos dos seus espectadores, que iam paulatinamente tornando-se consumidores acríticos de todo o tipo de teorias de conspiração.

Pela minha parte, nunca fui entusiasta da série, apesar dos elevados valores de produção, cenários deslumbrantes (sobretudo quando o pano de fundo eram as magníficas florestas canadianas) e ocasionais rasgos de criatividade nas narrativas. Para mim, eram essencialmente duas coisas que militavam fortemente em desfavor da série: por um lado, o metatexto cultural – o mesmo é dizer, o posicionamento voluntário do lado do irracional. Não podemos esquecer-nos de que THE X-FILES foi, entre 1993 e 2002, a jóia da coroa da programação da FOX, estação de televisão criada em 1986 por Rupert Murdoch, que construiu uma colossal fortuna prostituindo os meios jornalísticos ao serviço da divulgação de fenómenos pseudo-científicos, superstições, horóscopos e outras histórias de milagres (mais ou menos a mesma receita da série); Por outro lado, nunca logrei compatibilizar-me com Gillian Anderson, cuja incapacidade enquanto actriz se alia a um desencanto físico que me impede de compreender todo o culto de sex-symbol que se gerou em torno dela.



Já para não falar da interpretação seca e unidimensional do Fox Mulder de David Duchovny, década e meia antes do cativante Hank Moody que construiu para CALIFORNICATION (2007-presente). Talvez a sua prestação procurasse traduzir a alienação do próprio personagem, incapaz de integrar-se na orgânica cínica e politizada do FBI, marcado pelo evento traumático da abdução da irmã por alienígenas, e o seu afastamento para as periferias desenfranchisadas das teorias de conspiração (os Lone Gunmen), mas se essa era a ambição, ela é desmentida pela incapacidade de Mulder expressar qualquer emoção mais profunda, como se viu quando lhe foi pedido que quebrasse emocionalmente e chorasse em “One Breath” (s02e08, 1994), provavelmente o pior episódio da série.



Acresce que a dinâmica entre os dois personagens principais, o crente Mulder e a (supostamente) céptica Scully, arrasta-se, por via do pendor pseudo-científico e paranormal da série, muito para além de qualquer credibilidade, fazendo com que Scully, mais do que céptica, pareça essencialmente burra, por não ver a evidência que os próprios espectadores viram, uma e outra vez.



Assim sendo, e no que me diz respeito, foi preciso esperar pelo episódio “Blood” (s02e03), realizado pelo veterano da série David Nutter, com base numa história de Darin Morgan (argumento de Glen Morgan e James Wong) para encontrar algo de minimamente satisfatório. Dadas as reticências expostas supra, talvez não seja de admirar que este episódio assente essencialmente na personagem Edward Funsch, interpretada pelo inconfundível William Sanderson (celebrizado pelo seu desempenho como J.F. Sebastian em BLADE RUNNER e recentemente regressado aos ecrãs televisivos em TRUE BLOOD), que relega Mulder e Scully para um papel de meros figurantes, fazendo suas todas as cenas em que aparece e obrigando o telespectador a aguardar ansioso pelo seu regresso nas restantes.



Funsch é um funcionário postal em Franklin, no estado da Pennsylvania, que acaba de receber a sua nota de despedimento. O patrão, pouco à vontade, entrega-lhe o resultado de uma mísera colecta efectuada entre os colegas de trabalho, ao mesmo tempo que lhe pede que se mantenha no seu posto de trabalho até ao final da semana, o que não deixa de ser um curioso comentário sobre a “nova economia” que Clinton começava a pregar em terras do tio Sam (observe-se que o episódio em questão data de momento anterior à politização, à direita, da Fox). Funsch tinha acabado de cortar-se num envelope encravado numa correia de distribuição e, aparentemente na sequência desse corte, após ter ficado como que petrificado pela visão da gota de sangue na ponta do dedo, vê a instrução “kill… kill’em… kill’em all” no mostrador electrónico do aparelho.



