The arbitrement is like to be bloody.
William Shakespeare, King Lear. Devemos forçosamente hesitar antes de abordar um texto como
A Estrada e a Catacrese. Como um objecto estranho, circundámo-lo, entre curiosos e fascinados. Como uma daquelas ilusões estereópticas, oscila entre uma imagem que se quer afirmar e um caos colorido, sem sentido ou orientação. O pior de tudo, é não saber como o abordar. Sabemos que com paciência conseguiremos extrair a imagem da estática de cores, e ao mesmo tempo tememos que quando ela se forme, revele não ter valido a pena. E assim andei em volta dele sem saber como lhe pegar. Depois compreendi que a dificuldade estava em pegar-lhe sem que ele se desfizesse, sem que as frases se começassem a desenrolar despindo o vazio que tão cuidadosamente ocultavam. E o receio passa a ser outro. O texto é tão pessoal, a construção tão íntima do autor, que derrubando um, arriscámos derrubar o outro.
A verdade, é que a essência deste texto está no seu título. A Estrada, é claramente niilista, como ilustrada pela imagem de
MAD MAX (1979), uma
road to nowhere; a Catacrese é uma figura da linguagem que o Rogério aplica erradamente, pensando tratar-se da mera confusão entre dois termos. O seu texto é, assim, apenas isso: um erro que não leva a lado nenhum.
Porquê então abordá-lo? Porque devemos sempre admirar a valia de quem se lança na batalha, num campo que não é o seu, lutando
uphill em manifesta desvantagem. E quando o adversário é destemido, ainda que inconsciente, o melhor que podemos fazer é dar-lhe luta, honradamente. Nem que para isso tenhamos que o trespassar fatalmente.
Sobretudo porque a intenção do Rogério é boa. Ele realmente quer defender o Fantástico nacional, embora não se aperceba do tremendo mal que as suas hipérboles, neste caso concreto, lhe podem causar. Em última instância, vejo no Rogério um D. Quixote do fantástico nacional: depois de anos a vasculhar a profunda estrumeira que vem transbordando das
vanities sem lograr lobrigar as ansiadas pérolas literárias que está certo há-de um dia descobrir, levado pelo cansaço ou pela ilusão, pelo desespero ou desilusão, com os olhos cansados pela planura imutável que se estende à sua frente, opta por ver gigantes onde estão apenas moinhos de velas rasgadas, promessas de futuro onde morrem ontens cansados, venturas onde tudo é desventura.
Vamos então tentar não o machucar muito, certo como é que os seus erros não são de todo indesculpáveis, e a confusão demonstrada filha apenas da inexperiência, se não mesmo sintoma do eterno recomeço do Fantástico nacional que venho analisando numa outra
série de posts. Que o é, pelo menos em parte, transparece da sua afirmação de que o “nosso” cânone “
de momento pouco mais terá que o Frankestein, o Drácula, o Senhor dos Anéis, o Harry Potter, o 1984, o 2001, o Verne e o Wells”. Nesta espantosa frase, quase perdida na abundante verborreia jaculatória que domina o resto do texto, reside a essência do erro que lhe distorce a visão, como um par de lentes riscadas. Em primeiro lugar, a admissão de que o Fantástico nacional parece ser um mundo à parte, sem referências que não os picos mais visíveis da imensa frota de
icebergs que desliza pelos profundos oceanos da imaginação; um Fantástico morto de sede em pleno mar, incestuoso, incapaz de dialogar com o mais vasto corpo de textos estrangeiros que nunca foram traduzidos cá. Em segundo lugar, revela que não entende o que é o cânone, que deve pensar tratar-se de um panteão de obras sagradas, intocável, petrificado, com todas as conotações necrológicas que tal metáfora contém. Em terceiro lugar, soçobra imediatamente sob o imediatismo do eterno recomeço, incapaz de pensar para lá do fenómeno de vendas, do fenómeno social, confundindo – ou procurando confundir –o que significa o impacto de determinada obra sobre o tecido cultural ou as convenções genéricas, com os fenómenos de massa gerados pelas redes sociais. Um exemplo: desde 2001, todos vivemos sobre o impacto directo do 11/9. Não há livro que seja escrito, filme que seja lançado, que não esteja directa ou indirectamente influenciado por esse acontecimento. No entanto, nos dez anos decorridos desde então, não se escreveu ainda, nem se realizou ainda, o livro ou o filme que traduzisse a real dimensão desse evento na mesma medida em que, por exemplo,
THE DEER HUNTER (1978) traduziu o impacto da guerra do Vietname.
