domingo, 8 de julho de 2007

A LENTE DISTORCIDA: O F(É)NTÁSTICO

Escrevi abaixo que nenhum dos géneros do fantástico (Ficção Científica, Horror e Fantasia) poderia ter surgido sem o abandono da fé religiosa, o que provocou um comentário discordante (e bem-vindo) da Safaa Dib. Para quem não a conhece (e se não a conhece, o que anda a fazer no mundo?) a Safaa é uma das organizadoras do Fórum Fantástico (o outro é o Rogério Ribeiro) e a autora do interessantíssimo Stranger in a Strange Land (que bem poderia ser o nome deste blog se ela o não tivesse tomado primeiro). O que serve para dizer que a opinião da Safaa tem peso acrescido.

E considera ela haver um certo simplismo na relação dos factores fé e fantástico, pelo menos consoante defini os seus géneros no post em questão. É evidente que qualquer tentada definição dos géneros é em si mesma, uma contenção, e por isso sujeita às mais variadas discordâncias, por via do maior ou menor número de “textos” que caibam ou sejam excluídos do seu âmbito.

Porém, se excluirmos a ficção científica, podemos encontrar elementos do fantástico (Fantasia e Horror) nas mais variadas fontes, desde os primeiros relatos orais aos primeiros documentos escritos; de facto, tropos do fantástico como o morto-vivo, demónios, anjos, vampiros, djinns, magia, seres metamórficos, dragões e bruxas (para escolher alguns dos exemplos mais frequentes de um leque incomparavelmente maior) fazem a sua aparição em muitos dos textos sagrados ou epopeicos (o livro dos mortos egípcio, a bíblia, a epopeia de Gilgamesh, a Ilíada e a Odisseia, etc...), o que nos impõe isolar um elemento de distinção entre os géneros que surgiram após ou com o Iluminismo e esses textos anteriores.

Mormente, é necessário descortinar qual o elemento que separa o fantástico moderno do maravilhoso medieval: e esse elemento apenas pode ser encontrado no que de comum têm esses géneros, pelo menos conforme nós os entendemos (neste sentido, é de particular acuidade a tese propugnada por Paul Veyne no seu Acreditaram os gregos nos seus mitos?, publicado entre nós pelas Edições 70, Lisboa, 1987).

E o que de comum encontramos é, desde logo, a certeza de que as suas narrativas se encontram imbuídas de uma fundamental irrealidade daquilo que nos é mostrado: o mesmo é dizer, à luz da nossa experiência, conhecimentos históricos e factos cientificamente demonstrados, quer o ambiente em que a narrativa se desenrola, quer as implicações da própria narrativa, seriam prática ou conceptualmente impossíveis nas circunstâncias de tempo ou lugar em que a narrativa é escrita. E, sobretudo, tal irrealidade é conhecida dos destinatários da narrativa.

Referindo-se a essa fundamental irrealidade (e uso aqui o fundamental, para separar o fantástico da normal irrealidade de qualquer texto de ficção), Isaac Asimov escreveu:

Fantasy should mean not only something that is not so and therefore exists only as an idea, but also something that could not possibly be so and therefore can exist in no other way than as an idea” (in Magic, Voyager, Harper Collins, 1997) . “In fact we can be stricter still and insist that fantasy must deal not only with matters that we conceive as not capable of existence in our universe, but which we insist are incapable of existence even in a universe modified by reasonable scientific advance.” (idem)

Neste ultimo caso, ou seja, quando o mundo representado na narrativa, ou as suas implicações, se tornem concebíveis num universo alterado por avanços razoáveis do conhecimento científico, estaríamos no âmbito da ficção científica.

Lendo o que escrevi no post inicial, descrevi a Fantasia como pressupondo “uma substituição do real por uma lógica distinta e impossível, da qual não se exige mais do que a coerência interna dos seus próprios postulados”.

A definição de Fantasia, que nos é apresentada na Encyclopedia of Fantasy (organizada por Clute e Grant) ecoa de muito perto o postulado asimoviano: “Fantasy is a self coherent narrative. When set in this world, it tells a story which is impossible in the world as we perceive it, when set in an otherworld, that otherworld will be impossible, though stories set there may be possible in its terms”.