O seu, porém, não é um caso isolado: no Centro Cívico, um homem mata aqueles que com ele viajam no elevador quando o indicador luminoso o adverte de que está a ficar sem ar; uma dona de casa mata violentamente um mecânico quando o aparelho de diagnóstico do motor a informa de que ele a tenciona violar. E, ao que parece, casos semelhantes têm-se multiplicado nas últimas semanas, o que leva Mulder a desconfiar da acção de um ou mais spree killers, ideia prontamente afastada quando é inesperadamente atacado por Bonnie McRoberts (Ashlyn Gere), a dona de casa assassina, que o xerife se vê forçado a abater. A autópsia levada a cabo por Scully revela a presença de níveis elevados de adrenalina, sinais fisiológicos de medo intenso e de resíduos de uma substância desconhecida, comum a todos os casos, e que poderá causar um efeito semelhante ao LSD. Uma visita aos Lone Gunmen, após Mulder ter visto um funcionário da Câmara a despejar uma pazada de moscas mortas nos canteiros locais, permite rapidamente identificar essa substância como sendo o LSDm, produto de um programa experimental de controlo de parasitas da agricultura. Tal substância, interagindo com as fobias de alguns dos habitantes, está na génese dos episódios de violência. Uma improvisada campanha de análise sanguínea permite identificar os potenciais infectados, mas tem o efeito de lançar Funsch, um hematófobo, no seu próprio delírio homicida, que encontra a sua frustre apoteose no alto da torre do relógio de um campus universitário.



O argumento, prenhe de linhas narrativas convergentes, oferece a oportunidade para brilhantes apontamentos visuais e culturais: quando encontramos pela primeira vez os Lone Gunmen (na sua segunda aparição na série) eles espreitam directamente para a câmara através de uma gigantesca lupa, subjectivando o espectador como objecto de observação, num curioso comentário que é tão válido quanto ao omnipresente governo, quanto ao escrutínio (tantas vezes ilegal) dos próprios teóricos da conspiração. A construção da cena de Bonnie na oficina mecânica segue quase religiosamente as regras visuais e narrativas de um filme de horror; a iluminação, o posicionamento dos personagens, o potencial duplo sentido que o ambiente ameaçador e a paranóia pessoal emprestam às informações prestadas pelo mecânico, convencem realmente o espectador (tanto quanto Bonnie) de que ela pode estar prestes a ser violada. E o casting de Ashlyn Gere, uma actriz porno ainda no activo, é uma escolha inspirada para comentar a paranóia anti-rape e anti-porn (quando não mesmo, anti-sexo) das principais feministas de terceira vaga, então muito em voga, como Catherine McKinnon e Andrea Dvorkin.



E há ainda um momento que procura definir a relação intelectual entre Mulder e Scully que funciona particularmente bem enquanto gerador de credibilidade diegética. Em Quantico, Scully lê o relatório de Mulder, onde este exaustivamente descreve todas as informações obtidas e confessa não dispor de qualquer pista. A certo passo refere “There have been reported abductee paranoia in UFO mass-abduction cases”, o que arranca a Scully o comentário “I was wondering when you’d get to that”, mas apenas para Mulder completer, desanimado, “I find no evidence of this to be the case”, o que de facto relega o mistério para o campo mais prosaico, e satisfatório, de uma explicação materialista, ao mesmo tempo que levanta o manto de maluquinho dos OVNI que podia asfixiar a personagem de Duchovni.





