domingo, 19 de julho de 2009

Uma Estranha Forma de Vida: o Fandom (1)



O Fandom nacional no lançamento da antologia com a CABEÇA NA LUA (2009)
O breve ensaio que a seguir reproduzo foi escrito em 2001 para um número especial do magazine brasileiro MEGALON dedicado à Ficção Científica em Portugal. Nessa data, tanto quanto me recordo, fui convidado juntamente com o Jorge Candeias a escrever algo sobre o estado da FC entre nós, daí as referências feitas ao trabalho do Candeias que, mais tarde, serviria de base ao ensaio que escreveu também para o dossier Ficção Científica que eu, ele e o João Barreiros organizamos para a revista LER, sob orientação deste último. Se agora o reproduzo aqui - a par do facto de ele nunca ter sido directamente disponibilizado ao público português - prende-se com o debate que está a ser travado no CORREIO DO FANTÁSTICO.

O ensaio já não representa totalmente a minha opinião sobre a matéria, e contém algumas passagens que já não reconheço como reflectindo a realidade (por exemplo, o António de Macedo, tem sido um dos mais incansáveis divulgadores do género e das pessoas que mais apoiam os novos valores), mas no essencial, ainda lhe encontro vários elementos com capacidade explicativa e interpretativa da situação actual do fandom nacional. Como sempre, apresento o texto sem quaisquer modificações, daí que utilize fan em vez de fã, sftional, em vez de científico-ficcional, e outros anglicismos.

Devido à extensão do ensaio, que pode dificultar a sua leitura on-line, optei por dividi-lo em duas partes (as notas acompanham a segunda parte).

Posto isto, cá vai:


Os Futurians em 1938
UMA ESTRANHA FORMA DE VIDA

Breves Notas Para a Historiografia do Fandom em Portugal (1965-2001)



1. QUESTÕES INICIAIS


O presente ensaio não pretende ser uma História da recente Ficção Científica Portuguesa. No entanto, procura aventar uma explicação para o estado do género literário Ficção Científica em Portugal, e as causas prováveis desse estado e, para isso, terei forçosamente que me referir a alguns aspectos da história da FC em Portugal..

Isto porque não é possível falar do fandom, sem falar de Ficção Científica. Um e outro estão de tal forma indissociáveis e interligados que o primeiro é, acima de tudo, uma manifestação do segundo.

Ou será o contrário?

Se abrirmos o extenso ensaio “Paradise charted” de Algis Budrys (1) deparamo-nos de imediato com um curioso mapa desenhado à mão e intitulado ‘the shape of things it came from’. Confrontado com o emaranhado de setas rabiscadas que interligam os vários actores da História da FC, é impossível não nos apercebermos de um que sobressai imediatamente do centro da página, parecendo concentrar em si o emaranhado de sarrabiscos: THE FUTURIANS, o mítico grupo de fans (The Futurian Society of New York) que trouxe para a FC nomes como Frederik Pohl, Damon Knight, Donald Wollheim, Judith Merril, Cyrill Kornbluth e por onde passaram nomes como Asimov, Lowndes e James Blish.

Embora a centralidade dos Futurians possa ser discutida por outros pesos pesados como Gernsback (2) ou Campbell, ela é demonstrativa da importância determinante do Fandom para o amadurecimento do género.

Com efeito, os Futurians, nos finais de 1942, tinham nas suas mãos (enquanto editores, ou enquanto autores) a totalidade das revistas de Ficção Científica publicadas no Estados Unidos, o que, à época, equivalia a dizer no mundo(3).

E se, no espaço de um ano, perderam esse domínio, a verdade é que dos Futurians nasceram os autores, editores, críticos e ensaístas que iriam dominar a Ficção Científica entre 1945 e 1965, estendendo a sua importância até aos dias de hoje. Se muitos dos autores que surgiram das pulps estão hoje esquecidos, os títulos dos Futurians, de Asimov, Pohl, Kornbluth, Merril, ou Blish ainda hoje são objecto de reedição atrás de reedição.

