sábado, 28 de maio de 2011

Hell hath no fury like a worn cliché




A hárpia desperta no cimo do seu rochedo, ainda com um bocado de fígado entalado entre dois dentes. Desperta com uma comichão que já há uns dias a vem incomodando, sorvendo a cada hora um pouco mais da sua tranquilidade, alastrando metástases pela sua capacidade de apreciar as cores e os sabores da vida. As pessoas irritam ainda mais a sua comichão, o mundo sabe-lhe a fígado podre. E tudo por causa dos opinadores. Ou, pelo menos, daqueles que opinam em sentido contrário ao dela. Atrevidos. Sarnentos. Invejosos. Está que não pode. Quase rebenta. Quase não, rebenta mesmo, e sai à praça, num esganiçar de prego a raspar em alumínio (ai, esta comichão que me não larga) e é a imagem viva da indignação. Irrompe pela turba, rasga as vestes, arranca os cabelos, arranha o peito desnudo, dá palmadas de contrição, como quem espanta sabe-se lá o quê. É a imagem viva da virtude ultrajada… em suma, um cliché. Ela sabe que o é, mas sente um perverso prazer pessoal na inversão dos papéis. Não é o cavalheiro que sai em defesa da dama; é ela que sai em defesa do oprimido. E brada, na praça, de braços erguidos ao céu distante, como que amaldiçoando-o por se não deixar agarrar. Ela leu livros de todas as cores: o livro negro do fascismo, o livro azul do Hynek, o livro de contos do padre Castanho, e o livro vermelho de Mao, mas nenhum se compara ao Livro, único e verdadeiro, sacrossanto sobre todos os outros, o livro da Boa Venturança. Não fosse a comichão. A comichão que dá forma ao seu pensamento, que molda o conteúdo. Não, não, berra, não há conteúdo.

Escusado será dizer, que ela não berra verdadeiramente, nem rasga as vestes, nem se coça desesperada, mas a sua escrita é de uma tal sinestesia, que se traduz nos sentidos como som e fúria, a cavalgada das Valquírias na ponta dos dedos, o Hino à Alegria no iluminar do ecrã. Um caso exemplar de forma a dominar o conteúdo, a transformá-lo num cliché. Hell hath no fury like a woman scorned. A não ser, talvez, uma mulher desprezada por interposta pessoa. Ou por interposto livro. Ai a comichão.

A comichão, e o livro, e a matéria de que se faz a literatura. A literatura é representação, a literatura é transcendência; a literatura é, no melhor dos casos, um reflexo do que podemos ser, no pior, o espelho da nossa banalidade. A literatura é, quando trabalhada por quem lhe quer bem, uma luta incansável contra o cliché, contra a representação banal do banal. Porque até o banal pode ser transcendente. Seis mil milhões de pessoas à face da Terra, neste momento, permitem-nos supor que praticamente doze mil milhões delas terão experimentado, pelo menos uma vez na vida, os prazeres do sexo. Nada pode ser ao mesmo tempo mais banal e mais transcendente do que o sexo. Nada gera mais clichés do que o amor. Um milhão de adolescentes queixar-se-ão todos os dias, um pouco por todo o mundo, da namorada que os deixou e que não quis saber deles. Escrevê-lo assim, com todas as letras, com a banalidade de uma novela da TVI, de um episódio dos Morangos com açúcar, é um cliché. Escrevê-lo num contexto que nada contribui para a evolução da narrativa, é um cliché forçado, inserido a martelo por um escritor inábil que não sabe como dar personalidade às suas personagens. Imaturidade? Talvez. Mas voltemos à comichão primordial. Abordemos um dos maiores clichés da literatura: a perda da virgindade. Todos a perdemos um dia, e em mais do que um sentido. Martin Amis chama a atenção para uma dessas cenas em Making Love: An Erotic Odyssey (1992), uma falsa autobiografia de um tal Richard Rhodes: “My heart started pounding. I was avid. I was also terrified (…) Gussie’s body was a woman’s body, generous and real (…) I lay on the bed filled with happiness, one with the universe (…) It was springtime. I jumped into the air and clicked my heels.” Tudo nesta cena é um cliché. O ambiente, as personagens (um rapaz virgem na visita a uma prostituta – que revela ser golden hearted, ao contrário da nossa hárpia. Bem feita que continue com a comichão), as expressões utilizadas… Sim, as expressões utilizadas.

