sexta-feira, 16 de setembro de 2011

domingo, 5 de junho de 2011

Domingo a 4 Cores (1): FLASHPOINT: BATMAN: KNIGHT OF VENGEANCE #1

Com a anunciada intenção da DC renumerar todas as suas séries a partir do #1 já em Setembro, com o lançamento simultâneo de 50 “novos” títulos (the mind boggles) só nesse mês, todos os olhos estão concentrados no arco narrativo FLASHPOINT, conduzido pelo mestre Geoff Johns (texto) e o veterano Andy Kubert (desenhos), que nos apresenta (outra vez) uma realidade alternativa do universo DC onde Superman se encontra prisioneiro do governo, Cyborg é o herói central da cronologia DCU e o manto de Batman é vestido por Thomas Wayne, pai do histórico Bruce Wayne. É esta última alternativa que Brian Azzarello e Eduardo Risso exploram na mini-série de três números FLASHPOINT: BATMAN: KNIGHT OF VENGEANCE. Partindo da possível vida alternativa do casal Wayne proposta (e reputada falsa) no arco narrativo BATMAN R.I.P. e posteriormente na série BATMAN & ROBIN, Azzarello apresenta-nos aqui um Batman muito mais cínico e violento do que aquele a que estamos habituados. Dado a resmungos quase ininteligíveis, financia a sua luta contra o crime através da exploração de uma rede de casinos semi-ilegais, ao mesmo tempo que controla a polícia privatizada de Gotham.



Quando os filhos gémeos de Harvey Dent são raptados pelo Joker, Batman tem que os recuperar sãos e salvos sob pena de o procurador lançar uma guerra contra os seus casinos e hotéis. Numa primeira tentativa de localizar o Joker, Batman segue o rasto de uma série de desaparecimentos de sem-abrigo e drogados , acabando por enfrentar um Killer Croc on steroids nos esgotos da cidade, naquele que é um dos quadros mais impactantes que me lembro de encontrar no DCU: os gemidos que ecoam nos esgotos, parecendo anunciar o inferno (hell… hell…) acabam por se transformar em pedidos lancinantes de ajuda (hellp uss…), oriundos de um grupo de indigentes amputados, claramente um depósito de alimento fresco conservado pelo assassino. Os vários níveis de alegoria são transparentes, mas ajudam a firmar este novo Batman na consciência dos leitores, tal como sucede com a recriação daquele momento seminal em que o assaltante surpreende a família Wayne à saída do cinema, e lança a mão ao colar de pérolas que se desfaz num turbilhão de bolhas de ar que passam do amarelo lamacento ao vermelho sanguíneo numa tradução visceral da asfixia de Thomas Wayne prestes a ser afogado pelo Killer Croc.



A Gotham representada por Risso é tão esquálida e desbotada que os próprios néons do casino de Wayne parecem ser sugados pela palidez dominante, e apenas num único momento o por do sol confere algum calor às fachadas vertiginosas, que surgem das brumas da poluição que se ergue do solo como o hálito pútrido das entranhas urbanas.Com uma primeira parte quase expositiva, e um segundo acto praticamente desprovido de texto, em que a narrativa fica entregue aos visuais de Risso e Patricia Mulvihill (cores), este primeiro número é um magnífico exemplo de concentração narrativa, apresentando ao leitor um mundo rico em textura, preenchido de referências que permitem perceber os vários pontos de contacto entre este universo e a cronologia DCU standard, ao mesmo tempo que nos desafia a apreciar um Batman tão ou mais violento que os seus próprios adversários. Sem dúvida, um dos títulos mais interessantes do batuniverso, que não tem sido escasso em títulos interessantes nos últimos anos.

Domingo a 4 Cores (1): BATMAN: GATES OF GOTHAM #1

No pólo oposto de BATMAN: ARKHAM CITY situa-se este primeiro número de uma outra mini-série de cinco, com argumento de Scott Snyder e Kyle Higgins, que a arte de Trevor McCarthy traduz magistralmente num chiaroscuro cheio de contrastes. Na verdade é a arte, e sobretudo a cor (a cargo de Guy Major), que conduz o olhar do leitor pela geografia ucrónica de Gotham, uma cidade de sombras e trevas, quer literais, quer figurativas. Numa narrativa que encontra o seu início em 1881 no projecto de arranha-céus e pontes com que os founding fathers da cidade (as quatro grandes famílias, entre as quais as famílias Wayne, Cobblepot, Elliot, e uma quarta ainda não desvelada) pretendem escorar o futuro, e estendendo-se à destruição terrorista de três dessas pontes no presente que serve de ponto de partida a esta BATMAN: GATES OF GOTHAM, é o uso ponderado de pequenas manchas coloridas (luzes de veículos de emergência, candeeiros de iluminação pública) numa paisagem soturna, muitas vezes cortando a página de ponta a ponta, que atrai o olhar do leitor e adensa ainda mais a atmosfera opressiva de uma cidade escura e cheia de mistérios.



Especial destaque merece o uso dos vermelhos, seja no vestuário, seja na iluminação interior do cockpit do submersível com que Batman se depara com cadáveres em suspensão nas águas lamacentas do rio, ou mesmo nas luzes das ambulâncias e carros de polícia, que permite acentuar ainda mais a ameaça que pende sobre a cidade.


A acção é representada em sequências bastante dinâmicas (a fazer lembrar o DAREDEVIL de Miller, mas muito aquém dele), ora com concentração de movimentos num único painel, ora com a sua distribuição em pequenos pormenores gestuais contaminantes de toda a página. O visual de Gotham é aquele a que já nos habituamos, uma cidade entre o gótico europeu, uma metrópole pulp decadente, com os céus pontilhados de zeppelins que seriam anacrónicos nos céus de Metrópolis, e uma moderna paisagem urbana de arranha-céus vidrados entre os agulhões de alvenaria da viragem do século. Neste primeiro número, Batman (Dick Grayson, claramente já no universo BATMAN, INC.), auxiliado por Red Robin, Robin e Cassandra Cain (ex-Batgirl, agora Blackbat), começam a juntar as peças deste puzzle histórico, que termina com um delicioso cliffhanger de contornos retro-pulp quando o suposto terrorista (que Cobblepot, o Penguin, nos informa vestir “a rather interesting lookng suit”) se revela com uma vestimenta retrofuturista que nos faz invocar imediatamente imagens de potenciais crononautas wellsianos. Uma série a seguir com atenção.

Domingo a 4 Cores (1): BATMAN: ARKHAM CITY #1

Não sou grande apreciador de tie-ins para videojogos, mas depois de ter sido convertido pela série DC UNIVERSE LEGENDS ONLINE, não resisti a experimentar este primeiro número de uma série limitada de cinco que visa fazer a ponte entre os jogos BATMAN: ARKHAM ASYLUM e BATMAN: ARKHAM CITY, ambos escritos por Paul Dini e com o visual a cargo de Carlos D’Anda, dupla que assina também esta mini-série. Cronologicamente situada um ano depois dos eventos descritos no primeiro jogo, BATMAN: ARKHAM CITY apresenta-nos os resultados da revolta dos prisioneiros do Asilo epónimo, quando Quincy Sharp, à data seu director e agora Presidente da Câmara de Gotham resolve apertar o cerco aos super-criminosos (e aos outros) murando metade da cidade e convertendo-a numa prisão à la ESCAPE FROM NEW YORK (John Carpenter, 1981). Como tie-in, este primeiro número cumpre a sua função de apresentar sumariamente o universo narrativo – se não mesmo demasiado sumariamente – precipitando uma catadupa de acontecimentos em ritmo verdadeiramente pulpesco: com o Joker (deliciosamente insano) uma vez mais prisioneiro de Arkham e a ser carcomido pelo lento aproximar da morte (que alguns dos responsáveis da instituição não se importariam de acelerar), encerrado numa cela a poucos metros daquela em que Harley Quinn suspira por ele, sabendo apenas que está vivo pelo louco gargalhar que ecoa pelos corredores góticos do edifício, Dini introduz-nos um par de irmãos de físico aumentado por injecções da titan formula contrabandeada para Gotham e roubada a Two-Face, e que pretendem assenhorear-se da cidade durante a inauguração do novo edifício da Câmara Municipal, numa trama que se repete vezes sem conta nas histórias de Batman, seja nos comics, seja no cinema. Obviamente, Batman intervém, desta vez equipado com botas e luvas revestidas com espuma explosiva que deflagra com o impacto da pancadaria, mas embora consiga derrotar os irmãos Trask (T&T), não consegue evitar que estes se façam explodir num martírio apoteótico que provoca trezentos mortos e a total obliteração do novo edifício. Ao chegarmos ao final deste primeiro número, todas as rodas foram colocadas em movimento, lançando uma série de ganchos narrativos que estruturarão o plot nos quatro números restantes: apercebendo-se da ameaça de morte que pende sobre o Joker, Harley desenvolve claramente um plano, e ficou mais do que óbvio que quer o mayor Sharp, quer os irmãos T&T, são marionetes de alguém que se encontra nos bastidores. Há nitidamente um sinistro arquitecto por detrás destes acontecimentos inaugurais, e a disposição das peças promete uma sequência alucinante.