Infelizmente, nem tudo no episódio se mostra à altura destes momentos. E um dos problemas que me provoca mais urticária é precisamente o papel narrativo dos Lone Gunmen. É a eles que Mulder recorre quando se depara com as moscas que os funcionários camarários despejam pelos canteiros municipais (com objectivos nunca esclarecidos), no entanto as informações que estes lhe dão sobre a aparente causa de morte das moscas e a substância envolvida, não são de molde a permitir-nos supor que Scully não fosse igualmente capaz de as obter. Porquê, então, recorrer ao trio de cromos? Para além de uma troca de elogios múltiplos entre eles e Mulder (do qual a credibilidade de Mulder volta a ser diminuída depois do inteligente momento referido acima), a única coisa que os Gunmen aportam ao episódio é a exibição de uma cassete VHS com imagens de várias pessoas, incluindo crianças, a serem aspergidas com DDT em experiências governamentais nos anos 1950s. Tal facto não releva em nada para a diegese: se Mulder acredita no que eles lhe dizem, era desnecessário exibir-lhe as imagens; por outro lado, tais imagens não são secretas, nem tão pouco as experiências o foram, sendo pensadas para contrapor às teses de alguns cientistas que ainda nos anos 50 do século passado defendiam que o DDT seria tóxico para os seres humanos; por outro lado, na própria diegese, logo que confrontados com as informações, os responsáveis locais pelas aspersões não negam os factos, deslocando o argumento de uma linha conspirativa para uma idêntica à que Spielberg explorara em JAWS (1975), ie, a aspersão visa impedir a ruína da agricultura local, sendo os ímpetos homicidas um efeito secundário inesperado, cuja correlação se nega. Não obstante, os mesmos responsáveis concordam em suspender as aspersões e em efectuar o levantamento dos afectados por via das hemoanálises porta a porta. Assim sendo, o papel dos Lone Gunmen é, unicamente, extra-diegético: é convencer os espectadores, através de uma apresentação selectiva e enganosa dos factos, da realidade das teorias da conspiração. Não da particular conspiração do episódio em causa que, como vimos, nem sequer existe, mas das teorias de conspiração tout-court. E, nesse aspecto, é tão estúpido quanto pernicioso.

Blood”, porém, muda de tom (e de registo) quando a atenção se volta para Edward Funsch. Nele a paranóia é quase justificada, e o argumento fecha-se à sua volta como uma mortalha de coincidências fatais. Na verdade, é como se “Blood” sofresse se esquizofrenia narrativa, uma colagem desastrada de duas realidades diferentes num todo narrativo não totalmente harmonioso. A história de Funsch é um regresso aos excelentes thrillers paranóicos dos anos 70, a matriz cultural de onde nasceu esta THE X-FILES, aquilo que a série gostaria de ser mas de que não consegue mais do que uma pálida imitação. A sensação com que se fica é idêntica à que teríamos perante o enxerto de uma novela de Philip K. Dick entre as páginas de um livro de Dan Brown.



Isso é particularmente notório no tratamento diferenciado que a sua fobia recebe quando comparada com as demais. Se o executivo no elevador é levado a extremos homicidas pela sua claustrofobia e sensação de falta de ar, e a dona de casa reage de forma violenta perante um cenário e um ambiente que lhe gritam “violação!” aos ouvidos do inconsciente, a reacção de Funsch é tudo menos lógica, se é que podemos referir-nos à lógica perante comportamentos fóbicos irracionais. Atente-se, porém, que as mensagens que os diversos aparelhos electrónicos vão transmitindo aos afectados, podem sempre ser interpretados à luz de uma alucinação subjectiva como resposta adequada a um específico contexto de stress. Mesmo quando Mulder é directamente afectado pelo LSDm, recebe mensagens que o espectador tem por lógicas no contexto da obsessão do agente por fenómenos inexplicados e por alienígenas omnipresentes. O mesmo se passa com Funsch, quando o aparelho de controlo de entradas no autocarro lhe diz que “They’re wating for you. Get out. Get out, now!”, ou quando o micro-ondas de Bonnie a informa “He knows!”, antes de ela atacar Mulder. São, uma e outra, suposições normais de quem tem algo a esconder ou se prepara para levar a cabo algo reprovável, exacerbadas pela paranóia activada pelos químicos. Mas que razão levaria um hematófobo como Funsch, ao invés de reagir instantaneamente perante a visão de sangue, a optar por munir-se de uma carabina e perpetrar um massacre semelhante ao que Charles Whitman tinha levado a cabo em semelhantes circunstâncias na Torre da Universidade do Texas em 01 de Agosto de 1966? Como Mulder lhe diz quando o confronta no interior da torre, se ele atingir as pessoas, vai haver sangue… muito sangue.