Bastaria o exemplo – historicamente irrepetível – deste grupo de fans para demonstrar a inultrapassável importância do fandom para a Ficção Científica. Sem ele inexiste um elemento de agregação dos vários actores da subcultura sftional, sem o qual, como sabemos, o centro não se consegue aguentar.

Daí que a principal questão a que se impõe responder é: pode a situação do fandom em Portugal, explicar a situação da Ficção Científica Portuguesa?

A inexistência de tal figura - uma ficção científica portuguesa - é um dado indesmentível no presente contexto literário português. Existe, de forma incipiente, uma “ficção científica escrita por portugueses, em português(4), que dificilmente conseguirá dar origem à massa crítica de trabalhos necessária para consolidar uma Ficção Científica Portuguesa enquanto tal, ainda que tão só abarcando os temas da modernidade através de uma perspectiva caracteristicamente nacional.

Isto porque, como escrevia José Manuel Morais(5), para que fosse possível a criação, desenvolvimento e consolidação de uma FC lusa, seria necessário que existisse “um número razoável (...) de autores que publicassem regularmente as suas obras, uma constelação de outros autores menos prolíficos mas que igualmente publicassem” ainda que esporadicamente, “uma ou mais revistas especializadas, (...) editoras com colecções onde os autores portugueses fossem bem acolhidos” e “um número elevado de leitores que, organizados ou não, viabilizassem, consumindo, tudo o que antecede(6)

Sintomaticamente, o texto de J.M. Morais que venho citando, foi publicado em 1996, inserido num caderno temático do jornal , editado a propósito da organização dos Primeiros Encontros de Ficção Científica e Fantástico – Na Periferia do Império; ou seja, no auge - esperemos que não o apogeu – da FC portuguesa.

Esses Encontros, que reuniram em massa o Fandom português, que trouxeram a Portugal pela primeira vez autores da craveira de Brian Aldiss, Joan D. Vinge, Joe Haldeman, Charles N. Brown ou David Pringle, e nos quais foi apresentada ao público a obra máxima da FC lusa – TERRARIUM, Um Romance em Mosaicos (7) – constituíram - e constituem até hoje - um marco irrepetível na evolução do género.

E se há vários factores de entre aqueles indicados por Morais que podem só por si – ou pela sua inexistência – explicar de forma satisfatória o porquê da estagnação em que a Ficção Científica em Portugal se encontra mergulhada desde 1996 e da qual só agora lentamente se começa a recuperar, parece-me claro que o fandom sobressai de entre eles como dotado de uma força explicativa plena.

2. UMA BREVE PERSPECTIVA HISTÓRICA

O comportamento do Fandom em Portugal é errático, desafiando a própria definição daquilo que se soe entender como tal. Fenómeno originário da ficção científica, o fandom caracteriza-se acima de tudo pelo seu caracter de actividade (mais do que de passividade) em relação ao género. Usando a Ficção Científica como núcleo referencial, constitui uma verdadeira sub-cultura, com linguagem, usos e costumes próprios e com uma produção literária de volume (se não de qualidade) muito superior ao do próprio mercado.

Em Portugal, pelo contrário, os fans movem-se como traças, irresistivelmente atraídas para uma lâmpada, apenas para se afastarem subitamente quando a chama das resistências eléctricas lhes queima a ponta das asas. E mantêm-se à distância, desconfiados, ensaiando aproximações amedrontadas.

Este comportamento atípico (como veremos infra revelador de um antagonismo do fandom ao próprio género) só muito raramente dá azo a que surjam eventos de uma magnitude capaz de sinalizar a vitalidade do género.

Em Portugal apenas existiram dois desses eventos de aproximação maciça das pequenas traças à lâmpada incandescente: o Ciclo de Cinema de Ficção Científica organizado em 1984 pela Cinemateca Portuguesa e os Encontros de Cascais de 1996(8).

Ambos são fulcrais no desenvolvimento posterior da FC, funcionando como súbitos saltos na maturação do género que, uma vez dissipadas as suas ondas de choque, volta a mergulhar num êxtase suporífico, apático, de uma letargia constrangedora.

E são de tal forma fulcrais, que não é ilegítimo falar-se de um antes-e-depois de 1984 e de um antes-e-depois de 1996.