Os desenhos de D’Anda, muito melhor na arquitectura do que nas figuras humanas, capturam adequadamente o ambiente da narrativa mas sem deslumbrar, e acompanham a trama encavalitada de Dini sem dificuldades de maior. Um começo interessante apesar de algo banal, prejudicado sobretudo pela tremenda concentração narrativa em tão poucas páginas. De destacar o excelente trabalho de cor de Gabe Eltaeb.

sábado, 28 de maio de 2011

Hell hath no fury like a worn cliché




A hárpia desperta no cimo do seu rochedo, ainda com um bocado de fígado entalado entre dois dentes. Desperta com uma comichão que já há uns dias a vem incomodando, sorvendo a cada hora um pouco mais da sua tranquilidade, alastrando metástases pela sua capacidade de apreciar as cores e os sabores da vida. As pessoas irritam ainda mais a sua comichão, o mundo sabe-lhe a fígado podre. E tudo por causa dos opinadores. Ou, pelo menos, daqueles que opinam em sentido contrário ao dela. Atrevidos. Sarnentos. Invejosos. Está que não pode. Quase rebenta. Quase não, rebenta mesmo, e sai à praça, num esganiçar de prego a raspar em alumínio (ai, esta comichão que me não larga) e é a imagem viva da indignação. Irrompe pela turba, rasga as vestes, arranca os cabelos, arranha o peito desnudo, dá palmadas de contrição, como quem espanta sabe-se lá o quê. É a imagem viva da virtude ultrajada… em suma, um cliché. Ela sabe que o é, mas sente um perverso prazer pessoal na inversão dos papéis. Não é o cavalheiro que sai em defesa da dama; é ela que sai em defesa do oprimido. E brada, na praça, de braços erguidos ao céu distante, como que amaldiçoando-o por se não deixar agarrar. Ela leu livros de todas as cores: o livro negro do fascismo, o livro azul do Hynek, o livro de contos do padre Castanho, e o livro vermelho de Mao, mas nenhum se compara ao Livro, único e verdadeiro, sacrossanto sobre todos os outros, o livro da Boa Venturança. Não fosse a comichão. A comichão que dá forma ao seu pensamento, que molda o conteúdo. Não, não, berra, não há conteúdo.

Escusado será dizer, que ela não berra verdadeiramente, nem rasga as vestes, nem se coça desesperada, mas a sua escrita é de uma tal sinestesia, que se traduz nos sentidos como som e fúria, a cavalgada das Valquírias na ponta dos dedos, o Hino à Alegria no iluminar do ecrã. Um caso exemplar de forma a dominar o conteúdo, a transformá-lo num cliché. Hell hath no fury like a woman scorned. A não ser, talvez, uma mulher desprezada por interposta pessoa. Ou por interposto livro. Ai a comichão.

A comichão, e o livro, e a matéria de que se faz a literatura. A literatura é representação, a literatura é transcendência; a literatura é, no melhor dos casos, um reflexo do que podemos ser, no pior, o espelho da nossa banalidade. A literatura é, quando trabalhada por quem lhe quer bem, uma luta incansável contra o cliché, contra a representação banal do banal. Porque até o banal pode ser transcendente. Seis mil milhões de pessoas à face da Terra, neste momento, permitem-nos supor que praticamente doze mil milhões delas terão experimentado, pelo menos uma vez na vida, os prazeres do sexo. Nada pode ser ao mesmo tempo mais banal e mais transcendente do que o sexo. Nada gera mais clichés do que o amor. Um milhão de adolescentes queixar-se-ão todos os dias, um pouco por todo o mundo, da namorada que os deixou e que não quis saber deles. Escrevê-lo assim, com todas as letras, com a banalidade de uma novela da TVI, de um episódio dos Morangos com açúcar, é um cliché. Escrevê-lo num contexto que nada contribui para a evolução da narrativa, é um cliché forçado, inserido a martelo por um escritor inábil que não sabe como dar personalidade às suas personagens. Imaturidade? Talvez. Mas voltemos à comichão primordial. Abordemos um dos maiores clichés da literatura: a perda da virgindade. Todos a perdemos um dia, e em mais do que um sentido. Martin Amis chama a atenção para uma dessas cenas em Making Love: An Erotic Odyssey (1992), uma falsa autobiografia de um tal Richard Rhodes: “My heart started pounding. I was avid. I was also terrified (…) Gussie’s body was a woman’s body, generous and real (…) I lay on the bed filled with happiness, one with the universe (…) It was springtime. I jumped into the air and clicked my heels.” Tudo nesta cena é um cliché. O ambiente, as personagens (um rapaz virgem na visita a uma prostituta – que revela ser golden hearted, ao contrário da nossa hárpia. Bem feita que continue com a comichão), as expressões utilizadas… Sim, as expressões utilizadas.

Compare-se com a completa fuga ao cliché que encontramos numa pequena preciosidade de Ed McBain (Evan Hunter) que dá pelo título Guns (1977). A cena é a mesma: o momento em que o nosso herói vai perder a virgindade. Ele é Colley, um jovem obcecado por armas, que matou pela primeira vez aos dezasseis anos, mas que ainda é virgem aos vinte e nove. Ela é Jeanine, uma stripper que já não é virgem há muito, mas que acaba de matar o seu primeiro homem (uma outra forma de perder a virgindade). O sexo que se inicia está marcado pelos fantasmas habituais – performance anxiety, talvez instigada pelo irmão dele que sempre lhe dissera que as armas são símbolos psicológicos para o pénis (um cliché), mas também pela euforia dela pelo assassinato que acabara de cometer (com uma faca, símbolo fálico por excelência - outra vez a inversão dos papéis). As tensões transformam aquela primeira experiência num duelo magnífico, onde o sexo é equacionado por ele com os mecanismos de uma arma, e por ela como uma forma de recuperar o domínio sobre a falocracia.


Colley loved guns, there was no question about that. He remembered His various guns now as Jeanine whispered in his ear, urging him to explode inside her. She’d killed one man in the kitchen by stabbing him to death with a fourteen-inch blade, and now he suspected she wanted to kill another one here in the living room by fucking him to death. He sensed it would be dangerous to leave this woman unsatisfied; (…) Willfully, he thought of guns. Lovingly, he thought of their parts. (…)
He’d disassembled enough of them to know that their design was basically simple. He thought of that design now, concentrating on what caused the explosion in the barrel of a pistol, refusing to obey her whispered urgings, knowing he could not himself explode inside her or he would one day pay for it. She herself was paying all her markers, and perhaps that’s all she wanted or needed to do (…) But he felt certain she was testing him somehow, having utterly destroyed a man bigger and stronger than himself and wanting now to reduce him similarly (…). He was afraid of leaking his juices inside her vault. He was afraid that would be the same somehow as Jocko leaking his blood on to the kitchen floor. She suddenly rolled him off her. She sat up.
Her mouth descended.
In the simplest of pistols, like the Colt.22 Derringer, there were only seventeen parts, and you could assemble the gun from scratch for about twenty-five dollars. In a more complicated gun, like the German Luger, there were fifty or more parts. Colley new the names of the parts (…) Front sight and breechblock, toggle joint and firing pin, trigger bar spring stud…
He was frightened now. His mind frantically grasped for other names, breechblock catch link rivet (…).
There was nothing subtle about her attack now. She no longer wished to tantalize with slow bumps and grinds learned on rickety stages in smoky saloons. Her breathing was labored as she worked him liquidly, he was melting into her mouth, he was loosing himself to her, he twisted his head violently…
In any gun, the cartridge sat in a narrow metal shaft. It was composed of case, primer, powder and bullet. When the trigger was squeezed, the spring action caused the firing pin to strike the back of the cartridge case, denting it and simultaneously causing an explosion to fulminate…
She lifted her mouth for just an instant.
‘Come, you son of a bitch’, she whispered.
…igniting the powder and propelling the bullet from the shaft.


Não é necessária uma única referência ao suor, ao bater do coração, ao estado emocional de cada um. E no entanto está tudo lá, no ritmo da linguagem, na homofonia dos termos, na analogia das distintas mecânicas. Não se encontra aqui um único cliché (a não ser, talvez o “melting in her mouth”), um único “e os dois foram um” ou “comunhões com o universo”, ou o cigarrinho pós-coital.