A influência de determinado texto não é apenas o do potencial de gerar imitação, ou consumo de massa.
The Da Vinci Code poderá ter imenso interesse como objecto de estudo social, mas nunca fará parte do cânone literário, como ficou já demonstrado pela própria efemeridade do seu sucesso. Também não se pense que tem apenas a ver com qualidade: "Doc" Smith nunca será visto como um autor de grande mérito literário, tal como H.G. Lewis não será visto como um grande cineasta, e no entanto, poucas obras tiveram tanto impacto e ao longo de tantas gerações como as
space operas do primeiro e o
BLOOD FEAST (1963) do segundo. E não obstante, não os encontraremos no cânone.
Mas o objectivo deste texto não é pôr a nu a crescente confusão do Rogério; isso seria demasiado simples e bastar-nos-íamos com rebater ponto por ponto os seus argumentos específicos; interessa-me mais descobrir a
raison-d’être que está subjacente aos erros proferidos, e essa não é menos simples de elucidar, mas mais importante de esclarecer: pergunta o Rogério “
do que servirão estudos académicos sobre literatura fantástica nacional, se não acompanharem também, em tempo real, a evolução do campo?”. Poderíamos dizer que o Rogério procura apenas recuperar os argumentos estafados da
Reflection Theory que nos diz que a evolução, em geral, de determinado campo cultural, reflecte a evolução em geral da sociedade. No entanto, e tal como Robin Wood (referindo-se ao cinema), também eu, enquanto a ênfase estiver no ‘em geral’, não vejo motivos para por em causa esse método de interpretação. Mas, tal como ele, também acredito que “
as soon as one gets down to specifics, however, it proves far too simple: (…) within the overall movement there appear cracks, disruptions, countercurrents” (in
Hollywood from Vietnam to Reagan, Columbia University Press, 1986) o que diminui seriamente a sua valia. Mas o mais importante é observar que tal como a discussão do cânone desvia a atenção do que é importante, esta questão desvia a atenção da insuspeita importância do cânone. A confusão do Rogério é clara: ele confunde o estudo académico do género, com o estudo académico de um trabalho específico (neste caso, a tetralogia de Madalena Santos), e nessa medida traduz também a sua confusão entre o trabalho da academia e o trabalho da crítica.
Mas é talvez nessa confusão que o Rogério se mostra mais impreparado e mais filho do seu tempo (ou talvez de José Jorge Letria), assumindo-se como a corporização de uma posição cultural que é já um deprimente cliché, exacerbado pela ilusão democratizante das redes sociais e pela erosão da qualidade das Universidades desde a publicação do texto seminal de Fredric Jameson, “
Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism” (
New Left Review, 1984) e a tomada de assalto das Faculdades de Letras pelas histéricas teóricas dos Estudos Feministas, Marxistas e Multiculturalistas, acompanhadas das fraudes intelectuais de Lacan, Foucault, Kristeva, et. al.
Como escreveu Martin Amis, na introdução de um dos meus livros de cabeceira,
The War Against Cliché (Vintage, 2002), numa passagem algo extensa, mas que julgo de todo pertinente transcrever quase na íntegra, “
Literary criticism, now almost entirely confined to the universities, thus moves against talent by moving against the canon. Academic preferment will not come from a respectful study of Wordsworth’s poetics; it will come from a challenging study of his politics – his attitude to the poor, say, or his unconscious ‘valorization’ of Napoleon; and it will come still faster if you ignore Wordsworth and elevate some (justly) neglected contemporary, by which process the canon may be quietly and steadily sapped. A brief consultation of the Internet will show that meanwhile, at the other end of the business, everyone has become a literary critic – or at least a book-reviewer. Democratization has made one inalienable gain: equality of the sentiments. I think Gore Vidal said this first, and he said it, not quite with mockery, but with lively skepticism. Nowadays, nobody’s feelings are more authentic, and thus more important, than anybody else’s. This is the new credo, the new privilege. (…) The reviewer calmly tolerates the arrival of the new novel or slim volume, defensively settles into it, and then sees which way it rubs him up. The right way or the wrong way. The results of this contact will form the data of the review, without any reference to the thing behind. And the thing behind, I am afraid, is talent, and the canon, and the body of knowledge we call literature.”
Compare-se com aquilo que o Rogério escreveu (“
As resenhas não almejam a constituição, ou imposição, de um cânone pessoal. São um reflexo da minha reacção como leitor às obras, e uma tentativa de enriquecer essa leitura com algumas considerações que me parecem relevantes no quadro das próprias obras, e do seu enquadramento no panorama do fantástico nacional (e por vezes internacional)".) e não admira que ele considere ridículo um exercício verdadeiramente crítico. (“
Imagine-se o ridículo de tal exercício”.)