Compare-se com a completa fuga ao cliché que encontramos numa pequena preciosidade de Ed McBain (Evan Hunter) que dá pelo título Guns (1977). A cena é a mesma: o momento em que o nosso herói vai perder a virgindade. Ele é Colley, um jovem obcecado por armas, que matou pela primeira vez aos dezasseis anos, mas que ainda é virgem aos vinte e nove. Ela é Jeanine, uma stripper que já não é virgem há muito, mas que acaba de matar o seu primeiro homem (uma outra forma de perder a virgindade). O sexo que se inicia está marcado pelos fantasmas habituais – performance anxiety, talvez instigada pelo irmão dele que sempre lhe dissera que as armas são símbolos psicológicos para o pénis (um cliché), mas também pela euforia dela pelo assassinato que acabara de cometer (com uma faca, símbolo fálico por excelência - outra vez a inversão dos papéis). As tensões transformam aquela primeira experiência num duelo magnífico, onde o sexo é equacionado por ele com os mecanismos de uma arma, e por ela como uma forma de recuperar o domínio sobre a falocracia.


Colley loved guns, there was no question about that. He remembered His various guns now as Jeanine whispered in his ear, urging him to explode inside her. She’d killed one man in the kitchen by stabbing him to death with a fourteen-inch blade, and now he suspected she wanted to kill another one here in the living room by fucking him to death. He sensed it would be dangerous to leave this woman unsatisfied; (…) Willfully, he thought of guns. Lovingly, he thought of their parts. (…)
He’d disassembled enough of them to know that their design was basically simple. He thought of that design now, concentrating on what caused the explosion in the barrel of a pistol, refusing to obey her whispered urgings, knowing he could not himself explode inside her or he would one day pay for it. She herself was paying all her markers, and perhaps that’s all she wanted or needed to do (…) But he felt certain she was testing him somehow, having utterly destroyed a man bigger and stronger than himself and wanting now to reduce him similarly (…). He was afraid of leaking his juices inside her vault. He was afraid that would be the same somehow as Jocko leaking his blood on to the kitchen floor. She suddenly rolled him off her. She sat up.
Her mouth descended.
In the simplest of pistols, like the Colt.22 Derringer, there were only seventeen parts, and you could assemble the gun from scratch for about twenty-five dollars. In a more complicated gun, like the German Luger, there were fifty or more parts. Colley new the names of the parts (…) Front sight and breechblock, toggle joint and firing pin, trigger bar spring stud…
He was frightened now. His mind frantically grasped for other names, breechblock catch link rivet (…).
There was nothing subtle about her attack now. She no longer wished to tantalize with slow bumps and grinds learned on rickety stages in smoky saloons. Her breathing was labored as she worked him liquidly, he was melting into her mouth, he was loosing himself to her, he twisted his head violently…
In any gun, the cartridge sat in a narrow metal shaft. It was composed of case, primer, powder and bullet. When the trigger was squeezed, the spring action caused the firing pin to strike the back of the cartridge case, denting it and simultaneously causing an explosion to fulminate…
She lifted her mouth for just an instant.
‘Come, you son of a bitch’, she whispered.
…igniting the powder and propelling the bullet from the shaft.


Não é necessária uma única referência ao suor, ao bater do coração, ao estado emocional de cada um. E no entanto está tudo lá, no ritmo da linguagem, na homofonia dos termos, na analogia das distintas mecânicas. Não se encontra aqui um único cliché (a não ser, talvez o “melting in her mouth”), um único “e os dois foram um” ou “comunhões com o universo”, ou o cigarrinho pós-coital.

Um cliché é um acto, uma expressão, uma cena, uma situação, uma personagem. Uma música pode ser um cliché. Um cliché pode ser uma voz quando é usada para imitar a percepção generalizada de um povo, ou de uma região. Um cliché pode ser um comportamento, pode ser uma reacção. O cliché está no coração da caricatura. A nossa hárpia de vestes esfarrapadas, peito retalhado e comichão imparável encarnou a mais velha das caricaturas, o mais batido dos clichés. Afinal, já James Blish dizia que acusar um crítico de ódiozinhos pessoais era apenas sinal de que alguém tinha sentido os calos pisados. Também costumava dizer que era coisa que passava com a idade.

Escolhi os exemplos deste texto numa tentativa de levar a forma ao encontro do conteúdo. Tudo isto parece já uma mera conversa de cama, onde só falta virem falar de frustrações freudianas e sublimações edipianas. Mas, por vezes, querida hárpia, o meio é realmente a massagem, e a forma é também o conteúdo. O problema não é a comichão. É o fígado entre os dentes.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A Road to Nowhere



The arbitrement is like to be bloody.
William Shakespeare, King Lear.


