3. A SIMETRIAPara compreender a situação actual da FC em Portugal é necessário descobrir porque motivo a
Simetria - Associação Portuguesa de Ficção Científica e Fantástico, não conseguiu agregar o
fandom em torno de um projecto comum.
A verdade, como Jorge Candeias observa noutras páginas desta edição, é que o surgimento da Simetria no panorama nacional marcou o progressivo declinar da FC em Portugal. Ao invés de unir os
fans em torno de um objectivo comum, a Simetria entrou numa dinâmica de desagregação patológica, provocando, um atrás do outro, os diversos incidentes que, no
fandom ficaram conhecidos como
Barreirosgate,
Candeiasgate e
Goblingate.
E, se este processo autofágico, se encontra sobejamente documentado nessa acta virtual que é a mailing list da Simetria (agora
FICÇÃO-CIENTÍFICA)
(10), estão ainda por esclarecer as causas mais profundas que lhe deram o suficiente momentum para que se tornasse um processo imparável e - aparentemente - irreversível.
E essas causas, independentemente dos protagonistas envolvidos, devem buscar-se na conjuntura estruturante – quer a nível de mercado, quer a nível de
fandom - em que se move a FC portuguesa. Esta, apesar dos picos fulgurantes a que, de quando em quando, se eleva, continua a ser um género literário pouco mais que clandestino.
Por falta, sobretudo, de um
fandom activo, capaz de constituir uma força de pressão sobre o mercado, quer a nível de produção nacional, quer a nível de importação, quer ainda a nível de força selectiva do núcleo de obras a perdurar enquanto referentes da evolução do género.
E é aqui que, até prova em contrário, se encontra a razão do monumental falhanço da primeira associação de
fans de nível nacional: o incipiente
fandom português que em torno dela se reuniu, surgiu de um processo evolutivo anómalo, atípico e, do ponto de vista histórico, patológico.
Com efeito, a Simetria surgiu, não de forma expontânea, mas por imposição exterior, como forma de criar um organismo passível de obter apoios do Estado e dos Municípios para prosseguir com a sua actividade ou, pelo menos, de prosseguir com a organização dos
Encontros Anuais de Cascais(11)(12).
Surgida assim como forma de garantir apoios financeiros, a Simetria tornou-se numa associação mais preocupada em garantir o afluxo desses apoios do que em produzir trabalho capaz de criar um mercado capaz de os tornar supérfluos. A máquina começou a trabalhar apenas para alimentar a máquina e, nesse processo, alheou os próprios fans.
Ademais, parecendo ignorar o carácter essencialmente entusiasta e “fechado” do
fandom, procurou namorar a Academia antes ainda de ter um
corpus de trabalho capaz de suportar as suas pretensões.
O resultado, foi a atracção para a Associação de elementos alheios ao
fandom, desconhecedores da produção (escrita ou cinematográfica) da literatura de género e, consequentemente, pouco interessados no seu desenvolvimento.
Assim, inicialmente agregada em torno de um grupo de
fans - no sentido puro do termo – conhecedores do género, entusiastas, e quase todos eles igualmente autores, a Simetria tinha naqueles os seus alicerces de sustentação; assim que estes se afastaram, todo o edifício colapsou, mergulhando desde então numa inércia contra-pruducente.
Inércia esta que apenas de compreende se atentarmos na sua causa mais profunda: o
fandom, em Portugal é quase nulo.
4. ... AO MENOS LEITORES?Isaac Asimov chegou a escrever que apenas no período em que a FC se encontrava totalmente concentrada nas
pulps foi possível o desenvolvimento do
fandom(13). Nesse período, como não voltaria a ocorrer desde então, era possível aos leitores conhecer
toda a ficção científica publicada. E foi este conhecimento – esta possibilidade de conhecimento - aliado ao espaço de cartas dos leitores que enchia várias páginas das revistas, que permitiu o surgimento do
fandom(14).
De certa forma, este ímpeto era impresso ao fandom pelas próprias casas editoriais, interessadas em consolidar um mercado para o novo género literário. Tal não era, por si só, suficiente, como o atesta o desaparecimento de todas as demais
pulps que não sobreviveram ao advento da banda-desenhada e da televisão; era necessário que os próprios
fans tivessem características particulares, capazes de os tornar uma elite.
Tais características, aliás confirmadas por vários estudos realizados desde então (com o valor que lhes queiramos atribuir), demarcam o leitor de FC como sendo jovem, de cultura elevada, inteligência superior à média, e uma insaciável necessidade de conhecimento.