A verdade, parece-me, é que Funsch, por assim dizer, não pertence a este filme. É uma personagem que transcende as limitações estruturais do formato televisivo e mereceria, talvez, o tratamento mais alargado de uma longa-metragem (correndo, porém, o risco de perder na comparação, por exemplo, com o interessantíssimo TARGETS de Peter Bogdanovich). Funsch é claramente um homem metódico, habituado a uma vida ordeira e ordenada, cujo ritmo é marcado pela máquina de etiquetagem que opera. A forma como insere os códigos postais através do teclado ajuda a realçar esse facto: a sua vida é feita de coordenadas, sem grandes desvios ou sobressaltos. O seu mundo começa a ruir precisamente quando uma carta fica encravada e ele corta um dedo ao tentar soltá-la. A gota se sangue que brota da epiderme ferida é um sinal da desordem entrópica que subitamente domina a sua vida. E que a domina literalmente. Não é de surpreender que ele, que leva uma vida mecânica, receba ordens (Kill… kill’em all...) da máquina que alimentou de informação até ser despedido. Aliás, não é despiciendo que sejam apenas os mostradores electrónicos, LED ou LCD que transmitam as ordens (tratando-se de alucinações, estas poderiam consistir no rearranjo das letras nos títulos dos jornais ou dos nomes das ruas) a todos os afectados. As máquinas, pensadas para facilitar o trabalho, são afinal um inimigo oculto, controlando os seus operadores, um cliché tão sixties e seventies que quase passa desapercebido. E todo o nosso mundo é controlado por máquinas e aplicações mecânicas ou electrónicas: são os computadores que fazem os diagnósticos mecânicos dos motores dos automóveis, os microondas que nos preparam as refeições, os terminais multibanco que nos enchem os bolsos. E, sobretudo, as televisões que nos formatam os padrões de comportamento, como nesse momento memorável em que uma parede de ecrãs repete constantemente as imagens de Charles Manson, Waco, e do espancamento de Rodney King num caleidoscópio da cultura pop do infotainment. É uma imagem da nossa cultura, da cultura Americana, da cultura do século XX, o século das máquinas e do estado social. Kill… kill’em all…



A imagem de Funsch diante dos ecrãs de televisão é a imagem de alguém que perdeu completamente o controlo da sua vida, alguém incapaz de compreender e abarcar a voracidade do mundo, filtrado pelas cadeias de televisão que o convidam a resolver os seus problemas através da aquisição de uma arma, esse grande equalizador universal. Mas nem uma arma nos pode ajudar quando o próprio universo está contra nós e, num momento inspirado (que quando visto pela primeira vez me pareceu demasiado forçado), logo que Funsch vê na televisão a notícia de que vai começar a processar-se a campanha de análise de sangue, a campainha da sua porta de casa faz-se ouvir de imediato, insistente (há quem diga que ditando a ordem kill kill kill em morse), como que querendo dizer-lhe que é o próprio universo que o tem debaixo de olho, que o impele a agir.





Não admira, por isso, que se refugie no interior de uma torre de relógio, cujo funcionamento necessariamente preciso promete a reposição da ordem perdida. A construção do conflito final, que é sobretudo um conflito interior, magistralmente traduzido pela interpretação de William Sanderson, é lamentavelmente desarmada pelo anti-clímax final, pouco inspirado e previsível, agravado pelo apontamento vácuo da última mensagem alucinatória que Mulder recebe no mostrador do seu telemóvel, (presumimos) com o dissipar dos últimos efeitos do químico, “All done, bye bye”, que não é mais do que um piscar de olho às expectativas de uma audiência que, em inícios dos anos 90, estava formatada para exigir sempre um twist final. É, ao fim e ao cabo, um final que encapsula a essência da série…

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

La Habitación del Niño (Álex de la Iglesia, 2006)




Uma das melhores ideias que enconrei num conto de FC recente, lido há alguns anos na Analog, dizia respeito a um casal que discutia por a esposa acusar o marido de ressonar, facto que ele negava categoricamente. Decidem, por isso, adquirir um gravador de activação automática para esclarecer quem tem razão. Ao ouvirem a gravação na manhã seguinte, descobrem o som de vozes no interior seu próprio quarto… vozes de alguém que falava sobre eles, enquanto eles estavam adormecidos, indefesos. É uma ideia literalmente arrepiante. O não me recordar do título ou do autor da história deve-se, principalmente, ao facto de o conto não se ter revelado à altura das expectativas. Algo que, desconfio, é normalmente verdade para a maior parte das lendas urbanas. São óptimas como premissa, mas uma vez exploradas, sujeitas ao crivo da realidade, conduzem quase sempre a conclusões ridículas.