Devemos forçosamente hesitar antes de abordar um texto como A Estrada e a Catacrese. Como um objecto estranho, circundámo-lo, entre curiosos e fascinados. Como uma daquelas ilusões estereópticas, oscila entre uma imagem que se quer afirmar e um caos colorido, sem sentido ou orientação. O pior de tudo, é não saber como o abordar. Sabemos que com paciência conseguiremos extrair a imagem da estática de cores, e ao mesmo tempo tememos que quando ela se forme, revele não ter valido a pena. E assim andei em volta dele sem saber como lhe pegar. Depois compreendi que a dificuldade estava em pegar-lhe sem que ele se desfizesse, sem que as frases se começassem a desenrolar despindo o vazio que tão cuidadosamente ocultavam. E o receio passa a ser outro. O texto é tão pessoal, a construção tão íntima do autor, que derrubando um, arriscámos derrubar o outro.

A verdade, é que a essência deste texto está no seu título. A Estrada, é claramente niilista, como ilustrada pela imagem de MAD MAX (1979), uma road to nowhere; a Catacrese é uma figura da linguagem que o Rogério aplica erradamente, pensando tratar-se da mera confusão entre dois termos. O seu texto é, assim, apenas isso: um erro que não leva a lado nenhum.

Porquê então abordá-lo? Porque devemos sempre admirar a valia de quem se lança na batalha, num campo que não é o seu, lutando uphill em manifesta desvantagem. E quando o adversário é destemido, ainda que inconsciente, o melhor que podemos fazer é dar-lhe luta, honradamente. Nem que para isso tenhamos que o trespassar fatalmente.

Sobretudo porque a intenção do Rogério é boa. Ele realmente quer defender o Fantástico nacional, embora não se aperceba do tremendo mal que as suas hipérboles, neste caso concreto, lhe podem causar. Em última instância, vejo no Rogério um D. Quixote do fantástico nacional: depois de anos a vasculhar a profunda estrumeira que vem transbordando das vanities sem lograr lobrigar as ansiadas pérolas literárias que está certo há-de um dia descobrir, levado pelo cansaço ou pela ilusão, pelo desespero ou desilusão, com os olhos cansados pela planura imutável que se estende à sua frente, opta por ver gigantes onde estão apenas moinhos de velas rasgadas, promessas de futuro onde morrem ontens cansados, venturas onde tudo é desventura.

Vamos então tentar não o machucar muito, certo como é que os seus erros não são de todo indesculpáveis, e a confusão demonstrada filha apenas da inexperiência, se não mesmo sintoma do eterno recomeço do Fantástico nacional que venho analisando numa outra série de posts. Que o é, pelo menos em parte, transparece da sua afirmação de que o “nosso” cânone “de momento pouco mais terá que o Frankestein, o Drácula, o Senhor dos Anéis, o Harry Potter, o 1984, o 2001, o Verne e o Wells”. Nesta espantosa frase, quase perdida na abundante verborreia jaculatória que domina o resto do texto, reside a essência do erro que lhe distorce a visão, como um par de lentes riscadas. Em primeiro lugar, a admissão de que o Fantástico nacional parece ser um mundo à parte, sem referências que não os picos mais visíveis da imensa frota de icebergs que desliza pelos profundos oceanos da imaginação; um Fantástico morto de sede em pleno mar, incestuoso, incapaz de dialogar com o mais vasto corpo de textos estrangeiros que nunca foram traduzidos cá. Em segundo lugar, revela que não entende o que é o cânone, que deve pensar tratar-se de um panteão de obras sagradas, intocável, petrificado, com todas as conotações necrológicas que tal metáfora contém. Em terceiro lugar, soçobra imediatamente sob o imediatismo do eterno recomeço, incapaz de pensar para lá do fenómeno de vendas, do fenómeno social, confundindo – ou procurando confundir –o que significa o impacto de determinada obra sobre o tecido cultural ou as convenções genéricas, com os fenómenos de massa gerados pelas redes sociais. Um exemplo: desde 2001, todos vivemos sobre o impacto directo do 11/9. Não há livro que seja escrito, filme que seja lançado, que não esteja directa ou indirectamente influenciado por esse acontecimento. No entanto, nos dez anos decorridos desde então, não se escreveu ainda, nem se realizou ainda, o livro ou o filme que traduzisse a real dimensão desse evento na mesma medida em que, por exemplo, THE DEER HUNTER (1978) traduziu o impacto da guerra do Vietname.

A influência de determinado texto não é apenas o do potencial de gerar imitação, ou consumo de massa. The Da Vinci Code poderá ter imenso interesse como objecto de estudo social, mas nunca fará parte do cânone literário, como ficou já demonstrado pela própria efemeridade do seu sucesso. Também não se pense que tem apenas a ver com qualidade: "Doc" Smith nunca será visto como um autor de grande mérito literário, tal como H.G. Lewis não será visto como um grande cineasta, e no entanto, poucas obras tiveram tanto impacto e ao longo de tantas gerações como as space operas do primeiro e o BLOOD FEAST (1963) do segundo. E não obstante, não os encontraremos no cânone.

