Os anos setenta - a geração do "eu" - foram ao mesmo tempo o culminar e a antítese das convulsões sociais dos anos do flower power. Estreada com o sangue de Altamont (1969), a década de 70 foi um misto estranhíssimo de (neo)realismo, cinismo, racionalismo científico, sobrenatural, satanismo, catastrofismo e a afirmação do indivíduo. Se isso foi assim em quase todo o mundo ocidental (pelo menos no hemisfério norte e América Latina), que dizer de Portugal, que sensivelmente a meio da década experimentou a última "revolução" militar do século XX na Europa? Como temos vindo a constatar ao longo desta série de posts, a ânsia de descoberta da cultura ocidental (e alguma oriental) - fosse ao nível da produção cinematográfica de Hollywood, da Cinecittá, de Hong Kong, do Japão, fosse ao nível da literatura de género, sobretudo europeia e americana - traduzia-se na tradução, sem qualquer critério ou linha orientadora, de tudo aquilo que estava na moda ou na berra além-fronteiras.
E, se houve um filme que esteve na moda além fronteiras em 1973, foi The Exorcist de William Friedkin, baseado no romance homónimo de Peter Blatty. A par de Rosemary's Baby (1968) de Polanski (baseado na novela de Ira Levin), O Exorcista iria despoletar uma vaga de imitações nos quatro cantos do mundo, colocando a religião e o satanismo no centro da discussão. Os acontecimentos de Jonestown em 1978, vieram apenas sublinhar os extremos a que a irracionalidade religiosa pode chegar.
Os anos setenta, mais do que qualquer outra década, viram aumentar a procura de livros e filmes sobre O Diabo, sobre o Ocultismo (ou melhor, aquele oxímoro que é "as Ciências Ocultas") e sobre os rituais satânicos. É certo que Stephen King veio revolucionar o estagnado género do horror em meados da década, mas as suas ideias encontraram solo fértil numa sociedade que parecia ter absorvido cada nuance das missas negras, dos sacrifícios humanos, da cópula diabólica e das orgias do bode. Em Portugal, dando seguimento ao grande sucesso da publicação de O Despertar dos Mágicos (La Matin des Magiciens) de Bergier e Powells pela Bertrand, surgiram inúmeras coleccções sobre (pseudo)enigmas da história (outro fenómeno paralelo despoletado pelo clássico da pseudo-ciência Eram os Deuses Astronautas? de von Däniken), ocultismo e demais mistérios ovniológicos (Portas do Desconhecido, Enigmas disto e daquilo, etc...)
Perdido no meio desa avalanche que se estendeu até meados dos anos 80, quando os portugueses parecem ter descoberto os livros de auto-ajuda, e a PORTUGAL PRESS traduziu entre nós este OS FILHOS DO DIABO, uma antologia de contos organizada por Peter Haining (1940-2007), misturados com duas breves notícias relacinadas com satanismo e retiradas de jornais ingleses e excertos de obras de Aleister Crowley e Montague Summers. Os filhos do diabo, no dizer de Haining, são os satanistas, aqueles que prestam culto ao Maligno, numa linha de continuidade com os míticos sabbaths de outrora.
Haining foi um insigne antologiador, especialista em literatura de horror e conhecedor profundo da série de televisão Dr. Who (1961-). No entanto, na apresentação que nos é feita do autor neste volume, o ênfase (tal como sucedera também com Dennis Wheatley, que também está representado neste volume) é colocado na impressão de que ele seria alguém profundamente envolvido nas práticas ocultas: "Peter Haining é um escritor e antologista que vive no coração da famosa «região das bruxas» no Essex (...) Possui uma vasta biblioteca de raros e valiosos livros sobre Ocultismo, quer de verdadeiro, quer de ficção, e está presentemente empenhado em editar mais duas antologias e um estudo pormenorizado sobre Bruxaria e Magia Negra".
No interior do volume, para além de uma introdução de August Derleth, encontramos contos clássicos de Lovecraft, E. F. Benson, Algernon Blackwood e Clive Cartmill, criteriosamente seleccionados e precedidos de uma breve introdução histórica e temática. Ecos de um período onde um livro de bolso podia esconder sob a capa lúbrica e ousada - da autoria de Carlos Alberto, que no ano seguinte começaria a ilustrar as histórias e a elaborar as capas dos 28 números da Zakarella de Roussado Pinto), e que aqui retém apenas a cabeça do bode e a disposição cromática da capa original - uma selecção de contos de autores de alto quilate, raramente traduzidos entre nós, antes ou depois.
Publicado em Março de 1975, e abrindo com a advertência AVISO AO LEITOR: FECHE ESTE LIVRO ANTES DO CAIR DA NOITE. O HORROR CRESCENTE DAS SUAS PÁGINAS JAMAIS FOI IGUALADO!, é mais um marco de uma era estranha da história cultural de Portugal... uma era onde tudo era permitido e todas as esperanças eram legítimas.
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