Recentemente discutia-se na lista
FICÇÃO-CIENTÍFICA, quantos leitores de FC existiriam em Portugal. Jogava-se com os dados (supostamente) conhecidos das tiragens das publicações nacionais e do número de vendas médio, para além de inferidos hábitos de leitura, chegando um dos intervenientes a avançar o número surpreendente de que um
fan português, leria em média 2,5 livros de Ficção Científica por ano.
Se é certo que estes números foram avançados sem a sustentação de um estudo credível, não é menos certa a sua potencialidade explicativa do flagrante insucesso da Simetria e da concreta situação do
fandom em Portugal. Porque estes números deixam adivinhar a inexistência de uma massa crítica de leitores que permita a consolidação quer de uma Associação de
Fans de âmbito nacional, quer ainda de uma Ficção Científica Portuguesa ou da Ficção Científica em Portugal.
Simplesmente, em Portugal, não existem leitores de Ficção Científica!
(15)Mas, para avançar esta hipótese explicativa, será antes de mais necessário identificar em que consiste essa figura do leitor de FC. E, sobretudo, porque motivo não podemos considerar alguém que lê uma média de 2-3 livros anuais como tal.
Ora, uma excelente definição do leitor de FC é-nos adiantada por Isaac Asimov, no editorial do nº2 da revista
ASIMOV'S SCIENCE FICTION MAGAZINE, publicada no Verão de 1977
(16). Nele, o bom doutor define o leitor de FC como sendo "
someone for whom science fiction is a more or less steady diet, who subscribes to magazines, who combs the book and magazine racks, to whom the various authors are household names".
Esta definição, pese embora não contemple os casos especiais do
media-fandom, é ainda perfeitamente válida para os propósitos deste breve ensaio, já que a principal manifestação da FC continua a ser a literária.
Assim, do leitor de FC, exige-se, antes de mais, que possua um conhecimento do género muito mais profundo do que aquele que deve ser exigido de um leitor do
mainstream.
Isto porque, como já se referiu supra, o
fandom(17), mais do que um simples agrupamento de leitores, é uma autêntica sub-cultura, activa, comunicante, manifestando-se através de correspondência, fanzines,
mailing lists e associações amadoras de imprensa (
amateur press associations - apas)
(18).
Ora, os fans portugueses não conhecem a ficção científica. Como tal, passou-lhes completamente desapercebido o
cyberpunk dos anos 80 (ao qual apenas foram introduzidos pelas suas manifestações fílmicas, (
Jonny Mnemonic (1995),
Strange Days(1996) e
Matrix (1999), já na segunda metade da década de 90), o
Steampunk, o
Ribofunk, todo o renascimento da FC britânica e até aquilo que poderíamos chamar como
nanotech-lit ou
nanoclit.
E esse facto marca de forma indelével a FC portuguesa (ou escrita em português), já que esta é precisamente um espelho – ainda que involuntário – do
fandom (ou, mais propriamente, do público leitor). É assim, com excepção de João Barreiros e Luís Filipe Silva, que encontramos uma ficção científica portuguesa dominada por obras datadas, escritas em resposta à FC americana de há quatro ou cinco décadas atrás, aquela que (moldada pelo
fandom, e moldando o
fandom, num processo de retro-alimentação recíproco) ainda hoje preenche as principais colecções publicadas em Portugal.
O mesmo é dizer, o leitor português, é um leitor errante, que toca a FC apenas de forma tangencial, em busca de receituários ou entretenimento. É um leitor escapista, que ignora as características próprias e distintivas do género,
rectius, que nem sequer as reconhece.
Nestas circunstâncias, não deve surpreender que a Direcção da Simetria não tenha sabido compreender a mecânica própria em que assenta a credibilização em Portugal - um país culturalmente atrasado, tecnologicamente debilitado, antagónico ao conhecimento científico - de um género literário que é essencialmente alienígena à nossa cultura popular e académica.
Assim, alheada do diminuto
fandom existente em Portugal - aquele que emergiu dos tubos de ensaio da
OMNIA e da Caminho - e retendo junto a si apenas um par de autores (Daniel Tércio, António de Macedo e Luís Miguel Sequeira), curiosamente antagónicos ao espírito de
fandom (19), a Simetria transformou-se num estranho objecto à deriva, incerto nos seus objectivos, incapaz de atrair quer o
fandom quer os
Trekkies a quem fez a corte em 2000
(20).
Sem publicações, sem concursos, sem iniciativa, a Simetria procurou reunir o
fandom para discutir, mais do que o Estado da FC em Portugal, o Estado da Associação na FC. Os anunciados
ESTADOS GERAIS DA FC&F redundaram num constrangedor
non-event, assim marcando, tristemente, o desaparecimento da Simetria do mapa
stefnal português
(21).
5. QUE FUTURO?Na ausência de um
fandom activo, e sem uma base ampla de leitores capaz de lhe dar origem, que futuro resta à FC em Portugal? Ou não passa esse futuro de um lento agonizar?