Mas o objectivo deste texto não é pôr a nu a crescente confusão do Rogério; isso seria demasiado simples e bastar-nos-íamos com rebater ponto por ponto os seus argumentos específicos; interessa-me mais descobrir a raison-d’être que está subjacente aos erros proferidos, e essa não é menos simples de elucidar, mas mais importante de esclarecer: pergunta o Rogério “do que servirão estudos académicos sobre literatura fantástica nacional, se não acompanharem também, em tempo real, a evolução do campo?”. Poderíamos dizer que o Rogério procura apenas recuperar os argumentos estafados da Reflection Theory que nos diz que a evolução, em geral, de determinado campo cultural, reflecte a evolução em geral da sociedade. No entanto, e tal como Robin Wood (referindo-se ao cinema), também eu, enquanto a ênfase estiver no ‘em geral’, não vejo motivos para por em causa esse método de interpretação. Mas, tal como ele, também acredito que “as soon as one gets down to specifics, however, it proves far too simple: (…) within the overall movement there appear cracks, disruptions, countercurrents” (in Hollywood from Vietnam to Reagan, Columbia University Press, 1986) o que diminui seriamente a sua valia. Mas o mais importante é observar que tal como a discussão do cânone desvia a atenção do que é importante, esta questão desvia a atenção da insuspeita importância do cânone. A confusão do Rogério é clara: ele confunde o estudo académico do género, com o estudo académico de um trabalho específico (neste caso, a tetralogia de Madalena Santos), e nessa medida traduz também a sua confusão entre o trabalho da academia e o trabalho da crítica.

Mas é talvez nessa confusão que o Rogério se mostra mais impreparado e mais filho do seu tempo (ou talvez de José Jorge Letria), assumindo-se como a corporização de uma posição cultural que é já um deprimente cliché, exacerbado pela ilusão democratizante das redes sociais e pela erosão da qualidade das Universidades desde a publicação do texto seminal de Fredric Jameson, “Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism” (New Left Review, 1984) e a tomada de assalto das Faculdades de Letras pelas histéricas teóricas dos Estudos Feministas, Marxistas e Multiculturalistas, acompanhadas das fraudes intelectuais de Lacan, Foucault, Kristeva, et. al.

Como escreveu Martin Amis, na introdução de um dos meus livros de cabeceira, The War Against Cliché (Vintage, 2002), numa passagem algo extensa, mas que julgo de todo pertinente transcrever quase na íntegra, “Literary criticism, now almost entirely confined to the universities, thus moves against talent by moving against the canon. Academic preferment will not come from a respectful study of Wordsworth’s poetics; it will come from a challenging study of his politics – his attitude to the poor, say, or his unconscious ‘valorization’ of Napoleon; and it will come still faster if you ignore Wordsworth and elevate some (justly) neglected contemporary, by which process the canon may be quietly and steadily sapped. A brief consultation of the Internet will show that meanwhile, at the other end of the business, everyone has become a literary critic – or at least a book-reviewer. Democratization has made one inalienable gain: equality of the sentiments. I think Gore Vidal said this first, and he said it, not quite with mockery, but with lively skepticism. Nowadays, nobody’s feelings are more authentic, and thus more important, than anybody else’s. This is the new credo, the new privilege. (…) The reviewer calmly tolerates the arrival of the new novel or slim volume, defensively settles into it, and then sees which way it rubs him up. The right way or the wrong way. The results of this contact will form the data of the review, without any reference to the thing behind. And the thing behind, I am afraid, is talent, and the canon, and the body of knowledge we call literature.

Compare-se com aquilo que o Rogério escreveu (“As resenhas não almejam a constituição, ou imposição, de um cânone pessoal. São um reflexo da minha reacção como leitor às obras, e uma tentativa de enriquecer essa leitura com algumas considerações que me parecem relevantes no quadro das próprias obras, e do seu enquadramento no panorama do fantástico nacional (e por vezes internacional)".) e não admira que ele considere ridículo um exercício verdadeiramente crítico. (“Imagine-se o ridículo de tal exercício”.)

Pelo contrário, considero que se alguém defende que determinada obra merece ser estudada pela academia, ou que uma outra ocupa um lugar de destaque no momento presente do desenvolvimento do género, deve forçosamente ir além da mera opinião pessoal e qualificá-la com exemplos concretos. Mas quais são os fundamentos (“factos”, diz ele, sem se rir, mas sem evitar fazer-nos rir) que justificam as suas considerações?

