terça-feira, 18 de novembro de 2008

Um livro por dia: ARMADILHA CÓSMICA



Sem passado, sem futuro, e com o presente a esvair-se-lhe por entre os dedos, o leitor português de ficção científica não tem que enfrentar apenas a fraca qualidade das traduções, a frequentemente pobre escolha dos títulos, a escassez de exemplares ou a distribuição incerta, a duplicação de edições sob títulos distintos ou o mesmo título para obras diferentes, mas também o carácter fragmentário do que se vai traduzindo. Nomeadamente séries interrompidas, publicadas sem respeito pela ordem dos diferentes volumes, multiplicados em três ou mais tomos por cada entrega do original, muitas vezes entregues a uma multiplicidade de tradutores que não respeitam a continuidade dos termos, topónimos ou expressões.

O fenómeno não é recente e não deixa incólume nenhuma das editoras nacionais, do passado ou do presente. Por um lado, a aposta numa série nem sempre é acompanhada da necessária fidelização do público leitor; por outro, esse mesmo público leitor volta as costas aos esforços editoriais.

Consideremos Philip José Farmer. O autor de Terre Haute, Indiana, que cumpriu este ano o seu nonagésimo aniversário, é um dos poucos escritores que consegue escrever primorosamente na FC, na Fantasia, na Science Fantasy, no Scientific Romance, no Policial, na Pornografia, no Horror, no ensaio e na falsa biografia (de que escreveu duas excepcionais: a de Tarzan e a de Doc Savage). É, além do mais, um dos poucos autores ainda vivos que consegue escrever ao estilo do genuíno pulp, sem necessitar de reproduzir os seus defeitos, indubitavelmente fruto de um amor e de um entusiasmo quase juvenil pela literatura de género, que o isenta de nela escrever com sobranceria ou consciência do carácter menor que muitas vezes lhe é atribuído. Vejam-se os contos pretensiosamente pulps escritos por Michael Chabon, Michael Moorcock, Jeff Vandermeer, Mike Resnick et al. para compreender a diferença. Talvez apenas Ron Goulart e Joe R. Landsdale (ou mesmo Kim Newman) consigam ombrear com Farmer.

ARMADILHA CÓSMICA, número 26 da Série Antcipação da Galeria Panorama foi publicado em 1969 em pleno vazio referencial. O leitor que então o encontrasse na livraria provavelmente não saberia que acabava de adquirir uma das obras incluídas na série The World of Tiers (7 volumes entre 1965 e 1993, dos quais apenas 3 foram publicados em Portugal). Nada no texto da contracapa o informaria da verdadeira natureza do livro, pois este é apenas a transcrição do primeiro parágrafo da obra. E, certamente, ninguém lhe diria que esta tradução de THE GATES OF CREATION (1966) é na verdade o segundo volume dessa série, dando continuidade às aventuras de Wolff/Jadawin no universo de múltiplos universos de que o World of Tiers é apenas um.

Jadawin é apenas um dos vários Lords que são senhores da criação destes vários universos de bolso, cada um deles governando o seu próprio planeta - construções artificiais que acompanham o gosto pessoal dos seus criadores (em A PRIVATE COSMOS, 3º volume da série, aprendemos que Jadawin, a pedido de Kickaha - herói por excelência do 3º e 4º volumes, embora intervenha também no primeiro - tentou reproduzir na Lua do World of Tiers o Marte de Burroughs que incendiava a imaginação daquele Kickaha quando vivia ainda na Terra). Ora, Tereza Curvelo, tradutora deste volume, escolheu traduzir aquele Lords por Deuses, dando azo, logo na 1ª página, a uma frase como: "Foi então que os Deuses descobriram que até eles, criadores de universos, possuidores de uma ciência que os colocava apenas um degrau abaixo dos deuses, necessitavam sonhar".

A Galeria Panorama viria a publicar A PRIVATE COSMOS, sob o título O COSMOS DE KICKAHA em 1970. A colecção não chegaria a publicar o quarto volume da série, BEHIND THE WALLS OF TERRA surgido em língua inglesa nesse mesmo ano. ARMADILHA CÓSMICA e o COSMOS DE KICKAHA contam duas narrativas independentes - a de Jadawin e a de Kickaha - que decorrem em simultâneo, unindo-se no final de ambos os volumes para darem origem à narrativa subsequente, passada na Terra, na Califórnia de 1970. Os laços estreitos que unem Jadawin e Kickaha, e que justificam esta última aventura, são estabelecidos no primeiro volume, que os leitores da Série Antecipação nunca puderam ler...

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