Um olhar, ainda que breve, sobre a realidade cultural portuguesa de hoje, revela um panorama de anódina igualdade. Se Beaudrillard necessita ver vingado o seu conceito de "mínimo denominador comum da cultura", bastemo-nos com exibir o triste panorama das livrarias e do cinema para o confirmar. É certo que o fenómeno não é exclusivo de Portugal. Nem sequer originário de Portugal. No entanto, aquela malfadada ausência de massa crítica de leitores com que sempre vamos justificando o eterno adiar do futuro, faz com que a nossa mesmedidade seja ainda mais igual a si própria, do que as outras.
E, perante tal panorama, parece difícil acreditar que há pouco menos de 30 anos, numa outra geração, as coisas foram - por um efémero período de tempo - diferentes. Neste fantástico período que vimos visitando em pequenos mergulhos nostálgicos, a realidade apresentave-se-nos numa policromia ofuscante. A falta de critério ou de método de selecção que referi já por várias vezes foi uma das suas maiores virtudes. É como se necessitássemos de um certo caos não esquematizado, não estruturado, para nos permitirmos uns afloramentos de criatividade.
Nos anos setenta, ao mesmo tempo que se operava a mudança de regime, ao mesmo tempo que perdíamos as aspirações de império, Portugal recebia o mundo de braços abertos... descobria-o, imitava-o, processava-o. Foi também nos anos setenta que Portugal descobriu o sexo. Descobriu que havia outras saias mais interessantes do que a sotaina do sr. vigário. Os cinemas abriram-se à pornografia. Contam-me que na zona de Caminha e Cerveira, em 1974-1975, quando o Espanhóis tinham ainda a sua ditadura, nuestros hermanos afluíam como moscas às sessões porno do cinema dos bombeiros, ajudando a corporação ao mesmo tempo que assistiam ao impensável.
Não sei se foi nesse período de 74/75 que a GALERIA PANORAMA, dirigida por Lima Rodrigues publicava OS AMANTES de Philip José Farmer como primeiro número (e único) da série Antecipação-Extra. Afinal, The Lovers, é o texto canónico que reputadamente introduziu o sexo na moderna ficção científica. Originalmente publicado como uma noveleta na Startling Stories de Agosto de 1952, valeu a Farmer o Hugo de 1953 para o autor mais promissor, tornando-se num clássico instantâneo. Em 1961, Farmer transformá-la-ia numa novela que, apesar de unanimemente considerada como título obrigatório em qualquer colecção de FC que se preze, não encontraria grande circulação até a Ballantine a reeditar em 1972. Creio que essa reedição, comemorativa dos 20 anos da publicação original da história, serviu de catapulta para a sua tradução nacional (que ainda me não foi possível localizar com precisão, mas que encaixa nesta cronologia).
Uma coisa, porém, pode ser dita em abono de Lima Rodrigues: a edição é sóbria, não fazendo o menor apelo à polémica que o livro (ou melhor, a história) causou aquando da sua primeira publicação. Ao invés de sexo, o texto do verso de capa fála-nos de Amor (assim, com mauúsculas). É certo que no período em que (penso que) o livro foi publicado, dificilmente chocaria alguém (já em 1952, logrou chocar apenas os leitores de FC, que encaravam ainda o género como uma divisão da literatura infanto-juvenil); mas a verdade é que o livro não trata de sexo: trata do confronto com a alteridade, com as imposições religiosas, e com as ligações carnais entre fisiologias aparentemente incompatíveis. Quem o ler procurando descrições gráficas de actos sexuais, melhor fará em ler FLESH, BLOWN ou IMAGE OF THE BEAST do mesmo Farmer. O que encontrará em OS AMANTES é um excelente livro de FC que Lima Rodrigues soube reconhecer como um clássico intemporal.
E que necessitados estamos de recordar os clássicos, confrontados com um mercado que parece pensar que a FC nasceu com MATRIX (1999).
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