A série As Terras de Corza abarca quatro volumes, publicados em cerca de cinco anos. Ambientada num universo inventado, na sua maioria imbuída de um tom de fantasia épica, apresenta-se desde início com especial consistência e originalidade. Dando de barato a idade da autora, ressalta na obra um rico conteúdo reflexivo, nomeadamente sobre o papel da mulher, e a natureza da conquista e manutenção do poder, entre outros temas que perpassam a série. Outro facto não negligenciável é a competência com que o arco da história foi iniciado, percorrido e encerrado; concedendo-lhe um esqueleto que efectivamente cimenta a saga numa obra única e coerente. Contrariando o deslumbramento que poderia advir a uma autora tão jovem, a história não se desvia da sua espinha-dorsal, o que faz com que muitos temas sejam apenas aflorados no que impactam directamente nos personagens, apesar de se intuírem maiores ponderações e motivações da autora nos bastidores.

Atente-se bem (entre parêntesis factos que o texto não esclarece): Quatro volumes. Publicados em cinco anos. Universo inventado. Tom de fantasia épica. Consistência (a que nível?) e originalidade (em quê?) Idade da autora (como se reflecte na obra?). Rico conteúdo reflexivo sobre o papel da mulher (qual é e em que se traduz esse conteúdo?) e a natureza da conquista (de quê, qual é, e de que forma se traduz?) e a manutenção do poder (manifestada de que forma?). Competência do arco histórico (qual a estrutura, e em que medida de afere essa competência face à complexidade do arco narrativo? E qual é esse arco?) Unicidade e Coerência da obra (Única em quê? Coerência a que nível?). E assim por diante, ad infinitum, ad nauseam

Na realidade, experimente o leitor (quer neste post do Rogério, quer na resenha inicial) substituir “a série As Terras de Corza” por “a saga A Song of Ice and Fire”, ou por “as Crónicas de Allarya”, e disporia exactamente dos mesmos elementos para aferir da validade daquilo que o Rogério nos diz.

O caso do Pedro Ventura, como nos é dito, e concordamos, é ainda mais rápido de consubstanciar, pois os erros são os mesmos, a redução da análise literária ao gosto pessoal ainda mais gravosa (“é um livro que o leitor ou adora ou odeia”, como se o livro não tivesse vida para além da subjectividade do leitor); o afã de engrandecimento é tal que quando o Rogério nos diz que “A linguagem utilizada poderá revelar-se outro ponto de ruptura. Assumidamente grandiloquente, poderá para alguns leitores ser insuportavelmente pomposa”, ficamos sem saber se está referir-se a frases ineptamente verborreicas como “(…) uma mulher que estava nesse grupo contou-me que perguntou ao Darkleton o que o levava a prestar-se a cometer um tal acto de coragem” (p.291) ou a clichés banalizantes como “Não te preocupaste em saber como eu estava quando me deixaste....” (p.111).

O que fica é a confissão de um desespero, se calhar inconsciente, de não conseguir encontrar a obra de qualidade que almeja revelar. Mas ao emprestar a tais obras as hiperbólicas qualidades que só ele vê rodando entre as brumas da planície, nas velas rotas de um moinho que não chega a ser gigante, não é só D. Quixote quem fica pendurado com os fundilhos a espreitar dos andrajos que pensava ser uma armadura, são também os verdadeiros gigantes que se vêem reduzidos à dimensão de moinhos mal amanhados.

Talvez para a próxima, em vez de beber dos delírios bélicos de Henry V, o Rogério ouça o conselho mais sóbrio e ponderado de Polonius, antes de se lançar numa campanha dominada pela emoção:

Ay, springes to catch woodcocks. I do know,
When the blood burns, how prodigal the soul
Lends the tongue vows: these blazes, daughter,
Giving more light than heat,—extinct in both,
Even in their promise, as it is a-making,—
You must not take for fire.

William Shakespeare, Hamlet

sábado, 21 de maio de 2011

Sintomatologia do Eterno Recomeço (1)



Há já vários anos que venho chamando a atenção para o fenómeno cíclico do Fantástico nacional, entre cujos sintomas se conta o muito curto prazo da memória editorial. Como escrevi no meu post anterior, é como se a cada nova moda que surgisse, a cada novo filão a explorar, tudo o que está para trás fosse apagado. Uma das decorrências de tal situação é a total falência das estratégias de fidelização de um público leitor.

Embora durante anos os leitores de FC tivessem conseguido manter três colecções duradouras, para além de umas quantas mais de menor permanência, a verdade é que nunca produziram um fenómeno de vendas equivalente a um Harry Potter ou a uma Stephenie Meyer. Pelo contrário, autores com esse estatuto universalmente garantido como Stephen King ou Isaac Asimov, não apresentavam entre nós resultados de vendas muito distintos dos de autores mais discretos como Poul Anderson ou Gordon Dickson. O que esses leitores ofereciam às editoras que publicavam essas colecções era uma constância estagnante que viria a ditar o seu fim à medida que os editores (como o caso de Belmiro Guimarães na Caminho) ou os leitores (nas restantes) iam desaparecendo, por acção do envelhecimento, do desinteresse, ou por terem sido atraídos por outros modos ou géneros de entretenimento (videojogos, RPGs, cinema, BD, etc…).