Um cliché é um acto, uma expressão, uma cena, uma situação, uma personagem. Uma música pode ser um cliché. Um cliché pode ser uma voz quando é usada para imitar a percepção generalizada de um povo, ou de uma região. Um cliché pode ser um comportamento, pode ser uma reacção. O cliché está no coração da caricatura. A nossa hárpia de vestes esfarrapadas, peito retalhado e comichão imparável encarnou a mais velha das caricaturas, o mais batido dos clichés. Afinal, já James Blish dizia que acusar um crítico de ódiozinhos pessoais era apenas sinal de que alguém tinha sentido os calos pisados. Também costumava dizer que era coisa que passava com a idade.

Escolhi os exemplos deste texto numa tentativa de levar a forma ao encontro do conteúdo. Tudo isto parece já uma mera conversa de cama, onde só falta virem falar de frustrações freudianas e sublimações edipianas. Mas, por vezes, querida hárpia, o meio é realmente a massagem, e a forma é também o conteúdo. O problema não é a comichão. É o fígado entre os dentes.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A Road to Nowhere



The arbitrement is like to be bloody.
William Shakespeare, King Lear.


Devemos forçosamente hesitar antes de abordar um texto como A Estrada e a Catacrese. Como um objecto estranho, circundámo-lo, entre curiosos e fascinados. Como uma daquelas ilusões estereópticas, oscila entre uma imagem que se quer afirmar e um caos colorido, sem sentido ou orientação. O pior de tudo, é não saber como o abordar. Sabemos que com paciência conseguiremos extrair a imagem da estática de cores, e ao mesmo tempo tememos que quando ela se forme, revele não ter valido a pena. E assim andei em volta dele sem saber como lhe pegar. Depois compreendi que a dificuldade estava em pegar-lhe sem que ele se desfizesse, sem que as frases se começassem a desenrolar despindo o vazio que tão cuidadosamente ocultavam. E o receio passa a ser outro. O texto é tão pessoal, a construção tão íntima do autor, que derrubando um, arriscámos derrubar o outro.

A verdade, é que a essência deste texto está no seu título. A Estrada, é claramente niilista, como ilustrada pela imagem de MAD MAX (1979), uma road to nowhere; a Catacrese é uma figura da linguagem que o Rogério aplica erradamente, pensando tratar-se da mera confusão entre dois termos. O seu texto é, assim, apenas isso: um erro que não leva a lado nenhum.

Porquê então abordá-lo? Porque devemos sempre admirar a valia de quem se lança na batalha, num campo que não é o seu, lutando uphill em manifesta desvantagem. E quando o adversário é destemido, ainda que inconsciente, o melhor que podemos fazer é dar-lhe luta, honradamente. Nem que para isso tenhamos que o trespassar fatalmente.

Sobretudo porque a intenção do Rogério é boa. Ele realmente quer defender o Fantástico nacional, embora não se aperceba do tremendo mal que as suas hipérboles, neste caso concreto, lhe podem causar. Em última instância, vejo no Rogério um D. Quixote do fantástico nacional: depois de anos a vasculhar a profunda estrumeira que vem transbordando das vanities sem lograr lobrigar as ansiadas pérolas literárias que está certo há-de um dia descobrir, levado pelo cansaço ou pela ilusão, pelo desespero ou desilusão, com os olhos cansados pela planura imutável que se estende à sua frente, opta por ver gigantes onde estão apenas moinhos de velas rasgadas, promessas de futuro onde morrem ontens cansados, venturas onde tudo é desventura.

Vamos então tentar não o machucar muito, certo como é que os seus erros não são de todo indesculpáveis, e a confusão demonstrada filha apenas da inexperiência, se não mesmo sintoma do eterno recomeço do Fantástico nacional que venho analisando numa outra série de posts. Que o é, pelo menos em parte, transparece da sua afirmação de que o “nosso” cânone “de momento pouco mais terá que o Frankestein, o Drácula, o Senhor dos Anéis, o Harry Potter, o 1984, o 2001, o Verne e o Wells”. Nesta espantosa frase, quase perdida na abundante verborreia jaculatória que domina o resto do texto, reside a essência do erro que lhe distorce a visão, como um par de lentes riscadas. Em primeiro lugar, a admissão de que o Fantástico nacional parece ser um mundo à parte, sem referências que não os picos mais visíveis da imensa frota de icebergs que desliza pelos profundos oceanos da imaginação; um Fantástico morto de sede em pleno mar, incestuoso, incapaz de dialogar com o mais vasto corpo de textos estrangeiros que nunca foram traduzidos cá. Em segundo lugar, revela que não entende o que é o cânone, que deve pensar tratar-se de um panteão de obras sagradas, intocável, petrificado, com todas as conotações necrológicas que tal metáfora contém. Em terceiro lugar, soçobra imediatamente sob o imediatismo do eterno recomeço, incapaz de pensar para lá do fenómeno de vendas, do fenómeno social, confundindo – ou procurando confundir –o que significa o impacto de determinada obra sobre o tecido cultural ou as convenções genéricas, com os fenómenos de massa gerados pelas redes sociais. Um exemplo: desde 2001, todos vivemos sobre o impacto directo do 11/9. Não há livro que seja escrito, filme que seja lançado, que não esteja directa ou indirectamente influenciado por esse acontecimento. No entanto, nos dez anos decorridos desde então, não se escreveu ainda, nem se realizou ainda, o livro ou o filme que traduzisse a real dimensão desse evento na mesma medida em que, por exemplo, THE DEER HUNTER (1978) traduziu o impacto da guerra do Vietname.

A influência de determinado texto não é apenas o do potencial de gerar imitação, ou consumo de massa. The Da Vinci Code poderá ter imenso interesse como objecto de estudo social, mas nunca fará parte do cânone literário, como ficou já demonstrado pela própria efemeridade do seu sucesso. Também não se pense que tem apenas a ver com qualidade: "Doc" Smith nunca será visto como um autor de grande mérito literário, tal como H.G. Lewis não será visto como um grande cineasta, e no entanto, poucas obras tiveram tanto impacto e ao longo de tantas gerações como as space operas do primeiro e o BLOOD FEAST (1963) do segundo. E não obstante, não os encontraremos no cânone.

Mas o objectivo deste texto não é pôr a nu a crescente confusão do Rogério; isso seria demasiado simples e bastar-nos-íamos com rebater ponto por ponto os seus argumentos específicos; interessa-me mais descobrir a raison-d’être que está subjacente aos erros proferidos, e essa não é menos simples de elucidar, mas mais importante de esclarecer: pergunta o Rogério “do que servirão estudos académicos sobre literatura fantástica nacional, se não acompanharem também, em tempo real, a evolução do campo?”. Poderíamos dizer que o Rogério procura apenas recuperar os argumentos estafados da Reflection Theory que nos diz que a evolução, em geral, de determinado campo cultural, reflecte a evolução em geral da sociedade. No entanto, e tal como Robin Wood (referindo-se ao cinema), também eu, enquanto a ênfase estiver no ‘em geral’, não vejo motivos para por em causa esse método de interpretação. Mas, tal como ele, também acredito que “as soon as one gets down to specifics, however, it proves far too simple: (…) within the overall movement there appear cracks, disruptions, countercurrents” (in Hollywood from Vietnam to Reagan, Columbia University Press, 1986) o que diminui seriamente a sua valia. Mas o mais importante é observar que tal como a discussão do cânone desvia a atenção do que é importante, esta questão desvia a atenção da insuspeita importância do cânone. A confusão do Rogério é clara: ele confunde o estudo académico do género, com o estudo académico de um trabalho específico (neste caso, a tetralogia de Madalena Santos), e nessa medida traduz também a sua confusão entre o trabalho da academia e o trabalho da crítica.

Mas é talvez nessa confusão que o Rogério se mostra mais impreparado e mais filho do seu tempo (ou talvez de José Jorge Letria), assumindo-se como a corporização de uma posição cultural que é já um deprimente cliché, exacerbado pela ilusão democratizante das redes sociais e pela erosão da qualidade das Universidades desde a publicação do texto seminal de Fredric Jameson, “Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism” (New Left Review, 1984) e a tomada de assalto das Faculdades de Letras pelas histéricas teóricas dos Estudos Feministas, Marxistas e Multiculturalistas, acompanhadas das fraudes intelectuais de Lacan, Foucault, Kristeva, et. al.

Como escreveu Martin Amis, na introdução de um dos meus livros de cabeceira, The War Against Cliché (Vintage, 2002), numa passagem algo extensa, mas que julgo de todo pertinente transcrever quase na íntegra, “Literary criticism, now almost entirely confined to the universities, thus moves against talent by moving against the canon. Academic preferment will not come from a respectful study of Wordsworth’s poetics; it will come from a challenging study of his politics – his attitude to the poor, say, or his unconscious ‘valorization’ of Napoleon; and it will come still faster if you ignore Wordsworth and elevate some (justly) neglected contemporary, by which process the canon may be quietly and steadily sapped. A brief consultation of the Internet will show that meanwhile, at the other end of the business, everyone has become a literary critic – or at least a book-reviewer. Democratization has made one inalienable gain: equality of the sentiments. I think Gore Vidal said this first, and he said it, not quite with mockery, but with lively skepticism. Nowadays, nobody’s feelings are more authentic, and thus more important, than anybody else’s. This is the new credo, the new privilege. (…) The reviewer calmly tolerates the arrival of the new novel or slim volume, defensively settles into it, and then sees which way it rubs him up. The right way or the wrong way. The results of this contact will form the data of the review, without any reference to the thing behind. And the thing behind, I am afraid, is talent, and the canon, and the body of knowledge we call literature.