Antes de 1984 existiu o CLUBE DE LEITORES DE FC (CLFC), a primeira tentativa falhada de organizar o fandom em Portugal. Presidido por Isabel Meyrelles, fan activa nos anos 60, que subitamente desapareceu da cena sftional, deixando atrás de si a promessa nunca concretizada de um fanzine e uma antologia de contos da moderna Ficção Cientifica francesa, surgiu tarde demais num mercado ainda inexistente. Ia a meio a década de 60.

De certa forma, a experiência do CLFC marcou uma passagem de testemunho de uma velha guarda, que incluía nas suas hostes Natália Correia e Romeu de Melo entre os mais representativos, e que deixou atrás de si uma obra dispersa, de pouco relevo, e algumas tímidas antologias, para um grupo de jovens autores, alimentados pelo bolo anglo-saxónico, que dominariam a cena entre 1984 e 1996.

Em meados da década de 80, quase que simultaneamente, surge a colecção Mamute da Editorial Caminho, que publicava pela primeira vez João Aniceto e Daniel Tércio, lançando as raízes da futura colecção de FC da Caminho com as suas inconfundíveis lombadas azuis e o Prémio Caminho de FC; e era organizado o Ciclo de Cinema de Ficção Científica (1984) que dava a conhecer ao público o autor, fan e crítico implacável João Barreiros.

Às salas da Cinemateca acorreram centenas de fans que encheram cada lugar para assistir a cerca de duas centenas de filmes e que rapidamente esgotaram o volume editado em paralelo com o evento, dirigido por João Barreiros e João Benard da Costa, tornando-o numa preciosidade entre os coleccionadores.

Deste evento nasceria para a FC a segunda tentativa de organizar o fandom que se consolidaria em 1990 em torno da revista OMNIA (1988-1991), a qual viria a publicar trabalhos de José Manuel Morais (depois editor do suplemento Ficções da revista), João Barreiros, João Paulo Cotrim, Álvaro de Sousa Holstein (este editor do incipiente fanzine NEBULOSA, publicado artesanalmente no Porto e com uma tiragem diminuta) e Daniel Tércio. Também Luís Filipe Silva, que em 1991 viria a obter o primeiro lugar no Prémio Caminho de Ficção Científica, orbitava este núcleo criativo da ficção científica.

Não é de surpreender, portanto, que os elementos da OMNIA se começassem a relacionar com os autores da Caminho que, nessa altura, entregara já 3 prémios de Ficção Científica e publicava autores portugueses com uma regularidade que não conseguiu manter na segunda metade da década de 90.

O núcleo de actividade que se começava a agregar em torno de uma paixão comum pela Ficção Científica e que se desmultiplicava em jantares e tertúlias atraiu autores dispersos que até então se mantinham à margem do fenómeno fannish, como foi o caso de João de Mancelos, tudo culminando na publicação da antologia O Atlântico tem duas margens (1993), que reuniu trabalhos dos principais autores portugueses e brasileiros (9).

A dinâmica gerada impulsionou a realização dos Encontros de Ficção Científica e Fantástico, um evento que há muito se mostrava necessário, emulando o modelo das Convenções de FC que todos os anos se realizam em todo o mundo.

Era uma oportunidade para tirar o pulso ao fandom, para medir os níveis de glucose das editoras, para auscultar o que os autores tinham para dizer.

Mais uma vez os resultados foram surpreendentes; os fans acudiram em massa, os Encontros foram noticiados em jornais, rádios e televisões.

Apesar do desaparecimento prematuro da OMNIA, a FC em Portugal parecia gozar de uma vitalidade invejável. Pela primeira vez pensava-se em organizar uma Convenção Anual em Cascais, que possibilitasse reunir a totalidade do fandom, permitindo o diálogo entre autores, leitores, críticos, ensaístas, editores e que, simultaneamente, publicasse uma antologia que servisse como mostruário daquilo que de melhor se fazia no género.

Pensou-se, pela primeira vez, assistir a uma Idade de Ouro da FC Portuguesa.

Criou-se, pela primeira vez em Portugal, com quase 70 anos de atraso, uma Associação de Fans.

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