E essa é a principal fragilidade deste LA HABITACIÓN DEL NIÑO, o primeiro (tele)filme da série PELÍCULAS PARA NO DORMIR, que procuram recuperar o espírito da série original de Narciso Ibañez Serrador, que passou na TVE (televisão pública espanhola) em três temporadas, respectivamente em 1966, 1967 e 1982. Artilhado com uma forte carga de temas e referências, desde o tropo da casa assombrada ao da necessidade de descobrir qual dos doppelganger é o real, passando por citações de inúmeros filmes e séries televisivas anteriores (desde a HAMMER’S HOUSE OF HORROR e de PROFONDO ROSSO a THE AMYTIVILLE HORROR e THE SHINNING), LA HABITACIÓN DEL NIÑO mantém a mente do espectador suficientemente ocupada para que adormeça a consciência da essencial falta de sentido da narrativa, embora não o bastante para a apagar por completo.




Juan e Sonia (Javier Gutiérrez e a deslumbrante Leonor Watling) mudam-se com o seu filho recém-nascido para uma casa que estão a restaurar e que conseguiram adquirir por preço muito inferior ao praticado para o bairro classe alta onde se situa. Quando obtêm um monitor de som para o quarto do bebé, ouvem a voz de alguém que fala com o recém-nascido. É o primeiro passo na curta estrada da entropia matrimonial, uma estrada bem conhecida de Jack Torrance e de muitos outros pais obcecados. Quando uma rápida busca pela casa demonstra que não existe qualquer intruso, o casal decide adquirir um monitor vídeo, através do qual Juan prontamente vê a figura sinistra de um homem sentado junto do berço. O medo não tarda a trazer ao de cima o pior da sua personalidade, permitindo a de la Iglesia escarafunchar com gosto nas feridas ainda abertas por sentimentos xenófobos bem vivos em países Europeus como a Espanha, a França, ou mesmo Portugal, bem como realçar o sempre presente receio da idade avançada e da decrepitude física (“Somos viejos, y los viejos estamos todos locos”, como diz uma das personagens). Quando o crescente grau de paranóia e os instintos de protecção da família o levam a quase matar acidentalmente Sonia, ela decide mudar-se com o bebé para casa dos seus pais, deixando Juan sozinho, livre para mergulhar nos abismos incontroláveis do desespero.






O terço intermédio do filme depende essencialmente da capacidade de Javier Gutiérrez para transmitir ao espectador o já bastas vezes representado mergulho na semi-loucura à medida que as coisas começam a escapar ao seu controlo, e nisso ele é muito bem sucedido, embora não esteja claramente ao nível de um Jack Nicholson, coisa que não pode ser usada contra ele. Infelizmente, o facto de Álex de la Iglesia lançar mão do estafado “perito no sobrenatural” que acaba por explicar as coisas ao atormentado protagonista – neste caso um jornalista equipado com umas quantas teorias de física quântica – esvazia atabalhoadamente de sentido as provações de Juan e praticamente destrói a coesão narrativa. O horror sobrenatural funciona ao seu melhor nível quanto é mantido no plano do simbólico, no plano do terror primordial, das coisas estranhas e inexplicáveis que se acolhem nos cantos mais sombrios e inexplorados da mente humana. Foi isso que fez de THE HAUNTING (1963), THE BIRDS (1963) ou THE SHINNING (1980) verdadeiros clássicos intemporais, que continuam a recompensar o espectador mesmo quando revisitados, uma e outra vez. Uma vez racionalizado o elemento do horror, este é sujeito a interrogações, e essas interrogações exigem total coerência para que aquele se mantenha; foi isso que transformou magníficos fracassos como PRINCE OF DARKNESS (1987) naquilo que são: fracassos.