Daí que não seja de todo impertinente observar que nenhuma das editoras que agora apostam (praticamente em regime de exclusividade) no Fantástico – Presença, Saída de Emergência, e Gailivro – nunca antes de 2000 tivessem publicado o que quer que fosse nesses campos (com a ressalva de que a SdE apenas foi criada em 2003).

O que motivou o seu súbito interesse foi o inesperado sucesso da saga de Rowling, convertido num fluxo imparável de chorudos cheques. Se até esse momento a Ficção Científica, o Horror e a Fantasia eram completamente ignorados, com um ou outro título repescado apenas por ocasião de uma adaptação cinematográfica de maior repercussão comercial, depois de Harry Potter um determinado tipo de fantasia, com um determinado tipo de público-alvo, passou a significar rendimento garantido. O interesse pelo Fantástico não sofreu qualquer alteração, nem foram desenvolvidos esforços para explorar esse tipo de sucesso na captação da demografia de leitores seus destinatários para outras obras de maior valor. O que podia e devia ter sido feito, sobretudo quando ficou claro que Rowling estava a desenvolver a inteligente estratégia de fazer os seus protagonistas envelhecer a par com os leitores, até à maioridade.



Ao não ter sido desenvolvida qualquer estratégia nesse sentido, uma vez terminada essa série, observou-se uma total desorientação editorial quando as vendas dos outros volumes do Fantástico não descolaram da mesma constância de outrora, ou ficaram mesmo abaixo dela, o que decretou o fim de algumas colecções, como a Viajantes no Tempo e, aparentemente, a T.E.E.N. Dois outros casos semelhantes de inesperado sucesso repetiram-se na Gailivro com Paolini e Meyer, editora que partilha com a Presença o facto de não possuir uma tradição de publicação de Fantástico anterior ao fenómeno Potter, agravada pelo facto de os seus dois casos de sucesso, ao contrário de Rowling, serem totalmente aliterários (o que não é irrelevante para o que se vai dizer de seguida). Consequência directa dessa impreparação dos leitores (reflexo da impreparação dos editores), é claramente a concentração em imitações desses casos de sucesso e a busca desesperada de criação/descoberta de uma nova moda. Para estas editoras, a história do Fantástico em Portugal começou efectivamente em 2000.



Sintomático disso foi o desastroso press kit distribuído pelos publicitários Booktailors no pretérito 29 de Abril, promovendo a autora Lian Hearn como a “herdeira natural dos livros de J.K. Rowling” (parece-me que quereriam dizer dos leitores, mas isso é secundário para o argumento a desenvolver) e afirmando que “Samurais são os herdeiros de Harry Potter”. Esta estratégia é interessante de analisar pelo facto de tentar colar uma série de livros que já se encontra publicada em Portugal desde 2003 sem grande espectacularidade de vendas, a um fenómeno esgotado há já dois ou três anos, revelando um tremendo artificialismo no tratamento do fantástico. Mas, ainda mais interessante, é compreender como essa estratégia é extremamente redutora, pugnando pelo afecto dos leitores na identificação com um único modelo de tratamento do Fantástico: a literatura infanto-juvenil, do tipo Rowling, que foi aquele que estas editoras conheceram pela primeira vez (mutatis mutandi para o caso Gailivro, que começou por procurar duplicar o fenómeno Paolini e, através do romance paranormal, o fenómeno Meyer).

O que move actualmente o mercado é, obviamente, a pergunta que Luís Corte-Real formula no espaço Colecção Bang! da mais recente edição da revista BANG! (#9, Fevereiro de 2011): “Onde andam todas aquelas dezenas de milhares de jovens que leram e adoraram os livros de Harry Potter?” Ao contrário dos outros casos que venho discutindo, LCR compreendeu que eles (ou parte deles) “cresceram, e com eles cresceu o grau de complexidade que apreciam nos enredos e personagens dos livros que lêem.” Alguns, certamente, procuram mais e melhor literatura fantástica, e é imprescindível compreender que, crescendo, amadurecendo, o público que lia Harry Potter desapareceu de forma tão irremediável como desapareceu o público das colecções de FC de outrora. Tal como desaparecerá em breve o público que lê Stephenie Meyer. E que é inútil continuar a tentar recriar um fenómeno que já ultrapassou o seu momento histórico. Sob pena de continuarmos a viver num eterno recomeço, num presente sem passado ou promessa de futuro. Um eterno recomeço que nunca mais acaba.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Hipérbole e Consequência



