domingo, 3 de abril de 2011

Literatura a brincar


Desta citação, a esta citação, vai uma distância abismal, distância essa que não se resume à década que as separa: mesmo descontando o papel que a afirmação de Scully desempenha na sua diegese, mormente um apontamento pós-moderno de acreditação da ficção através da negação auto-referencial do género em que se insere, ela traduz ainda a percepção generalizada de que a FC padece ao olhar dos mundanos. FOOTLOOSE (1984), o filme de Herbert Ross, cuida do conflito geracional protagonizado por Ren McCormack (Kevin Bacon), um jovem urbano de Chicago, contra a comunidade conservadora de Bomont, cujos habitantes queimam livros e onde a música Rock e a dança se encontram proibidos. O diálogo representado na citação em questão, ocorre nos primeiros minutos do filme, e é o primeiro conflito declarado entre Ren e as “autoridades” morais da cidadezinha. Em detrimento da utilização desta cena, poder-se-ia dizer que o exemplo de Vonnegut, um autor que viria a repudiar o género, é um exercício hipócrita da minha parte, mas a verdade é que a FC aparece representada aqui como algo perigoso, adulto e subversivo, através de um livro – Slaughterhouse Five (1969) – que é indesmentivelmente pertença do género. Nos anos 50, em pleno domínio do Senador MacCarty, Theodore Sturgeon dizia que a FC era o único género capaz de ser subversivo, pois era demasiado sofisticado para ser entendido pelos censores. Quando estes adquirissem suficiente sofisticação para entender a FC, dizia Sturgeon, então estaríamos irremediavelmente perdidos.

Ao longo dos anos, dada a sua consolidação nas revistas pulp de fraca reputação, a grande luta dos géneros do Fantástico tem sido esta: a de deslocar a percepção pública da posição Scully, para a posição Ren; de estabelecer de uma vez por todas o carácter adulto, exigente e iconoclasta da Ficção Científica e do Fantástico, frequentemente encarados como mera literatura infantil e inconsequente. Essa luta vem sendo travada de forma particularmente árdua nos países não anglófonos, onde o género é, por contingência histórica, praticamente algo de importado, ao qual se chega primeiramente através de formas indirectas, como o cinema, a televisão e a banda desenhada. Qualquer autor que queira dedicar-se à escrita no género, tem que enfrentar não só a hostilidade da crítica, a indiferença dos leitores, mas também o estigma de menoridade que sobre ele de imediato recai.

Daí que não seja de surpreender a justificada reacção de David Soares e Andreia Torres a uma infeliz entrevista de um jovem aspirante a autor, que uma vez mais relega o género para o campo da literatura infantil, e às opiniões imbecilizadas constantes de alguns comentários de participantes na incipiente polémica. Embora concorde, quer com o David, quer com a Andreia, com escassas reservas, atrevo-me a avançar uma defesa para o Fábio Ventura e todos aqueles que vieram a público defender o carácter juvenil da literatura fantástica.

Se tivermos em conta a idade da maior parte dos intervenientes, e o panorama editorial dos géneros do Fantástico em Portugal, pelo menos desde 1999 (quando aqueles teriam entre 10 e 12 anos), e considerando que, infelizmente, a maior parte deles não lerá senão em português, e isso com dificuldade tendo conta a crescente degradação do ensino desde 1995, agravada agora por Bolonha, a imagem que formaram do Fantástico não deixa de ser correcta: no início da década passada, o panorama era dominado pela série de Harry Potter e pela adaptação cinematográfica da saga de Tolkien, uma e outra (a primeira pela sua própria natureza, e a segunda por imposição da classificação PG13) voltadas para um público juvenil. E de lá para cá as editoras têm-se deixado dominar por derivados de ambas, desde as Crónicas de Allarya à mais recente leva de imitações de vampiros infantis que mais parecem versões carnavalescas dos Morangos com Açúcar do que criaturas sinistras.

É um panorama não só infantil e infantilizado que mal se tem alterado nos últimos 10 anos (a não ser numa aceleração crescente pelo declive da mediocridade), mas um panorama que renega um módico de qualidade literária, procurando transferir para o merchandizing literário a mecânica das redes sociais. Isso é bem patente no fenómeno de Christopher Paolini e Stephenie Meyer, que emergiu não de apostas editoriais mas de boca-a-orelha nos fóruns cibernáuticos, alastrando-se pelas cabecinhas ocas dos seus leitores inexperientes como vírus que se atiram com sanha a um sistema imunológico deficiente. Mais grave ainda, as editoras renderam o seu papel de escolha e crivo de qualidade, entregues a contabilistas e homens do marketing, para quem um livro é apenas uma cifra do balancete do final do mês, e começaram a incentivar activamente a produção de sucedâneos iletrados destinados a alimentar este inesperado e lucrativo mercado. Tanto mais lucrativo quanto mais barato se torna recrutar um grupo de adolescentes deslumbrados pela publicação do que assegurar o pagamento de autores experientes num mercado tão competitivo (e refiro-me mais ao da literatura infantil do que da literatura fantástica); tanto mais lucrativo quanto se poupa em publicidade o que se ganha em boca-a-orelha nas redes sociais e nos blogues.

E basta passar os olhos pela esmagadora maioria dos blogues para os quais as editoras enviam os seus livros para avaliar do grau de prostituição que tal situação traduz: as “críticas” e opiniões reduzem-se à sinopse que a editora organiza (incluindo os erros crassos de português) e no facto de o dito “autor” ser muito simpático e acessível. Chega-se ao descalabro de encontrarmos “autoras” que agradecem a divulgação de um seu texto dado à estampa em edição de autor, desejando que o/a blogger que divulga tenha um dia tempo de ler o livro que está a divulgar (“ e espero que goste”). O que a maior parte dos bloggers que se prestam a esse serviço não se apercebe, é que estão a vender pelo preço de um livro (com custos de produção que muitas vezes não vão além dos €5) a publicidade que a respectiva editora teria que pagar num jornal ou revista de referência à razão de €200 a €1000. E as editoras, claro está, não se queixam, pois em troca de uma dezena de exemplares, obtêm publicidade gratuita, agressiva, e aparentemente insuspeita, nas redes sociais. E, sobretudo, é muito mais seguro do que arriscar submeter as obras em questão ao crivo de uma crítica literária séria e objectiva (também ela cada vez mais rara e escassa entre nós).

Assim sendo, não creio que a afirmação do Fábio Ventura seja totalmente repreensível: por muito errada que fosse – e isso é inegável – a ignorância da realidade, reforçada pelo comportamento editorial, pelo que entre nós se tem maioritariamente publicado, e pela maturidade da maior parte dos seus próprios leitores, não lhe é de todo censurável.


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