Pelo contrário, considero que se alguém defende que determinada obra merece ser estudada pela academia, ou que uma outra ocupa um lugar de destaque no momento presente do desenvolvimento do género, deve forçosamente ir além da mera opinião pessoal e qualificá-la com exemplos concretos. Mas quais são os fundamentos (“factos”, diz ele, sem se rir, mas sem evitar fazer-nos rir) que justificam as suas considerações?
“
A série As Terras de Corza abarca quatro volumes, publicados em cerca de cinco anos. Ambientada num universo inventado, na sua maioria imbuída de um tom de fantasia épica, apresenta-se desde início com especial consistência e originalidade. Dando de barato a idade da autora, ressalta na obra um rico conteúdo reflexivo, nomeadamente sobre o papel da mulher, e a natureza da conquista e manutenção do poder, entre outros temas que perpassam a série. Outro facto não negligenciável é a competência com que o arco da história foi iniciado, percorrido e encerrado; concedendo-lhe um esqueleto que efectivamente cimenta a saga numa obra única e coerente. Contrariando o deslumbramento que poderia advir a uma autora tão jovem, a história não se desvia da sua espinha-dorsal, o que faz com que muitos temas sejam apenas aflorados no que impactam directamente nos personagens, apesar de se intuírem maiores ponderações e motivações da autora nos bastidores.”
Atente-se bem (entre parêntesis factos que o texto não esclarece): Quatro volumes. Publicados em cinco anos. Universo inventado. Tom de fantasia épica. Consistência (a que nível?) e originalidade (em quê?) Idade da autora (como se reflecte na obra?). Rico conteúdo reflexivo sobre o papel da mulher (qual é e em que se traduz esse conteúdo?) e a natureza da conquista (de quê, qual é, e de que forma se traduz?) e a manutenção do poder (manifestada de que forma?). Competência do arco histórico (qual a estrutura, e em que medida de afere essa competência face à complexidade do arco narrativo? E qual é esse arco?) Unicidade e Coerência da obra (Única em quê? Coerência a que nível?). E assim por diante,
ad infinitum, ad nauseam…
Na realidade, experimente o leitor (quer neste post do Rogério, quer na resenha inicial) substituir “a série
As Terras de Corza” por “a saga
A Song of Ice and Fire”, ou por “as
Crónicas de Allarya”, e disporia exactamente dos mesmos elementos para aferir da validade daquilo que o Rogério nos diz.
O caso do Pedro Ventura, como nos é dito, e concordamos, é ainda mais rápido de consubstanciar, pois os erros são os mesmos, a redução da análise literária ao gosto pessoal ainda mais gravosa (“
é um livro que o leitor ou adora ou odeia”, como se o livro não tivesse vida para além da subjectividade do leitor); o afã de engrandecimento é tal que quando o Rogério nos diz que “
A linguagem utilizada poderá revelar-se outro ponto de ruptura. Assumidamente grandiloquente, poderá para alguns leitores ser insuportavelmente pomposa”, ficamos sem saber se está referir-se a frases ineptamente verborreicas como “
(…) uma mulher que estava nesse grupo contou-me que perguntou ao Darkleton o que o levava a prestar-se a cometer um tal acto de coragem” (p.291) ou a clichés banalizantes como “
Não te preocupaste em saber como eu estava quando me deixaste....” (p.111).
O que fica é a confissão de um desespero, se calhar inconsciente, de não conseguir encontrar a obra de qualidade que almeja revelar. Mas ao emprestar a tais obras as hiperbólicas qualidades que só ele vê rodando entre as brumas da planície, nas velas rotas de um moinho que não chega a ser gigante, não é só D. Quixote quem fica pendurado com os fundilhos a espreitar dos andrajos que pensava ser uma armadura, são também os verdadeiros gigantes que se vêem reduzidos à dimensão de moinhos mal amanhados.
Talvez para a próxima, em vez de beber dos delírios bélicos de
Henry V, o Rogério ouça o conselho mais sóbrio e ponderado de Polonius, antes de se lançar numa campanha dominada pela emoção:
Ay, springes to catch woodcocks. I do know,
When the blood burns, how prodigal the soul
Lends the tongue vows: these blazes, daughter,
Giving more light than heat,—extinct in both,
Even in their promise, as it is a-making,—
You must not take for fire.
William Shakespeare,
Hamlet