Até há relativamente pouco tempo, os géneros do Fantástico eram olhados com sobranceria e desdém pelos poucos não iniciados que, por acaso ou curiosidade, se deparavam com um livro de FC nas mãos, um filme de Horror na televisão, ou, mais raramente, uma fantasia épica em qualquer dos suportes. Os iniciados, que bem conheciam a valia que os outros se recusavam a ver, não se poupavam às hipérboles, sobrecarregando o mais modesto série B ou a mais inepta das pulps, com uma carga denotativa e simbólica que muitas vezes nem o melhor de Shakespeare ou o mais brilhante de Bergman conseguiriam transportar. Em última instância, alargavam os braços procurando arrebanhar toda e qualquer obra de valor histórico para o âmbito do seu género de eleição, alheios ao ridículo ou ao potencial disparo de culatra que daí poderiam resultar.

Em The Science Fiction Novel (1964), Kornbluth escrevia a esse propósito que “some of the amateur scholars of science fiction are veritable Hitlers for aggrandizing their field. If they perceive in, say, a sixteenth century satire some vaguely speculative element they see it as a trembling and persecuted minority, demand Anschluss, and proceed to annexe the satire to science fiction”.

Em 1976, na introdução ao seu histórico ensaio The Horror Film, H.W. Dillard tecia considerações semelhantes quanto aos exageros praticados na defesa do cinema de horror antes da publicação dos trabalhos seminais de Carlos Clarens e David Pirie.

Depois um e outro género foram ganhando terreno e foram merecendo maior atenção por parte dos críticos, dos académicos e dos consumidores em geral, e o tom elegíaco foi sendo substituído, finalmente, por um tom sério e ponderado, muito mais adequado à sua nova posição. Apenas onde os géneros não mereceram ainda tal atenção, assistimos ainda ao uso exacerbado de hipérboles fantásticas, como se o mais recente exemplo da Sword & Sorcery tivesse vindo substituir a Chanson de Roland no cânone, ou o último bug-eyed monster com fecho de correr corporizasse a mesma simbólica da teratologia de Breughel.

Duas dessas hipérboles foram emitidas recentemente, em atordoante sucessão, por fonte inesperada, que considera a saga As Terras de Corza (Gailivro, 2006-2010) “como merecedora de maiores análises e aprofundamentos, inclusivamente académicos” e que O Regresso dos Deuses – Rebelião (Presença, 2011), ocupa “uma posição na actual literatura fantástica nacional que, apesar de não esvaziada de executantes, era urgente reforçar”. Quero desde já deixar claro que não li, ainda, nenhum dos volumes da autoria da Madalena Santos, pelo que as minhas palavras não pretendem constituir qualquer juízo sobre o valor ou mérito da sua obra, mas tão só observar que este tipo de encómio pode muitas vezes funcionar em detrimento desta, ao atribuir-lhe uma dimensão ou um alcance para a qual não foi pensada. Isso porque convinha definir, antes de mais, quais os tipos de obras que são efectivamente merecedoras de atenção académica séria, e não do agigantamento hitleriano que os departamentos de Estudos de Género, Teoria Marxista e Multiculturalismo têm derramado sobre textos ineptos e desastrados mas politicamente correctos. Um dos factores determinantes para avaliar da dignidade dessa atenção é o factor tempo. Há que medir o impacto que determinada obra teve sobre o tecido cultural (ou sobre as convenções genéricas), em que medida logrou realmente cristalizar o zeitgeist seu contemporâneo, e qual o grau de inovação introduzido por ela para poder esperar um estudo mais aprofundado. Em defesa da saga, diga-se que o Rogério está certamente a confundir o papel da crítica com o da análise académica e, pelo menos isso, não pode ser apontado como falha do autor.

De falhas do autor abunda o segundo caso, mas não são elas que nos trazem aqui, pelo menos não directamente. O que nos traz aqui é o posicionamento do texto como preenchendo uma lacuna no Fantástico português – e não apenas na Fantasia – sem que nos sejam apresentadas balizas referenciais. Por exemplo, seria interessante saber qual o posicionamento do texto em relação, por exemplo, a dois outros praticamente contemporâneos como Oblívio (Presença, 2011) e Batalha (Saída de Emergência, 2011), e mesmo em relação à história recente do género, abrangendo não só as demais obras de David Soares, como o corpus de textos de Inês Botelho, da própria Madalena Santos, da Sandra Carvalho ou, num registo mais próximo, Fábio Ventura, Carla Ribeiro e Diana Tavares.

Ao não o fazer, e como no caso anterior, estamos mais uma vez a mergulhar no erro de crítica que é prefigurar o eterno renascer do Fantástico, onde cada novo autor que surge, cada novo texto publicado, passa uma esponja sobre o passado e entra imediatamente num cânone tão efémero quanto subjectivamente pessoal.