E é isso que arrasta LA HABITACIÓN DEL NIÑO um par de degraus para baixo na escada que conduz à excelência. (Um conselho de amigo: se ainda não viram o filme, o melhor é saltar as próximas frases.) Acamado, e claramente um entendido no tipo de folclore ufulógico que domina o info-entretenimento da televisão espanhola contemporânea, o Domingo de Sancho Grazia expõe a Juan o célebre paradoxo do gato de Schrödinger, usando-o como analogia para o que sucede entre realidades paralelas, que por vezes podem ser entrevistas através de aparelhos eléctricos sempre que um intenso evento emocional logra impressionar a matéria – um processo a que ele se refere como imanência, tal como fazem os aldrabões da parapsicologia. Isso leva Juan a adquirir uma dúzia de vídeo-monitores sem fios, através dos quais pode explorar a realidade paralela que se esconde sob (ou por detrás) as aparentes camadas da casa que ele e Sonia adquiriram, com o grau de zelo que esperaríamos encontrar num especialista em segurança da NSA. E, através das portas da percepção que acaba por revelar – literalmente – é-lhe possível penetrar nessa outra realidade, apenas para ser confrontado com o seu doppleganger, bem como o de Sonia e do filho de ambos, enquanto protagonistas principais de um crime hediondo. Se tentas salvar o gato, disse-lhe Domingo, acabas por ficar no lugar dele, uma máxima que não encontra o mínimo de sustentação no postulado de Schrödinger, mas que aqui serve para dizer ao espectador que, se ele consegue entrar, então, alguém pode conseguir sair. E sai, embora as razões e os objectivos não sejam inteiramente satisfatórios. Sobretudo quando a atmosférica sequência que antecede os créditos iniciais do filme, situada nos anos 1930 (provavelmente nos primeiros tempos do regime Franquista, no final da década), nos mostra alguém que se projecta desde o “outro lado” e arrasta um miúdo, que vemos sair pouco depois – ou talvez apenas o seu doppelganger – com a ajuda de algo tão pouco sofisticado quanto um velho aparelho de rádio, o que faz com que o cenário contemporâneo e os modernos monitores pareçam de todo desnecessários. Tal como sucede, aliás, com a história secundária da velhota (María Asquerino) que ficou com o rádio dessa cena inicial e que é totalmente irrelevante para a narrativa principal.






E no entanto, pese embora as suas fragilidades, é um filme estranhamente fascinante. De la Iglesia e o director de fotografia José Luis Moreno criam uma atmosfera claustrofóbica e de crescente corrupção, que a montagem atenta de Alejandro Lázaro e David Pinillos transformam em algo quase palpável. Não há, que me recorde, outro filme que consiga executar com tanto sucesso o velho susto do “homem debaixo da cama”. Na verdade, onde o filme falha a nível intelectual, compensa largamente os espectadores em termos de imaginário, som e montagem, embora não consiga deixar de pensar que se perdeu uma excelente oportunidade quando de la Iglesia não aproveitou uma cena anterior – quando Juan desce as escadas, recuando perante o assassino invisível que apenas consegue ver através do monitor – que lhe poderia permitir, na sua posterior repetição, surpreender o espectador ao revelar que alguém atravessou as barreiras para o “nosso” mundo. Não seria muito mais eficaz se Juan deixasse cair o monitor, revelando que o assassino estava ali, em carne e osso?



Não obstante estas limitações, LA HABITACIÓN DEL NIÑO possui uma beleza técnica que transcende completamente as suas raízes televisivas, e a maravilhosa interpretação de Leonor Watling e Javier Gutiérrez, a par de um elenco de actores veteranos como Sancho Gracia, Terele Pavéz ou o cativante Antonio Dechent que, como patrão de Juan, domina o ecrã em cada uma das suas cenas, cria um filme que, apesar de não ser perfeito, não deixará de adicionar alguns momentos eficazes ao repertório de pequenos horrores dos aficionados do cinema de género.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

And All Through The House (Tales From the Crypt, s01e02, 1989)



Todos os anos, numa certa noite do ano, criancinhas de todo o mundo aguardam ansiosas a chegada do Pai Natal. Nessa noite, os pais pactuam com a ideia de que é perfeitamente normal deixar entrar em casa um perfeito desconhecido, que desce pela chaminé como um comum ladrão, só porque ele traz presentes. No resto do ano, os mesmos pais insistem que as mesmas criancinhas não devem aceitar rebuçados de estranhos, mesmo que eles pareçam uns senhores muito simpáticos. Se há melhor forma de criar uma sociedade esquizofrénica, é difícil imaginar.