O
fandom português, curiosamente, uma vez falhado o projecto simétrico encontrou um caldo de cultura extremamente rico em nutrientes na Internet. Centrando-se na lista
FICÇÃO-CIENTÍFICA, os poucos
fans sistematicamente activos vêm desenvolvendo uma actividade proporcionalmente significativa quando comparada com o seu número reduzido.
Com um número de inscrições superior a 100, abriga uma dezena de
fans que mantêm uma actividade constante e visível e que, não obstante o seu parco número, consegue obter alguma repercussão fora das fronteiras do próprio
fandom.
No futuro, não parece arriscado prognosticar, será do núcleo de
fans em actividade nesta lista que virá a surgir a próxima geração da FC portuguesa e, quem sabe, a primeira escola literária da Ficção Científica em Portugal.
Agregando-se em torno daqueles que originalmente desbravaram o caminho para a FC e Portugal - João Barreiros e Luís Filipe Silva à cabeça - surgiu uma nova geração (nova que não em idade) de
fans entusiastas, Jorge Candeias, Luis Rodrigues, João Seixas e António Martins-Tuválkin, entre outros que, de uma forma ou outra, tem estado ligada aos mais relevantes eventos relacionados com a FC em Portugal.
Este pequeno grupo está na origem de alguns dos mais arrojados projectos, desde a primeira Enciclopédia
On-Line da FC&F
(22), um
E-Zine (
E-NIGMA, que já mereceu críticas elogiosas no jornal
PÚBLICO), o site luso-americano
FANTASTIC METROPOLIS (presentemente sob direcção de Moorcock, VanderMeer e Zivkovic), a colecção de FC da Editora Portal Devir e o esperada primeira revista profissional de FC em Portugal (a ser publicada, brevemente, pela mesma Editora).
Se é certo que Hugo Gernsback foi o pai da moderna FC ao criar a primeira revista do género, não é menos importante o facto de ter sabido criar, em torno dela, um grupo de fieis entusiastas que viriam a consolidar o género tal como hoje o conhecemos.
Se um papel semelhante puder vir a ser desenvolvido pelo
fandom agrupado em torno da
mailing list de
FICÇÃO CIENTÍFICA então, quem sabe, talvez ainda haja um futuro...
AGRADECIMENTOS:A João Barreiros pela preciosa ajuda prestada no preenchimento das abundantes lacunas nos meus parcos conhecimentos. A sua ajuda foi preciosa, mas os erros - inevitáveis - são de minha exclusiva autoria.
A Jorge Candeias por, amavelmente, me ter facultado uma cópia do seu artigo que surge nesta mesma edição, e que constituiu um interessante ponto de referência e comparação na elaboração do presente ensaio.
Notas: (1) Algis Budrys, “Paradise charted”, in Triquarterly 49 “Science Fiction”, Northwestern University, Evanston, Illinois, Fall 1980, pags, 5-75
(2) É importante referir, a bem do rigor histórico, que Gernsback, para além de possuir a paternidade da moderna ficção científica, foi também o criador do fandom, ao fundar a Science Fiction League, em 1927.
(3) Damon Knight, THE FUTURIANS, 1977
(4) José Manuel Morais, “O Estado da Arte”, in Já, Ano 1, nº 27 (1996)
(5) Idem
(6) Para além destes requisitos, Morais exigia ainda - e com razão - a existência de um “corpus de temas e preocupações comuns que definissem a ficção científica assim produzida como ‘portuguesa'".
(7) Terrarium – Um Romance em Mosaico, de João Barreiros e Luís Filipe Silva, Caminho, Lisboa, 1996.
(8) Podemos aqui considerar de igual importância os Encontros de 1997 – Efeitos Secundários – já que estes ainda foram organizados na curva ascendente da sinóide da FC portuguesa. Para um relato bastante detalhado dos primeiros três Encontros de Cascais vide Gerson Lodi-Ribeiro, “Primeiros Encontros de Ficção Científica em Cascais”, “Efeitos Secundários: Segundos Encontros da FC&F Portuguesa” e “Fronteiras: Terceiros Encontros da FC&F Portuguesa”.
(9) Ainda assim não deixa de ser sintomático que João Barreiros tivesse que assinar dois dos textos portugueses ("A Verdadeira Invasão dos Marcianos" e "Os Mininos da Noite", este último como José de Barros), de forma a equilibrar a participação das duas margens do Atlântico.
(10) Em
www.groups.yahoo.com/group/Ficção-Científica(11) Esta informação foi prestada por António de Macedo, na sua participação no Painel de Editores, realizado em 06 de Outubro de 2001, no âmbito dos ESTADOS GERAIS DA FC&F, organizados pela Simetria.
(12) As primeiras associações de fans foram criadas por editoras profissionais, com o intuito de criar e consolidar um mercado exclusivo para o género então recém-nascido em termos comerciais.
(13) Isaac Asimov, ASIMOV ON SCIENCE FICTION, Doubleday, New York, 1981.
(14) Curiosamente, essa é a situação do trek-fandom (os trekkers ou trekkies) ainda hoje. Limitando-se ao Universo Roddenberiano (ou outro análogo – o fandom da Galáctica, dos X-Files, ou dos seus spin-offs mais recentes), ou seja, a um episódio semanal de 45 minutos, uma dúzia de novelizações ou tie-ins por ano, e um imparável fluxo de re-runs, têm todas as possibilidades de conhecer não só tudo o que se produz nesse universo, mas de o conhecer com uma profundidade que dificilmente se encontrará nos próprios fans de FC. Consequentemente, são os trekkies e afins quem mais actividade fannish desenvolve em Portugal (ou pelo menos os mais organizados) estendendo os seus pseudópodes pelas mailing lists SCIFIEMPORTUGAL, GALÁCTICA e inclusivamente editando um fanzine (WARP FANZINE). Paradoxalmente, a mesma característica que permitiu o desenvolvimento do fandom stefnal, é que atrofia o próprio fandom trekkie, condenando-o a uma actividade fannish absolutamente inócua. Com efeito, o objecto do seu fandom é o diverso material promocional da série televisiva – mercadoria – sujeito de tal forma a regras restritivas da creatividade emanadas dos detentores do copyright da franchise, que os próprios fans não podem aspirar a escrever nada mais do que meras fanfiction.
(15) Que isto é verdade, ficou patente nos ESTADOS GERAIS DA FICÇÃO CIENTÍFICA E DO FANTÁSTICO, realizados pela Simetria de 1 a 7 de Outubro, em Cascais, onde três painéis de conferencistas (um quarto, agendado, não se realizou porque ninguém compareceu) falaram para uma parca dezena de pessoas sobre o Estado (calamitoso) da FC em Portugal.
(16) Isaac Asimov, “Try to Write”, in Asimov’s Science Fiction Magazine # 2, Summer 1977. Republicado em Asimov on Science Fiction, 1981.
(17) Neste sentido, podemos falar, com Algis Budrys de fans (a person active in a large subculture loosely based on science fiction and fantasy reading), trufans (a secure member of fandom) e sercon fans (serious, constructive fans). Jorge Candeias, curiosamente, cunhou o termo "especialistas" para o tipo de fan que busca conhecer tudo o que existe no âmbito da literatura de género, constituindo as "enciclopédias vivas da FC".
(18) O advento da Internet, veio potenciar exponencialmente a actividade fannish. Aquilo que antes ocupava os letterhacks durante horas todas as noites é facilmente executável num quinto desse tempo através do e-mail. De igual forma, as mailing-lists, com o seu serviço central de distribuição dos vários posts é uma manifestação moderna daquilo que é uma apa, embora ainda não tenha sido utilizada exclusivamente para a finalidade original daquela.
(19) Tércio já manifestou por várias vezes a sua "aversão" a participar em grupos de discussão na Internet, e as participações de Macedo e Sequeira são negligenciáveis, assim como a sua produção em termos de publicações dirigidas exclusivamente aos fans.
(20) Curiosamente, os Trekkies foram o centro dos V Encontros de FC&F de Cascais que, sintomaticamente, foram os últimos, tornando nítido o cansaço que já há anos imobilizava a Associação. Aparentemente, a corte descarada ao trek-fandom (que chegou a ser anunciada como a salvação da Simetria e dos Encontros) logrou o afastamento definitivo de grande parte do fandom que ainda se mantinha com a Simetria. Infelizmente, os próprios Trekkies não estiveram à altura das expectativas, tendo desertado imediatamente o projecto associativo, o que legitima a posição da facção que se questiona sobre o papel que uma Associação de âmbito nacional pode desempenhar em prol da FC em Portugal.
(21) Sintoma disso foi o silêncio que se gerou na Simetria após estes esses encontros. Com um resultado que exigia uma reacção, não houve um único post na mailing list da Simetria a dar conhecimento aos associados, nem dos temas tratados, nem das conclusões alcançadas. Pelo contrário, o único debate entre organizadores e críticos teve lugar na lista FICÇÃO-CIENTÍFICA, que cada vez se assume mais como o centro nevrálgico do fandom português. E é de certa forma sintomático que a lista da Simetria apenas pareça ter um membro activo que, incansável, lá divulga o que passa na TV, num epitáfio tão efémero quanto a própria programação.
(22) http://come.to/fc-e-f
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