É que este tipo de hipérbole acaba sempre confrontada com os seus referentes; os leitores do Fantástico poderão apenas encolher os ombros e abanar a cabeça soltando um tsc tsc tsc de incompreensão, mas os mundanos não deixarão de tomar o referente pelo referencial, a árvore pela floresta, e a hipérbole pelo real. E, nalguns casos, os danos podem ser tão irreparáveis como inesperados. É que, em última instância, ou o género ou quem profere a hipérbole... um dos dois sai mal na fotografia.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Cayatte, volta, está tudo, mas tudo, perdoado....


Num país civilizado, o responsável por uma capa destas ia preso. Ou, se o juíz fosse demasiado leniente, era triplamente sodomizado em praça pública. Diante da família. Como leitor da série Anita Blake, que fui até ao décimo quarto volume e meio, sinto-me insultado com esta capa. Já tive que aturar o imperador Palpatine na capa do Dune, o Burgess Meredith gamado à Twilight Zone na capa do Bonhomme, mas com esta tinha vergonha de andar na rua. As capas originais não são um primor, é certo, mas esta é tão inacreditavelmente má que só pode ser uma afronta aos leitores de literatura fantástica. Estão a cuspir-nos na cara. Enquanto nos dizem, tomem lá, que p´ra vocês não há melhor que isto. Cinco minutos p'ra fazer a capa no laptop enquanto se vai ao WC, que temos os livros da Meyer pr'a preparar. Ou se calhar, o problema é esse, a Meyer fechou as torneiras, com a escassa imaginaçãozita tão espremidinha, tão espremidinha, que é preciso arranjar uma substituta rapidamente. E calhou a rifa à Laurell Hamilton. Pobre moça.

É certo que as capas servem apenas para atrair leitores e muitas vezes nada têm a ver com o conteúdo do livro, mas que conste em acta que os leitores que se sentirem atraídos por esta capa não justificam sequer o ar que desperdiçam na perpetuação da sua miserável existência. Na verdade, deviam ser condenados a passar o resto da vida numa cela forrada com esta capa, com a liberdade condicionada à descoberta de qualquer coisa nela que se aproveite. Boa sorte.

O nome da autora está mal grafado. Perde um L, certamente por efeito do acordo ortográfico que fez perder as consoantes mudas e a vergonha de quem o aplica. O título, para além de deselegante, é um erro básico de português. Se não querem traduzir Guilty Pleasures por pequenos prazeres inconfessáveis, ao menos traduzam por Prazeres Inconfessados. A tradução é incorrecta na mesma, mas ao menos poupa-se a língua. Agora, inconfesso ("que não confessa o que fez; que não se confessou") só pode utilizar-se até se perder a virgindade, ou até à quarta classe - o que acontecer primeiro. Depois aquela tagline tão ao gosto dos putos imberbes que lêem Corin Tellado às escondidas: "O que fazer quando o monstro que jurámos matar se converte no homem sem o qual não podemos viver?"

A resposta é evidente: procurar o livro a que pertence e colá-la lá; bem se podia dizer que a Anita Blake não jurou matar nenhum monstro - como U.S.Marshall que é, só pode executar as criaturas sobrenaturais em cumprimento de mandato judicial ou em legítima defesa - mas se calhar é mais simples dizer que nos quinze volumes que li a moça foi para a cama com vampiros, lobisomens, demónios, metamorfos das mais variadas facções, aos dois ou três de cada vez e nas mais engenhosas combinações, mas nunca, nunca que conste, foi para a cama com um homem. Porra, já sabemos que na Gailivro ninguém lê os livros que publicam, mas não façam as coisas assim tão às abertas.

E que dizer da mocinha, naquela pose tão Cristianne F.-deixou-as-drogas-e-passou-a-acompanhante-de-luxo? Que não tem o cabelo encaracolado de que a protagonista se queixa, que não veste de forma prática como a personagem tantas vezes tem que fazer e que é descrita repetidamente, que não ostenta as cicatrizes nos braços que são uma das suas marcas distintivas e testemunhos de personalidade? Não interessa dizer nada, porque esta capa é apenas mais um sintoma da prostituição (pun clearly intended) a que o Fantástico tem sido submetido nesta era pós-Meyer. O leitor que pegar neste livro, um policial forense duro, uma dark fantasy bem conseguida, um marco da literatura de vampiros, e um dos progenitores distantes do moderno romance paranormal, atraído por esta capa, vai ter um choque ao aperceber-se que não comprou mais uma fantasia pedófilo-platónica de pirilampos crepusculares ao entardecer, anoitecer, aborrecer. Ponha-se na fila e exija o dinheiro de volta.

Já agora, e para que não me acusem de não ser construtivo, aqui deixo a minha sugestão para a capa da biografia da Madre Teresa de Calcutá: