quinta-feira, 19 de maio de 2011

Hipérbole e Consequência



Até há relativamente pouco tempo, os géneros do Fantástico eram olhados com sobranceria e desdém pelos poucos não iniciados que, por acaso ou curiosidade, se deparavam com um livro de FC nas mãos, um filme de Horror na televisão, ou, mais raramente, uma fantasia épica em qualquer dos suportes. Os iniciados, que bem conheciam a valia que os outros se recusavam a ver, não se poupavam às hipérboles, sobrecarregando o mais modesto série B ou a mais inepta das pulps, com uma carga denotativa e simbólica que muitas vezes nem o melhor de Shakespeare ou o mais brilhante de Bergman conseguiriam transportar. Em última instância, alargavam os braços procurando arrebanhar toda e qualquer obra de valor histórico para o âmbito do seu género de eleição, alheios ao ridículo ou ao potencial disparo de culatra que daí poderiam resultar.

Em The Science Fiction Novel (1964), Kornbluth escrevia a esse propósito que “some of the amateur scholars of science fiction are veritable Hitlers for aggrandizing their field. If they perceive in, say, a sixteenth century satire some vaguely speculative element they see it as a trembling and persecuted minority, demand Anschluss, and proceed to annexe the satire to science fiction”.

Em 1976, na introdução ao seu histórico ensaio The Horror Film, H.W. Dillard tecia considerações semelhantes quanto aos exageros praticados na defesa do cinema de horror antes da publicação dos trabalhos seminais de Carlos Clarens e David Pirie.

Depois um e outro género foram ganhando terreno e foram merecendo maior atenção por parte dos críticos, dos académicos e dos consumidores em geral, e o tom elegíaco foi sendo substituído, finalmente, por um tom sério e ponderado, muito mais adequado à sua nova posição. Apenas onde os géneros não mereceram ainda tal atenção, assistimos ainda ao uso exacerbado de hipérboles fantásticas, como se o mais recente exemplo da Sword & Sorcery tivesse vindo substituir a Chanson de Roland no cânone, ou o último bug-eyed monster com fecho de correr corporizasse a mesma simbólica da teratologia de Breughel.

Duas dessas hipérboles foram emitidas recentemente, em atordoante sucessão, por fonte inesperada, que considera a saga As Terras de Corza (Gailivro, 2006-2010) “como merecedora de maiores análises e aprofundamentos, inclusivamente académicos” e que O Regresso dos Deuses – Rebelião (Presença, 2011), ocupa “uma posição na actual literatura fantástica nacional que, apesar de não esvaziada de executantes, era urgente reforçar”. Quero desde já deixar claro que não li, ainda, nenhum dos volumes da autoria da Madalena Santos, pelo que as minhas palavras não pretendem constituir qualquer juízo sobre o valor ou mérito da sua obra, mas tão só observar que este tipo de encómio pode muitas vezes funcionar em detrimento desta, ao atribuir-lhe uma dimensão ou um alcance para a qual não foi pensada. Isso porque convinha definir, antes de mais, quais os tipos de obras que são efectivamente merecedoras de atenção académica séria, e não do agigantamento hitleriano que os departamentos de Estudos de Género, Teoria Marxista e Multiculturalismo têm derramado sobre textos ineptos e desastrados mas politicamente correctos. Um dos factores determinantes para avaliar da dignidade dessa atenção é o factor tempo. Há que medir o impacto que determinada obra teve sobre o tecido cultural (ou sobre as convenções genéricas), em que medida logrou realmente cristalizar o zeitgeist seu contemporâneo, e qual o grau de inovação introduzido por ela para poder esperar um estudo mais aprofundado. Em defesa da saga, diga-se que o Rogério está certamente a confundir o papel da crítica com o da análise académica e, pelo menos isso, não pode ser apontado como falha do autor.

De falhas do autor abunda o segundo caso, mas não são elas que nos trazem aqui, pelo menos não directamente. O que nos traz aqui é o posicionamento do texto como preenchendo uma lacuna no Fantástico português – e não apenas na Fantasia – sem que nos sejam apresentadas balizas referenciais. Por exemplo, seria interessante saber qual o posicionamento do texto em relação, por exemplo, a dois outros praticamente contemporâneos como Oblívio (Presença, 2011) e Batalha (Saída de Emergência, 2011), e mesmo em relação à história recente do género, abrangendo não só as demais obras de David Soares, como o corpus de textos de Inês Botelho, da própria Madalena Santos, da Sandra Carvalho ou, num registo mais próximo, Fábio Ventura, Carla Ribeiro e Diana Tavares.

Ao não o fazer, e como no caso anterior, estamos mais uma vez a mergulhar no erro de crítica que é prefigurar o eterno renascer do Fantástico, onde cada novo autor que surge, cada novo texto publicado, passa uma esponja sobre o passado e entra imediatamente num cânone tão efémero quanto subjectivamente pessoal.

É que este tipo de hipérbole acaba sempre confrontada com os seus referentes; os leitores do Fantástico poderão apenas encolher os ombros e abanar a cabeça soltando um tsc tsc tsc de incompreensão, mas os mundanos não deixarão de tomar o referente pelo referencial, a árvore pela floresta, e a hipérbole pelo real. E, nalguns casos, os danos podem ser tão irreparáveis como inesperados. É que, em última instância, ou o género ou quem profere a hipérbole... um dos dois sai mal na fotografia.

7 comentários:

Marco Lopes disse...

Em primeiro lugar gostaria de chamar a atenção para o facto de não ser fácil ser crítico de literatura, pois muitas pessoas não sabem o que é uma crítica, e as restantes confundem critica com opinião, distorcendo a critica, e transformando aquilo que é suposto ser algo construtivo em algo destrutivo, o que é pena pois em muitos caso poderiam até aprender alguma coisa. E claro o seu texto, e digo isto para os que não sabem ler nas entrelinhas, está devidamente fundamentado, quer se goste ou não.
O que mais impressiona no seu texto é a chamada de atenção para algo que já é bastante conhecido, mas que continua a ser ignorado por uma vasta maioria, a falta de memoria dos leitores e editores no campo da FC&F Portuguesa, embora os primeiros façam-no por ignorancia e os segundos por motivos economicos.
Em jeito de nota final (neste comentario) gostava de deixar dois pedidos/desafios ao João. Em primeiro não deixe esta “cruzada”, pois é uma voz de muita importancia no panorama nacional da literatura Fantastica e que vem acrescentar “peso” a todos nós que também temos uma opinião similar à sua. Em segundo lugar gostaria de ler em breve o “reverso da moeda”, um texto que fale dos bons exemplos que por cá existem, porque embora a Lei de Sturgeon diga que são poucos, eles existem e à que também mostra-los, para que vejam que nem tudo é mau, que existem bons exemplos.

Um abraço

João Seixas disse...

Marco,
Obrigado pelo comentário. Como pode ver pelo meu post mais recente, não tenciono largar a "cruzada" como lhe chama, e espero também em breve retomar aqui no blogue uma actividade crítica mais frequente, abordando vários bons livros de autores nacionais. Mas, e como dizem os americanos, "things must get a lot worser before they can get any better", pelo que se calhar é conveniente limpar as águas primeiro.

A ver vamos.

Um grande abraço,

Seixas

Anónimo disse...

Este comentário peca principalmente por meter no mesmo saco obras de fantasia decentes como as da Madalena Santos ou do Fábio Ventura e obras terríveis como Sandra Carvalho, Inês Botelho e principalmente Diana Tavares. Logo aí perco a vontade de ler o resto do post.

Ah claro, mas você não leu as obras, já me esquecia! É por isso que acha que o fantástico nacional está todo a um mesmo nível (tirando, claro, David Soares, que toda a gente parece querer idolatrar mas é muito inferior, p.ex., a Madalena Santos).

João Seixas disse...

Caríssimo potatomash:

Era capaz de levar a mal que me dissesse que não li as obras que refere, mas não cheguei a essa parte.

Logo que li Fábio Ventura e obras decentes numa mesma frase já não conseguia ler o ecrã com as lágrimas de tanto me rir.

Por favor, apareça por cá mais vezes. Faz falta um sentido de humor como o seu.

João Seixas

Anónimo disse...

Mas, caro Sr. Seixas, como pode avaliar se uma obra é decente se nunca a leu? ;)
Pena que as pessoas que tão "defendem" o fantástico sejam tão ignorantes, mas deve ser complexo de inferioridade por serem tão desconhecidos dos verdadeiros peritos em literatura! Por isso mandam "postas de pescada" para blogs na tentativa de serem reconhecidos! Infelizmente, apenas se afundam mais!

João Seixas disse...

Caríssimo puré de batata,

Obrigado por mais uma vez vir alegrar este espaço com o seu humor tão auto-flagelante. Não é normal vermos alguém expor-se com tanta generosidade ao ridículo.

Sobretudo tendo que dar-se ao trabalho de o fazer num blogue que ao que diz, passa ao lado dos verdadeiros peritos em literatura, que devem ser o cãozinho e o piriquito aí de casa.

Mas se está à espera que eu me descaia a confirmar que li o decentíssimo Ventura por ter feito parte de um famigerado juri, de um famigerado concurso.... não tem sorte.

Mas continue a tentar. Ainda só comentou um dos meus posts. Tem mais 224 para tentar.

Boa sorte,

Marco Lopes disse...

Caro(a) potatosmash

Não sei que idade tem ou o que já leu, portanto torna-se difícil responder-lhe. Eu já leio à 10 anos de um modo consistente e a cada livro tenho aprendido que ainda não sei é nada, e que quando leio um livro que acho que é um grande livro aparece logo outro que coloca esse a um canto. Portanto antes de dizer que este ou aquele livro é "decente" (quer isso dizer o que quiser) leia muito e lá mais para a frente verá que talvez as coisas não são assim.

E já agora, sem querer dar uma de advogado, e servindo-me das palavras da Safaa Dib referindo-se as leituras do João Seixas "Até já leu coisas inenarráveis que não lembram ao diabo", portanto lembre-se que este homem já leu de tudo, provavelmente muito mais do que irá ler durante a sua vida.

Um abraço

Marco Lopes