Compare-se com aquilo que o Rogério escreveu (“As resenhas não almejam a constituição, ou imposição, de um cânone pessoal. São um reflexo da minha reacção como leitor às obras, e uma tentativa de enriquecer essa leitura com algumas considerações que me parecem relevantes no quadro das próprias obras, e do seu enquadramento no panorama do fantástico nacional (e por vezes internacional)".) e não admira que ele considere ridículo um exercício verdadeiramente crítico. (“Imagine-se o ridículo de tal exercício”.)

Pelo contrário, considero que se alguém defende que determinada obra merece ser estudada pela academia, ou que uma outra ocupa um lugar de destaque no momento presente do desenvolvimento do género, deve forçosamente ir além da mera opinião pessoal e qualificá-la com exemplos concretos. Mas quais são os fundamentos (“factos”, diz ele, sem se rir, mas sem evitar fazer-nos rir) que justificam as suas considerações?

A série As Terras de Corza abarca quatro volumes, publicados em cerca de cinco anos. Ambientada num universo inventado, na sua maioria imbuída de um tom de fantasia épica, apresenta-se desde início com especial consistência e originalidade. Dando de barato a idade da autora, ressalta na obra um rico conteúdo reflexivo, nomeadamente sobre o papel da mulher, e a natureza da conquista e manutenção do poder, entre outros temas que perpassam a série. Outro facto não negligenciável é a competência com que o arco da história foi iniciado, percorrido e encerrado; concedendo-lhe um esqueleto que efectivamente cimenta a saga numa obra única e coerente. Contrariando o deslumbramento que poderia advir a uma autora tão jovem, a história não se desvia da sua espinha-dorsal, o que faz com que muitos temas sejam apenas aflorados no que impactam directamente nos personagens, apesar de se intuírem maiores ponderações e motivações da autora nos bastidores.

Atente-se bem (entre parêntesis factos que o texto não esclarece): Quatro volumes. Publicados em cinco anos. Universo inventado. Tom de fantasia épica. Consistência (a que nível?) e originalidade (em quê?) Idade da autora (como se reflecte na obra?). Rico conteúdo reflexivo sobre o papel da mulher (qual é e em que se traduz esse conteúdo?) e a natureza da conquista (de quê, qual é, e de que forma se traduz?) e a manutenção do poder (manifestada de que forma?). Competência do arco histórico (qual a estrutura, e em que medida de afere essa competência face à complexidade do arco narrativo? E qual é esse arco?) Unicidade e Coerência da obra (Única em quê? Coerência a que nível?). E assim por diante, ad infinitum, ad nauseam

Na realidade, experimente o leitor (quer neste post do Rogério, quer na resenha inicial) substituir “a série As Terras de Corza” por “a saga A Song of Ice and Fire”, ou por “as Crónicas de Allarya”, e disporia exactamente dos mesmos elementos para aferir da validade daquilo que o Rogério nos diz.

O caso do Pedro Ventura, como nos é dito, e concordamos, é ainda mais rápido de consubstanciar, pois os erros são os mesmos, a redução da análise literária ao gosto pessoal ainda mais gravosa (“é um livro que o leitor ou adora ou odeia”, como se o livro não tivesse vida para além da subjectividade do leitor); o afã de engrandecimento é tal que quando o Rogério nos diz que “A linguagem utilizada poderá revelar-se outro ponto de ruptura. Assumidamente grandiloquente, poderá para alguns leitores ser insuportavelmente pomposa”, ficamos sem saber se está referir-se a frases ineptamente verborreicas como “(…) uma mulher que estava nesse grupo contou-me que perguntou ao Darkleton o que o levava a prestar-se a cometer um tal acto de coragem” (p.291) ou a clichés banalizantes como “Não te preocupaste em saber como eu estava quando me deixaste....” (p.111).

O que fica é a confissão de um desespero, se calhar inconsciente, de não conseguir encontrar a obra de qualidade que almeja revelar. Mas ao emprestar a tais obras as hiperbólicas qualidades que só ele vê rodando entre as brumas da planície, nas velas rotas de um moinho que não chega a ser gigante, não é só D. Quixote quem fica pendurado com os fundilhos a espreitar dos andrajos que pensava ser uma armadura, são também os verdadeiros gigantes que se vêem reduzidos à dimensão de moinhos mal amanhados.

Talvez para a próxima, em vez de beber dos delírios bélicos de Henry V, o Rogério ouça o conselho mais sóbrio e ponderado de Polonius, antes de se lançar numa campanha dominada pela emoção:

Ay, springes to catch woodcocks. I do know,
When the blood burns, how prodigal the soul
Lends the tongue vows: these blazes, daughter,
Giving more light than heat,—extinct in both,
Even in their promise, as it is a-making,—
You must not take for fire.

William Shakespeare, Hamlet

sábado, 21 de maio de 2011

Sintomatologia do Eterno Recomeço (1)



Há já vários anos que venho chamando a atenção para o fenómeno cíclico do Fantástico nacional, entre cujos sintomas se conta o muito curto prazo da memória editorial. Como escrevi no meu post anterior, é como se a cada nova moda que surgisse, a cada novo filão a explorar, tudo o que está para trás fosse apagado. Uma das decorrências de tal situação é a total falência das estratégias de fidelização de um público leitor.

Embora durante anos os leitores de FC tivessem conseguido manter três colecções duradouras, para além de umas quantas mais de menor permanência, a verdade é que nunca produziram um fenómeno de vendas equivalente a um Harry Potter ou a uma Stephenie Meyer. Pelo contrário, autores com esse estatuto universalmente garantido como Stephen King ou Isaac Asimov, não apresentavam entre nós resultados de vendas muito distintos dos de autores mais discretos como Poul Anderson ou Gordon Dickson. O que esses leitores ofereciam às editoras que publicavam essas colecções era uma constância estagnante que viria a ditar o seu fim à medida que os editores (como o caso de Belmiro Guimarães na Caminho) ou os leitores (nas restantes) iam desaparecendo, por acção do envelhecimento, do desinteresse, ou por terem sido atraídos por outros modos ou géneros de entretenimento (videojogos, RPGs, cinema, BD, etc…).

Daí que não seja de todo impertinente observar que nenhuma das editoras que agora apostam (praticamente em regime de exclusividade) no Fantástico – Presença, Saída de Emergência, e Gailivro – nunca antes de 2000 tivessem publicado o que quer que fosse nesses campos (com a ressalva de que a SdE apenas foi criada em 2003).

O que motivou o seu súbito interesse foi o inesperado sucesso da saga de Rowling, convertido num fluxo imparável de chorudos cheques. Se até esse momento a Ficção Científica, o Horror e a Fantasia eram completamente ignorados, com um ou outro título repescado apenas por ocasião de uma adaptação cinematográfica de maior repercussão comercial, depois de Harry Potter um determinado tipo de fantasia, com um determinado tipo de público-alvo, passou a significar rendimento garantido. O interesse pelo Fantástico não sofreu qualquer alteração, nem foram desenvolvidos esforços para explorar esse tipo de sucesso na captação da demografia de leitores seus destinatários para outras obras de maior valor. O que podia e devia ter sido feito, sobretudo quando ficou claro que Rowling estava a desenvolver a inteligente estratégia de fazer os seus protagonistas envelhecer a par com os leitores, até à maioridade.



Ao não ter sido desenvolvida qualquer estratégia nesse sentido, uma vez terminada essa série, observou-se uma total desorientação editorial quando as vendas dos outros volumes do Fantástico não descolaram da mesma constância de outrora, ou ficaram mesmo abaixo dela, o que decretou o fim de algumas colecções, como a Viajantes no Tempo e, aparentemente, a T.E.E.N. Dois outros casos semelhantes de inesperado sucesso repetiram-se na Gailivro com Paolini e Meyer, editora que partilha com a Presença o facto de não possuir uma tradição de publicação de Fantástico anterior ao fenómeno Potter, agravada pelo facto de os seus dois casos de sucesso, ao contrário de Rowling, serem totalmente aliterários (o que não é irrelevante para o que se vai dizer de seguida). Consequência directa dessa impreparação dos leitores (reflexo da impreparação dos editores), é claramente a concentração em imitações desses casos de sucesso e a busca desesperada de criação/descoberta de uma nova moda. Para estas editoras, a história do Fantástico em Portugal começou efectivamente em 2000.



Sintomático disso foi o desastroso press kit distribuído pelos publicitários Booktailors no pretérito 29 de Abril, promovendo a autora Lian Hearn como a “herdeira natural dos livros de J.K. Rowling” (parece-me que quereriam dizer dos leitores, mas isso é secundário para o argumento a desenvolver) e afirmando que “Samurais são os herdeiros de Harry Potter”. Esta estratégia é interessante de analisar pelo facto de tentar colar uma série de livros que já se encontra publicada em Portugal desde 2003 sem grande espectacularidade de vendas, a um fenómeno esgotado há já dois ou três anos, revelando um tremendo artificialismo no tratamento do fantástico. Mas, ainda mais interessante, é compreender como essa estratégia é extremamente redutora, pugnando pelo afecto dos leitores na identificação com um único modelo de tratamento do Fantástico: a literatura infanto-juvenil, do tipo Rowling, que foi aquele que estas editoras conheceram pela primeira vez (mutatis mutandi para o caso Gailivro, que começou por procurar duplicar o fenómeno Paolini e, através do romance paranormal, o fenómeno Meyer).

O que move actualmente o mercado é, obviamente, a pergunta que Luís Corte-Real formula no espaço Colecção Bang! da mais recente edição da revista BANG! (#9, Fevereiro de 2011): “Onde andam todas aquelas dezenas de milhares de jovens que leram e adoraram os livros de Harry Potter?” Ao contrário dos outros casos que venho discutindo, LCR compreendeu que eles (ou parte deles) “cresceram, e com eles cresceu o grau de complexidade que apreciam nos enredos e personagens dos livros que lêem.” Alguns, certamente, procuram mais e melhor literatura fantástica, e é imprescindível compreender que, crescendo, amadurecendo, o público que lia Harry Potter desapareceu de forma tão irremediável como desapareceu o público das colecções de FC de outrora. Tal como desaparecerá em breve o público que lê Stephenie Meyer. E que é inútil continuar a tentar recriar um fenómeno que já ultrapassou o seu momento histórico. Sob pena de continuarmos a viver num eterno recomeço, num presente sem passado ou promessa de futuro. Um eterno recomeço que nunca mais acaba.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Hipérbole e Consequência



Até há relativamente pouco tempo, os géneros do Fantástico eram olhados com sobranceria e desdém pelos poucos não iniciados que, por acaso ou curiosidade, se deparavam com um livro de FC nas mãos, um filme de Horror na televisão, ou, mais raramente, uma fantasia épica em qualquer dos suportes. Os iniciados, que bem conheciam a valia que os outros se recusavam a ver, não se poupavam às hipérboles, sobrecarregando o mais modesto série B ou a mais inepta das pulps, com uma carga denotativa e simbólica que muitas vezes nem o melhor de Shakespeare ou o mais brilhante de Bergman conseguiriam transportar. Em última instância, alargavam os braços procurando arrebanhar toda e qualquer obra de valor histórico para o âmbito do seu género de eleição, alheios ao ridículo ou ao potencial disparo de culatra que daí poderiam resultar.

Em The Science Fiction Novel (1964), Kornbluth escrevia a esse propósito que “some of the amateur scholars of science fiction are veritable Hitlers for aggrandizing their field. If they perceive in, say, a sixteenth century satire some vaguely speculative element they see it as a trembling and persecuted minority, demand Anschluss, and proceed to annexe the satire to science fiction”.

Em 1976, na introdução ao seu histórico ensaio The Horror Film, H.W. Dillard tecia considerações semelhantes quanto aos exageros praticados na defesa do cinema de horror antes da publicação dos trabalhos seminais de Carlos Clarens e David Pirie.

Depois um e outro género foram ganhando terreno e foram merecendo maior atenção por parte dos críticos, dos académicos e dos consumidores em geral, e o tom elegíaco foi sendo substituído, finalmente, por um tom sério e ponderado, muito mais adequado à sua nova posição. Apenas onde os géneros não mereceram ainda tal atenção, assistimos ainda ao uso exacerbado de hipérboles fantásticas, como se o mais recente exemplo da Sword & Sorcery tivesse vindo substituir a Chanson de Roland no cânone, ou o último bug-eyed monster com fecho de correr corporizasse a mesma simbólica da teratologia de Breughel.

Duas dessas hipérboles foram emitidas recentemente, em atordoante sucessão, por fonte inesperada, que considera a saga As Terras de Corza (Gailivro, 2006-2010) “como merecedora de maiores análises e aprofundamentos, inclusivamente académicos” e que O Regresso dos Deuses – Rebelião (Presença, 2011), ocupa “uma posição na actual literatura fantástica nacional que, apesar de não esvaziada de executantes, era urgente reforçar”. Quero desde já deixar claro que não li, ainda, nenhum dos volumes da autoria da Madalena Santos, pelo que as minhas palavras não pretendem constituir qualquer juízo sobre o valor ou mérito da sua obra, mas tão só observar que este tipo de encómio pode muitas vezes funcionar em detrimento desta, ao atribuir-lhe uma dimensão ou um alcance para a qual não foi pensada. Isso porque convinha definir, antes de mais, quais os tipos de obras que são efectivamente merecedoras de atenção académica séria, e não do agigantamento hitleriano que os departamentos de Estudos de Género, Teoria Marxista e Multiculturalismo têm derramado sobre textos ineptos e desastrados mas politicamente correctos. Um dos factores determinantes para avaliar da dignidade dessa atenção é o factor tempo. Há que medir o impacto que determinada obra teve sobre o tecido cultural (ou sobre as convenções genéricas), em que medida logrou realmente cristalizar o zeitgeist seu contemporâneo, e qual o grau de inovação introduzido por ela para poder esperar um estudo mais aprofundado. Em defesa da saga, diga-se que o Rogério está certamente a confundir o papel da crítica com o da análise académica e, pelo menos isso, não pode ser apontado como falha do autor.

De falhas do autor abunda o segundo caso, mas não são elas que nos trazem aqui, pelo menos não directamente. O que nos traz aqui é o posicionamento do texto como preenchendo uma lacuna no Fantástico português – e não apenas na Fantasia – sem que nos sejam apresentadas balizas referenciais. Por exemplo, seria interessante saber qual o posicionamento do texto em relação, por exemplo, a dois outros praticamente contemporâneos como Oblívio (Presença, 2011) e Batalha (Saída de Emergência, 2011), e mesmo em relação à história recente do género, abrangendo não só as demais obras de David Soares, como o corpus de textos de Inês Botelho, da própria Madalena Santos, da Sandra Carvalho ou, num registo mais próximo, Fábio Ventura, Carla Ribeiro e Diana Tavares.

Ao não o fazer, e como no caso anterior, estamos mais uma vez a mergulhar no erro de crítica que é prefigurar o eterno renascer do Fantástico, onde cada novo autor que surge, cada novo texto publicado, passa uma esponja sobre o passado e entra imediatamente num cânone tão efémero quanto subjectivamente pessoal.

É que este tipo de hipérbole acaba sempre confrontada com os seus referentes; os leitores do Fantástico poderão apenas encolher os ombros e abanar a cabeça soltando um tsc tsc tsc de incompreensão, mas os mundanos não deixarão de tomar o referente pelo referencial, a árvore pela floresta, e a hipérbole pelo real. E, nalguns casos, os danos podem ser tão irreparáveis como inesperados. É que, em última instância, ou o género ou quem profere a hipérbole... um dos dois sai mal na fotografia.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Cayatte, volta, está tudo, mas tudo, perdoado....


Num país civilizado, o responsável por uma capa destas ia preso. Ou, se o juíz fosse demasiado leniente, era triplamente sodomizado em praça pública. Diante da família. Como leitor da série Anita Blake, que fui até ao décimo quarto volume e meio, sinto-me insultado com esta capa. Já tive que aturar o imperador Palpatine na capa do Dune, o Burgess Meredith gamado à Twilight Zone na capa do Bonhomme, mas com esta tinha vergonha de andar na rua. As capas originais não são um primor, é certo, mas esta é tão inacreditavelmente má que só pode ser uma afronta aos leitores de literatura fantástica. Estão a cuspir-nos na cara. Enquanto nos dizem, tomem lá, que p´ra vocês não há melhor que isto. Cinco minutos p'ra fazer a capa no laptop enquanto se vai ao WC, que temos os livros da Meyer pr'a preparar. Ou se calhar, o problema é esse, a Meyer fechou as torneiras, com a escassa imaginaçãozita tão espremidinha, tão espremidinha, que é preciso arranjar uma substituta rapidamente. E calhou a rifa à Laurell Hamilton. Pobre moça.