Talvez seja por isso que simpatizo tanto com a personagem de Mary Ellen Trainor no episódio “And All Through the House” que Robert Zemeckis assinou para a série TALES FROM THE CRYPT (1989-1996). Quando a vemos pela primeira vez, no cenário doméstico da noite de consoada, está a pegar no atiçador da lareira, enquanto o marido (Marshall Bell) sorve um gole de um copo de whisky. A postura dele, as poucas palavras que profere, queixando-se do frio em tom ainda mais frio, levam-nos de imediato a uma sensação de antipatia pouco adequada à quadra. Ele é claramente alguém que trata mal a mulher. Provavelmente um executivo de escalão intermédio, ou o chefe de equipa de vendas de uma qualquer empresa local. À beira dele, a esposa parece frágil, como um copo prestes a transbordar.




Mas não é. O decorrer da acção não tarda a revelar-nos isso. O Natal é a quadra da família, dizem-nos. Mas é também, enquanto antecâmara do novo ano, uma época de balanços e recomeços. A nossa dona de casa – porque é difícil pensar nela de outra forma; sendo apenas identificada nos créditos como a “esposa”, sem nome que a individualize, ela é certamente alguém que hipotecou a sua individualidade à segurança económica nos braços de um marido de oportunidade – faz o necessário balanço da sua vida no espaço que leva a erguer o atiçador, e o saldo traduz-se no crânio trespassado do marido, decorridos que são apenas três minutos desde que fomos apresentados ao casal.

Há que livrar-se do corpo sem que a filha (fruto do seu casamento anterior) mandada para a cama com a garantia de que nessa noite o Pai Natal não podia vir, se aperceba, objectivo para o qual o poço no quintal da casa suburbana de Pleasantville promete ser meio adequado, e numa noite em que, diz-nos um alerta policial via rádio, que a nossa heroína não ouve, um lunático escapou do asilo e massacrou quatro pessoas nas respectivas residências, de uma das quais furtou um fato de Pai Natal, encontrando-se por isso apropriadamente vestido para a quadra.




É agora um mundo convertido num postal natalício pela excelente direcção de fotografia do prestigiado Dean Cundey que serve de cenário a uma luta de manha, vontade e determinação entre uma dona de casa acossada e a corporização de um pesadelo natalício que se apresenta sob a forma de um Pai Natal alucinado que em vez de presentes traz consigo um machado. A figura rechonchuda que a Coca-Cola nos legou, é substituída por uma criatura grotesca, sonho de qualquer frenologista, a cujo desempenho Larry Drake empresta a adequada dose de alucinação delirante.







A ameaça irracional do assassino à solta faz-nos esquecer o homicídio perpetrado pela nossa heroína, mesmo quando a vemos telefonar ao seu amante, dando-lhe conta da boa nova, e de que a fortuna do marido é agora deles; mesmo quando começamos a somar dois mais dois e nos apercebemos de que ela é uma caçadora de fortunas. Algo que o seu robe de seda vermelho, cor da luxúria e do pecado, cor do sangue e do Natal, já nos fizera intuir. Mas a vida é dura, dizemos a nós próprios com a titubeante firmeza do crente que se prepara para encher o copo dos convidados com água, na esperança de que esta se tenha convertido em vinho. Mas a determinação com que despacha o marido, com que faz frente ao maníaco que a persegue pelo quintal coberto de neve, com que se defende e ataca, obrigam-nos a torcer por ela, fazem-nos temer quando ela se apercebe de que não pode chamar a polícia pois tem o cadáver do marido ainda no quintal, e sorrir quando resolve telefonar à polícia dizendo que foi o maníaco quem matou o marido.



E a verdade, é que quase resulta. E nós queremos que resulte. Depois de tanto esforço, depois de puxarmos por ela, loura, desadequadamente vestida, pura imagem da fragilidade, de a vermos escapar uma e outra vez daquela força imparável de aspecto monstruoso, não queremos que ela acabe assim, traída pela inocência das crianças.







Há uma noite do ano em que lhes dizemos que é normal deixar entrar em casa um perfeito desconhecido, que desce pela chaminé como um vulgar ladrão, só porque traz presentes. E o tom ufano da inocência… I told you Santa would come, and he didn’t even have to come down the chimney. I let him in!... é muitas vezes equivalente ao ressoar fúnebre da morte.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

R.I.P.: Jean Rollin (1938-2010)



Eis um crédito cinematográfico que não mais voltaremos a ver. Com a típica indiferença da morte, faleceu Jean Rollin, pouco depois desse outro ícone do cinema de horror que foi Ingrid Pitt. Provavelmente para muitos dos que me lêem, o nome não quererá dizer muito, e certamente, evocará muito menos memórias do que o de Pitt. Mas para os verdadeiros cognoscentti, Jean Rollin era um mestre do surrealismo cinematográfico cujo génio foi aplicado, sem pretensões e sem hesitações, ao cinema do fantástico, do erótico e do sobrenatural.