É certo que as capas servem apenas para atrair leitores e muitas vezes nada têm a ver com o conteúdo do livro, mas que conste em acta que os leitores que se sentirem atraídos por esta capa não justificam sequer o ar que desperdiçam na perpetuação da sua miserável existência. Na verdade, deviam ser condenados a passar o resto da vida numa cela forrada com esta capa, com a liberdade condicionada à descoberta de qualquer coisa nela que se aproveite. Boa sorte.

O nome da autora está mal grafado. Perde um L, certamente por efeito do acordo ortográfico que fez perder as consoantes mudas e a vergonha de quem o aplica. O título, para além de deselegante, é um erro básico de português. Se não querem traduzir Guilty Pleasures por pequenos prazeres inconfessáveis, ao menos traduzam por Prazeres Inconfessados. A tradução é incorrecta na mesma, mas ao menos poupa-se a língua. Agora, inconfesso ("que não confessa o que fez; que não se confessou") só pode utilizar-se até se perder a virgindade, ou até à quarta classe - o que acontecer primeiro. Depois aquela tagline tão ao gosto dos putos imberbes que lêem Corin Tellado às escondidas: "O que fazer quando o monstro que jurámos matar se converte no homem sem o qual não podemos viver?"

A resposta é evidente: procurar o livro a que pertence e colá-la lá; bem se podia dizer que a Anita Blake não jurou matar nenhum monstro - como U.S.Marshall que é, só pode executar as criaturas sobrenaturais em cumprimento de mandato judicial ou em legítima defesa - mas se calhar é mais simples dizer que nos quinze volumes que li a moça foi para a cama com vampiros, lobisomens, demónios, metamorfos das mais variadas facções, aos dois ou três de cada vez e nas mais engenhosas combinações, mas nunca, nunca que conste, foi para a cama com um homem. Porra, já sabemos que na Gailivro ninguém lê os livros que publicam, mas não façam as coisas assim tão às abertas.

E que dizer da mocinha, naquela pose tão Cristianne F.-deixou-as-drogas-e-passou-a-acompanhante-de-luxo? Que não tem o cabelo encaracolado de que a protagonista se queixa, que não veste de forma prática como a personagem tantas vezes tem que fazer e que é descrita repetidamente, que não ostenta as cicatrizes nos braços que são uma das suas marcas distintivas e testemunhos de personalidade? Não interessa dizer nada, porque esta capa é apenas mais um sintoma da prostituição (pun clearly intended) a que o Fantástico tem sido submetido nesta era pós-Meyer. O leitor que pegar neste livro, um policial forense duro, uma dark fantasy bem conseguida, um marco da literatura de vampiros, e um dos progenitores distantes do moderno romance paranormal, atraído por esta capa, vai ter um choque ao aperceber-se que não comprou mais uma fantasia pedófilo-platónica de pirilampos crepusculares ao entardecer, anoitecer, aborrecer. Ponha-se na fila e exija o dinheiro de volta.

Já agora, e para que não me acusem de não ser construtivo, aqui deixo a minha sugestão para a capa da biografia da Madre Teresa de Calcutá:

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Brincar à literatura



Se a afirmação do Fábio Ventura, no pobre contexto editorial português, não é inteiramente repreensível, o desenvolvimento pelo qual ele optou suscita outras questões que merecem ser apontadas; logo após a reacção do David, o Fábio Ventura adiantou um mea culpa no seu blogue explicitando aquilo que, ao que parece, não teria conseguido dizer na polémica resposta. E o que o Fábio Ventura escreve é o seguinte (ênfase minha): “Não quis, de modo algum, dizer que o género Fantástico é um género menor, para os mais inexperientes ou que não requer rigor ou seriedade. Quando refiro a "experiência de vida" refiro-me a maturidade suficiente para escrever um livro onde as relações entre as personagens adquirem uma profundidade que eu, aos 22-23 anos, não consigo representar. O erro da resposta está na generalização do género Fantástico. Eu referia-me ao tipo de Fantástico presente nos meus dois livros, dirigidos a um público juvenil, com uma escrita leve e, vá lá, mais comercial. Mas é no tratamento da história e das personagens, fortemente baseadas numa imaginação mais surrealista e idealista e cujas relações são de uma certa ingenuidade tipicamente juvenil, que realmente admito que não tenho experiencia de vida suficiente para torná-las mais densas e maduras. (…)

Como é de bom-tom em Portugal, logo que o pecador adianta uma palavra de arrependimento, erguem-se hossanas e ecoam revoadas de palmadinhas nas costas, e como não podia deixar de ser, este caso não foi diferente, tendo a própria Andreia Torres ajudado a sacudir a caspa dos ombros do incipiente autor. No entanto, a leitura atenta da “desculpa” do Fábio Ventura revela antes uma realidade bem distinta: o que Ventura faz é ceder o osso para ficar com o bife. Ninguém – nem o David – apontou ao Fábio Ventura apenas imaturidade no tratamento das personagens. O David chegou mesmo a deixar entender que o díptico Órbias não passa de mera fanfiction da série de animação Sailor Moon, fanfiction essa marcada por uma total falta de originalidade, incompetência na escrita, e ignorância quanto à forma como se estrutura uma narrativa (isto já sou eu a dizer, para que não restem dúvidas). Se o Fábio recorre à desculpa que apresentou, procurando redireccionar as suas palavras do fantástico em geral, para aquilo que ele apelida, com a mesma inconsequência impensada que parece dedicar a tudo o que escreve, “o tipo de Fantástico presente nos meus dois livros”, não muda sequer uma vírgula àquilo que escreveu. É que o Fantástico presente nos seus livros, não é diferente daquele presente nos livros do David. Como o David escreveu no seu post, “O Fantástico é. Ponto.” E não basta tentar ocultar o que se disse por trás de vacuidades sem sentido como a afirmação de que a narrativa e as personagens são “fortemente baseadas numa imaginação mais surrealista e idealista” (seja lá isso o que for).

Tanto mais que isso é, pura e simplesmente, mentira. Uma mentira com que o Fábio procura ocultar uma linha de pensamento que lhe é comum e que deixa transparecer em várias das entrevistas que vai reproduzindo no seu blogue. O que o Fábio vem dizer à laia de desculpa é que não acha que o Fantástico seja um género para autores e leitores em experiência de vida, mas que os seus próprios livros o são. Como ele próprio afirma em resposta a um dos comentários ao seu texto, “Como disse no post, a minha intenção nunca foi denegrir o Fantástico nem sequer tenho essa opinião de que é literatura juvenil. A resposta vinha no seguimento do que estava a falar sobre as minhas obras e os elementos de Fantástico presentes nelas.” Só que, lendo a entrevista, aquilo que ele vinha dizendo sobre as suas obras era precisamente o oposto do que ele agora pretende transmitir; mormente, que, uma das diferenças do segundo volume em relação ao primeiro é precisamente “o enfoque nas personagens e nas suas relações, uma vez que o primeiro volume focou mais a sua apresentação e a do mundo de Orbias. Penso que está mais sombrio e maduro que o primeiro livro, mas foi uma evolução natural”.

Sucede que em entrevista ao blogue O Homem do Fraque, Fábio Ventura tinha isto a dizer quanto à imaturidade do primeiro volume, e ao seu carácter intencional (mais uma vez, a ênfase é acrescentada por mim): “Eu escrevi uma primeira versão do Orbias e tentei a minha sorte com as editoras. Na altura não tive sorte porque percebi mais tarde que aquela versão estava realmente fraca e revelava muita imaturidade de escrita. Dois anos depois, voltei a pegar na história e reescrevi-a totalmente. Diria que houve uma transformação de 200%.” Respondendo à observação de que as críticas apontavam para o facto de que as personagens do primeiro livro eram superficiais, o autor responde: “Realmente, a maior parte das personagens não foi muito bem desenvolvida no primeiro livro. Mas não foi uma "falha" completamente inocente. A minha intenção com este primeiro volume era apresentar as personagens, o mundo de Orbias e o conflito e iniciar um processo e crescimento e evolução das personagens principais que culminarão no final do segundo volume. Daí as personagens poderem parecer mais "superficiais"(…) Desde o início que a minha intenção com este segundo volume era focar o desenvolvimento das personagens e as suas relações.(…) Tomei alguns riscos com algumas personagens, nomeadamente com o Sebastian e Lorelei, mas penso que essa melhoria do tratamento das personagens colaborou da melhor forma numa melhoria generalizada da história de Orbias.

Ou seja, o que o Fábio Ventura faz à laia de “desculpa”, é pegar nas críticas que lhe eram apontadas ao primeiro volume do seu díptico, que o David nem sequer referira e que ele acabara de afirmar (ao mesmo tempo) corrigidas e intencionais, e apontá-las como sendo a (única) falha do seu trabalho, fingindo, porém, responder à questão essencial da sua resposta amaldiçoada: se considera ou não o Fantástico um género “de e para os jovens”, ideal para os escritores que “não têm muita experiência de vida”.

Ora, no mesmo comentário no seu blogue, o Fábio Ventura, traindo um pouco a insinceridade da sua “desculpa”, afirma que já publicou “dezenas de entrevistas aqui no blog e não foi a primeira vez que respondi a esta pergunta. Por isso, achei um pouco injusto todo o debate e acusações que surgiram após uma simples frase mal interpretada.” Na verdade, de todas as entrevistas que publicou no seu blogue, apenas em duas outras lhe foi colocada a mesma pergunta, tendo ele respondido que “O fantástico é o meu género de eleição. Mas gostaria de explorar outros géneros. Não só para não tornar a minha carreira monótona, mas porque queria explorar a minha criatividade e ganhar alguma experiência na escrita.”, coincidindo com uma outra resposta similar ao blogue D’Magia, mas onde desta feita se nota mais a veia calculista que ele procura ocultar. Perguntado se alguma vez pensou escrever outro tipo de livros, respondeu: “Sim, mas a longo prazo. A verdade é que não é boa estratégia mudar repentinamente de género ou de estilo porque dá muito trabalho fidelizar um público, não convêm perde-lo logo a seguir. Espero ir mudando aos poucos. O meu objectivo é tornar a minha carreira o mais versátil possível, mas aos poucos e com sensatez.

Quando falo em veia calculista, não quero acusar o Fábio de um cinismo que sei não ter. O cinismo exige uma inteligência mais sofisticada do que a que deixa transparecer nas suas entrevistas e posts, mas o calculismo de alguém que ainda “não se sente” escritor, e que por isso, vai dando a impressão de brincar à Literatura.

Mas como responder então à questão central da sua polémica resposta? Pois bem, não sei se o Fábio Ventura pensa ou não que o Fantástico é um género (ou um conjunto de géneros) juvenil e desenvolvido por autores jovens e sem experiência de vida. No entanto, acredito que sim, que é essa a sua opinião. Primeiro porque nas suas entrevistas há uma ideia que se repete uma e outra vez: “o meu público-alvo é os jovens” (sic), os leitores de Stephenie Meyer e aqueles que se lembram de Sailor Moon. Mas isso, só por si não basta; de que ele escreve para um público infantil, não restam dúvidas, mas será que o facto de se considerar um autor de juveniles permite, só por si, confirmar a afirmação que ele agora procura invalidar? Talvez não, mas a somar-se à flagrante mentira com que se justifica, encontramos uma outra afirmação sua que permite encerrar o círculo: “Penso que o meu livro trouxe uma nova essência à literatura fantástica portuguesa que fazia falta. E uma vez que o meu livro foi tão bem sucedido, acredito que outras editoras se sintam mais seguras para dar oportunidades a outros jovens autores. Temos tão bons talentos em Portugal! Gostava que o nosso “grupo” crescesse, principalmente porque a literatura só tem a ganhar com as visões originais e refrescantes de autores mais jovens. E quando digo “jovem”, falo da casa dos 20 e não da casa dos 30 como a imprensa refere…

Parece-me, assim, que a visão que o Fábio Ventura tem do Fantástico é aquela a que deu voz na sua resposta amaldiçoada, justificando plenamente tudo o que o David escreveu e mais as sete pragas do Egipto. Mas posto isto, perguntar-se-ão os que habitualmente lêem este blogue porquê perder tanto tempo com uma questão insignificante, sobre o autor de dois livros que mal figurarão como notas de rodapé na história da literatura infanto-juvenil portuguesa?

Por três ordens de razões: a primeira para demonstrar que até aqueles que se mostram mais atentos aos pontapés nas virilhas do Fantástico que estes “jovens” autores vão desferindo a contento, como a Andreia Torres, se podem deixar enganar pelos falsos gestos de boa vontade; em segundo lugar, para deixar bem clara a minha posição nessa polémica, uma vez que à data, por imperativos profissionais, não pude nela participar; mas, sobretudo, porque a “desculpa” do Fábio Ventura, parece ser mais voltada para a qualidade do que escreve, do que propriamente para a sua afirmação. Se antes os elementos do “nosso grupo”, se defendiam contra os ataques dos “invejosos” dizendo “nós escrevemos tão bem como eles”, agora a defesa parece ser “nós havemos de escrever tão bem como eles; se escrevemos maus livros agora é porque ainda não temos suficiente maturidade”.

E os seus livros, os livros do “nosso grupo”, os livros dos Fábios Venturas, dos Victor Frazões, das Carlas Ribeiro, dos Pedros Venturas, dos Rafaéis Loureiro e das Dianas Tavares são de facto muito imaturos, mas não propriamente por causa da idade dos seus autores. Pensemos, por exemplo, que Isaac Asimov escreveu as suas obras mais conhecidas e reconhecidas (Foundation, I, Robot, Nightfall) entre os dezoito e os vinte e um anos de idade; pensemos em Randall Garrett que publicou profissionalmente “Probability Zero”, o seu primeiro conto, aos dezassete anos de idade (o conto teria sido escrito quando tinha apenas dezasseis), ou em Theodore Sturgeon que publicou o seu primeiro conto aos vinte anos, um ano antes de se voltar para a Ficção Científica. A mesma idade com que Ray Bradbury, por exemplo, começou a publicar em fanzines. A sua primeira obra-prima, The Martian Chronicles, reúne contos que escreveu quando ainda estava na casa dos vinte (a sua primeira publicação profissional, foi aos vinte e um). Os exemplos são virtualmente intermináveis.

Que distingue, então, estes autores desta nossa leva nacional de quem brinca à literatura? Essencialmente três factores, por ordem decrescente de influência:

a)Desde logo, o conhecimento profundo do género em que pretendem trabalhar; um conhecimento que só se adquire lendo, lendo e lendo, o mais possível, com o máximo de variedade, mas certamente com exaustão as obras que se inserem no campo em que se pretende singrar.

b)Depois, fazendo o esforço de colmatar a inexperiência (a imaturidade) através do recurso a fontes credíveis e a uma pesquisa aturada; por exemplo, o jovem Asimov, escrevendo a sua Foundation, leu e releu os seis volumes do imperecível Decline and Fall of the Roman Empire de Gibbon. Não é, certamente, jogando videojogos ou vendo animes que se aprende a escrever e se adquire a maturidade necessária à construção de uma narrativa cativante, ainda que com personagens imaturas ou meramente esboçadas.

c) Se os dois primeiros factores são da responsabilidade do aspirante a autor, o terceiro escapa ao seu domínio: a existência de um bom editor, como Campbell foi para os autores da Golden Age, capaz de oferecer ideias, trabalhar os textos, espicaçar a criatividade mas, sobretudo, capaz de atirar imediatamente com um mau manuscrito para o caixote do lixo. E o caixote do lixo de Campbell estava a abarrotar de Orbias. Faltando um editor destes, como certamente faltou ao Fábio (de acordo com ele, teve a resposta da sua editora ao fim de dez minutos e através da leitura de um único capítulo do livro), deve o autor aprender pelo menos a encarar de forma crítica os elogios fáceis de quem claramente não sabe distinguir o Dracula de Stocker do Twilight de Meyer.

É que, como bem escreveu o David no seu post, faz falta que alguém diga basta. É preciso por termo a este brincar à literatura. De brincar ao Fantástico. Porque o que o Fábio acaba por dizer na sua “desculpa” é apenas isto: não sei escrever, ainda, um livro que mereça ser publicado. Fábio, é para isso que existem as gavetas.

domingo, 3 de abril de 2011

Literatura a brincar


Desta citação, a esta citação, vai uma distância abismal, distância essa que não se resume à década que as separa: mesmo descontando o papel que a afirmação de Scully desempenha na sua diegese, mormente um apontamento pós-moderno de acreditação da ficção através da negação auto-referencial do género em que se insere, ela traduz ainda a percepção generalizada de que a FC padece ao olhar dos mundanos. FOOTLOOSE (1984), o filme de Herbert Ross, cuida do conflito geracional protagonizado por Ren McCormack (Kevin Bacon), um jovem urbano de Chicago, contra a comunidade conservadora de Bomont, cujos habitantes queimam livros e onde a música Rock e a dança se encontram proibidos. O diálogo representado na citação em questão, ocorre nos primeiros minutos do filme, e é o primeiro conflito declarado entre Ren e as “autoridades” morais da cidadezinha. Em detrimento da utilização desta cena, poder-se-ia dizer que o exemplo de Vonnegut, um autor que viria a repudiar o género, é um exercício hipócrita da minha parte, mas a verdade é que a FC aparece representada aqui como algo perigoso, adulto e subversivo, através de um livro – Slaughterhouse Five (1969) – que é indesmentivelmente pertença do género. Nos anos 50, em pleno domínio do Senador MacCarty, Theodore Sturgeon dizia que a FC era o único género capaz de ser subversivo, pois era demasiado sofisticado para ser entendido pelos censores. Quando estes adquirissem suficiente sofisticação para entender a FC, dizia Sturgeon, então estaríamos irremediavelmente perdidos.