Rollin tinha o dom da composição de enquadramentos verdadeiramente sublimes. Os seus filmes, apesar de um preponderante elemento de titilation (e nenhuma palavra portuguesa traduz tão bem este conceito), compõe-se de fotogramas que poderiam ser directamente traduzidos em pinturas dignas de figurar numa qualquer galeria de arte do macabro, do sensualmente macabro.









Muitos dos seus filmes, poder-se-ia mesmo afirmar que os mais memoráveis dos seus filmes, sobretudo os realizados no período mais fértil e criativo que experimentou nas décadas de sessenta e setenta, exploraram o tema do vampiro. E embora nenhuma das suas criações se tenha tornado tão eminentemente reconhecível quanto o Drácula da Universal ou da Hammer, foram certamente das mais arrojadas esteticamente, com especial destaque para o vampiro andrógino de REQUIEM POUR UN VAMPIRE (1971).







Sem perderem as suas características predatórias, os vampiros de Rollin não deixaram nunca de possuir uma aura animalesca; a sensação que deixam, é literalmente a de uma bestialidade latente sob as vestes adinheiradas (REQUIEM...), tão obviamente decalcadas de modelos anteriores do mito que sabem a pastiche, ou das peles que descobrem mais do que cobrem, como em LE VIOL DU VAMPIRE (1968). São, pós-morte, uma caricatura do que eram em vida, uma caricatura do humano, consumindo-se nos prazeres da carne - que somos levados a pensar que não são já capazes de sentir - enquanto consomem a carne e o sangue alheios. Não obstante, os vampiros de Rollin nunca são solitários, permanentemente rodeados de um séquito que parece parasitar esses magníficos seres deslocados, em proveito próprio e egoísta.

Uma coisa é certa, os vampiros de Rollin são aristocratas da decadência e, com os seus tiques, a sua sexualidade indefinida, o seu ennui e a sua bestialidade (muitas vezes meramente complacência pela bestialidade alheia), nunca seriam reconhecidos como tal pelos apreciadores acéfalos dos pirilampos desdentados da menina Meyer.







Foi em finais dos anos 80 que pela primeira vez me cruzei com um filme de Jean Rolllin, uma versão truncada e dobrada para inglês desse fabuloso REQUIEM POUR UN VAMPIRE. Atento o panorama videográfico contemporâneo, parece impensável que há apenas duas décadas fosse possível encontrar títulos como este nos clubes de vídeo. Apesar de cortado e de dobrado, abastardado sob o irreconhecível título O Castelo dos Vampiros (outro título sob o qual circulou foi o ainda menos apelativo Vierges et Vampires... menos apelativo, dependendo dos gostos, claro), foi um filme que obcecou durante anos, até conseguir identificar o realizador, e posteriormente, já no universo do mercado de DVDs, obter uma excelente versão editada pela revista Dark Side, que o apresentou numa duplo disco com o não menos fascinante FASCINATION (1979).



Os altos e baixos da vida fizeram que Rollin assinasse também uma plétora de filmes pornográficos, alguns banais, outros apresentando ainda marcas do génio visual do mestre francês. Nada que envergonhe um trabalhador honesto, e certamente algo melhor do que parasitar os equivalentes franceses, ou italianos ou espanhóis dos ICAMs e MCs que, aqui e ali, vão alimentando umas ténias longevas que nunca na vida lograram produzir cinco minutos de película paga com dinheiro do próprio bolso ou suor do próprio corpo. Mas será, sem dúvida o bastante para que Rollin nunca ultrapasse o circuito do cinema de culto e das referências elogiosas nos tomos que preservam a memória das obras de género.



Talvez Rollin não ambicionasse mais do que isso. Como um dos seus vampiros, nunca será reconhecido mundialmente, mas quem se cruzou com eles, jamais os esquece.