Ao longo dos anos, dada a sua consolidação nas revistas pulp de fraca reputação, a grande luta dos géneros do Fantástico tem sido esta: a de deslocar a percepção pública da posição Scully, para a posição Ren; de estabelecer de uma vez por todas o carácter adulto, exigente e iconoclasta da Ficção Científica e do Fantástico, frequentemente encarados como mera literatura infantil e inconsequente. Essa luta vem sendo travada de forma particularmente árdua nos países não anglófonos, onde o género é, por contingência histórica, praticamente algo de importado, ao qual se chega primeiramente através de formas indirectas, como o cinema, a televisão e a banda desenhada. Qualquer autor que queira dedicar-se à escrita no género, tem que enfrentar não só a hostilidade da crítica, a indiferença dos leitores, mas também o estigma de menoridade que sobre ele de imediato recai.

Daí que não seja de surpreender a justificada reacção de David Soares e Andreia Torres a uma infeliz entrevista de um jovem aspirante a autor, que uma vez mais relega o género para o campo da literatura infantil, e às opiniões imbecilizadas constantes de alguns comentários de participantes na incipiente polémica. Embora concorde, quer com o David, quer com a Andreia, com escassas reservas, atrevo-me a avançar uma defesa para o Fábio Ventura e todos aqueles que vieram a público defender o carácter juvenil da literatura fantástica.

Se tivermos em conta a idade da maior parte dos intervenientes, e o panorama editorial dos géneros do Fantástico em Portugal, pelo menos desde 1999 (quando aqueles teriam entre 10 e 12 anos), e considerando que, infelizmente, a maior parte deles não lerá senão em português, e isso com dificuldade tendo conta a crescente degradação do ensino desde 1995, agravada agora por Bolonha, a imagem que formaram do Fantástico não deixa de ser correcta: no início da década passada, o panorama era dominado pela série de Harry Potter e pela adaptação cinematográfica da saga de Tolkien, uma e outra (a primeira pela sua própria natureza, e a segunda por imposição da classificação PG13) voltadas para um público juvenil. E de lá para cá as editoras têm-se deixado dominar por derivados de ambas, desde as Crónicas de Allarya à mais recente leva de imitações de vampiros infantis que mais parecem versões carnavalescas dos Morangos com Açúcar do que criaturas sinistras.

É um panorama não só infantil e infantilizado que mal se tem alterado nos últimos 10 anos (a não ser numa aceleração crescente pelo declive da mediocridade), mas um panorama que renega um módico de qualidade literária, procurando transferir para o merchandizing literário a mecânica das redes sociais. Isso é bem patente no fenómeno de Christopher Paolini e Stephenie Meyer, que emergiu não de apostas editoriais mas de boca-a-orelha nos fóruns cibernáuticos, alastrando-se pelas cabecinhas ocas dos seus leitores inexperientes como vírus que se atiram com sanha a um sistema imunológico deficiente. Mais grave ainda, as editoras renderam o seu papel de escolha e crivo de qualidade, entregues a contabilistas e homens do marketing, para quem um livro é apenas uma cifra do balancete do final do mês, e começaram a incentivar activamente a produção de sucedâneos iletrados destinados a alimentar este inesperado e lucrativo mercado. Tanto mais lucrativo quanto mais barato se torna recrutar um grupo de adolescentes deslumbrados pela publicação do que assegurar o pagamento de autores experientes num mercado tão competitivo (e refiro-me mais ao da literatura infantil do que da literatura fantástica); tanto mais lucrativo quanto se poupa em publicidade o que se ganha em boca-a-orelha nas redes sociais e nos blogues.

E basta passar os olhos pela esmagadora maioria dos blogues para os quais as editoras enviam os seus livros para avaliar do grau de prostituição que tal situação traduz: as “críticas” e opiniões reduzem-se à sinopse que a editora organiza (incluindo os erros crassos de português) e no facto de o dito “autor” ser muito simpático e acessível. Chega-se ao descalabro de encontrarmos “autoras” que agradecem a divulgação de um seu texto dado à estampa em edição de autor, desejando que o/a blogger que divulga tenha um dia tempo de ler o livro que está a divulgar (“ e espero que goste”). O que a maior parte dos bloggers que se prestam a esse serviço não se apercebe, é que estão a vender pelo preço de um livro (com custos de produção que muitas vezes não vão além dos €5) a publicidade que a respectiva editora teria que pagar num jornal ou revista de referência à razão de €200 a €1000. E as editoras, claro está, não se queixam, pois em troca de uma dezena de exemplares, obtêm publicidade gratuita, agressiva, e aparentemente insuspeita, nas redes sociais. E, sobretudo, é muito mais seguro do que arriscar submeter as obras em questão ao crivo de uma crítica literária séria e objectiva (também ela cada vez mais rara e escassa entre nós).

Assim sendo, não creio que a afirmação do Fábio Ventura seja totalmente repreensível: por muito errada que fosse – e isso é inegável – a ignorância da realidade, reforçada pelo comportamento editorial, pelo que entre nós se tem maioritariamente publicado, e pela maturidade da maior parte dos seus próprios leitores, não lhe é de todo censurável.


sexta-feira, 1 de abril de 2011

Conversas Imaginárias 2011: Programa



Sábado, 16 de Abril

10:30 – Ponto de Encontro: Piano-Bar do CLP.

Sessões no Auditório:


11:30 – Novas formas de publicação em Portugal (debate com Pedro Ventura, Carla Ribeiro, Diana Sousa e Ana Cláudia Silva; moderação de Rogério Ribeiro).

12:30 – Intervalo.

14:00 – Arte Fantástica: Ilustração, Fotografia e Banda Desenhada (apresentações por Ana Cruz, André Coelho, Pedro Miranda, Manuel Alves e Diogo Carvalho; moderação de Rui Ramos).

15:30 – Marionetas do Porto (apresentação por Isabel Barros e Shirley Resende; moderação de Rui Ramos).

16:00 – O Porto Fantástico e o Fantástico no Porto: À conversa com Beatriz Pacheco Pereira (moderação de Rogério Ribeiro).

17:00 – Intervalo.

17:30 – Contos: O Fantástico em dose concentrada (debate com João Ventura, Jorge Palinhos e João Reis; moderado por Inês Botelho).

18:30 – Projectos multimédia (apresentações de Nocturnus (Rafael Loureiro-escritor+Alexandre Cebrian Valente-cineasta), Yoshi (João Pedro Sousa-mangaka+Pedro Andrade-músico), Noidz e UnderSiege; moderação de Rogério Ribeiro).

20:30 – Encontro em restaurante a anunciar. Jantar com a participação especial da contadora de histórias Clara Haddad.

Domingo, 17 de Abril

10:30 – Ponto de Encontro: Piano-Bar do CLP.

Demonstrações de roleplaying games.


Sessões no Auditório:


11:30 – Literatura Fantástica Portuguesa (debate com João Barreiros, Ana Cristina Alves, Luís Filipe Silva e João Seixas; moderação de Madalena Santos).

13:00 – Intervalo.

14:30 – Utopias e Distopias (debate com Fátima Vieira, Luís Filipe Silva e João Seixas; moderação de Inês Botelho).

15:30 – Cinema Fantástico (debate com José Pedro Lopes, Pedro Leite, Artur Serra Araújo; moderação de Rui Baptista).

17:00 – Intervalo.

17:30 – Gravação ao vivo do podcast Jogador-Sonhador (por Ricardo Tavares).


Organização: Rogério Ribeiro, Rui Baptista, Inês Botelho, Rui Ramos e Madalena Santos. Colaboração na org.: Isabel Damião (CLP).


Conversas Imaginárias 2011 @Porto



Local: CLP - Clube Literário do Porto


quarta-feira, 23 de março de 2011

Tainted Love


Este blogue é, e manter-se-á, apolítico e apartidário, mas num dia tão cheio de promessas de futuro como o de hoje, não me sai da cabeça esta música dos Soft Cell, que representa tão bem a relação recíproca entre o que parte e grande parte deste miserável país que fica:


Once I ran to you
Now I'll run from you
This tainted love you've given
I give you all a boy could give you
Take my tears and that's not nearly all
Oh...tainted love
Tainted love



Now I know I've got to
Run away I've got to
Get away
You don't really want IT any more from me
To make things right
You need someone to hold you tight
And you'll think love is to pray
But I'm sorry I don't pray that way



Don't touch me please
I cannot stand the way you tease
I love you though you hurt me so
Now I'm going to pack my things and go
Tainted love, tainted love
Touch me baby, tainted love
Tainted love

domingo, 20 de março de 2011

Para Anotar na Agenda


terça-feira, 1 de março de 2011