Em todas as três definições (da qual, como fez Asimov, podemos derivar a de ficção científica), a de Clute, Asimov e a minha (mais modesta) própria, destaca-se como imprescindível o conceito de possível e impossível; conceito esse que só pode ser aferido pelos instrumentos do pensamento científico.

Recordemos agora, por contraposição, o que Leão XIII fez verter na encíclica Encíclica Providentissimus Deus, de 1893: “Não pode nunca existir desacordo real entre o teólogo e o físico, enquanto cada um permanecer na sua própria esfera, e desde que um e outro, como adverte S. Agostinho, tenha o cuidado «de não fazer afirmações temerárias nem afirmar que uma coisa é conhecida, quando de facto não o é»”.

E o que Santo Agostinho tem a dizer quando confrontado com tal desacordo é por demais eloquente:

Devemos provar que tudo o que se pode verdadeiramente demonstrar como verdadeiro na natureza física não está em oposição com as nossas santas Escrituras, e que tudo o que, nas suas obras, dizem ser contrário às Escrituras – ou seja à fé católica – devemos nós, ou provar, tão perfeitamente quanto possível, que é rotundamente falso ou pelo menos crer que o é.

E acrescenta o papa: “Que os sábios se convençam lealmente que Deus, Criador e Governador de todas as coisas é também o Autor das Escrituras e que, por conseguinte, nada se pode provar, nem por meio das ciências físicas, nem pela arqueologia, que seja realmente contrário às Escrituras”. (Encíclica Providentissimus Deus).

Como nos recorda E. C. Messenger (de onde venho retirando estes ensinamentos), “vinte e três anos antes, em 1870, o concílio do Vaticano tinha solenemente proclamado a impossibilidade de desacordo entre a fé e a razão humana. Pode, é certo, haver a aparência de uma contradição, mas isso só pode provir do facto de a fé não ter sido bem compreendida e bem interpretada, segundo o espírito da Igreja, ou de se terem tomado por certezas o que não eram senão opiniões humanas” (o sublinhado é meu).

(citado de “A Origem do Homem segundo o Livro do Génesis”, por E.C.Messenger, incluído na 3ª edição da tradução portuguesa do volume organizado por Jacques de Bivort de la Saudée, “ESSAY SUR DIEU, L’HOMME ET L’UNIVERS”, Lisboa, 1957, com Imprimatur de Emmanuel, Episcopus Prienensis, de 06 de Junho de 1953.)

Perante tal impossibilidade de desacordo, postulada por tão alta autoridade como é o papa (e desde já manifesto que não admito como argumento a facciosa separação entre religião e autoridade religiosa enquanto instituição – veja-se o caso do Islão, que não tem uma autoridade central como o papa católico), e atentando na irreconciliável representação que religião e ciência fazem do mundo, afigura-se-me como inegável que foi necessário o abandono da fé, como lente de estudo do real, para que pudesse surgir o fantástico, como criação do espírito humano, e se não mesmo como instrumento de substituição do sentimento do maravilhoso que a fé proporcionava. É sintomático que aquilo que vulgarmente designamos por first science fiction, se caracterizasse pelo sense of wonder, já não perante o divino, mas perante a natureza revelada pelos novos instrumentos científicos, e a tecnologia que estes permitiram desenvolver.

Tal abandono da fé, cujo paradigma poderíamos buscar nos destinos discordantes de Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, traduziu-se, in essentia, na compreensão de que deus – e, consequentemente, a religião – deixou de ser necessário, como na equação de Laplace, para que a sociedade definisse e adoptasse um comportamento ético ainda que não sancionado por um ente superior distinto do próprio Estado.

E só num tal ambiente social, onde a “verdade” deixa de estar sujeita ao selo divino, e a própria ética se revela como constructo social, é possível explorar mundos alternativos, como projectos de distintas sociedades, laboratórios comportamentais, ou como palco de puro e simples entretenimento.

Tudo o mais, é arriscar a fogueira…

5 comentários:

Diário de bordo disse...

Sem comentários...

Anónimo disse...

Com muitos comentários...
Não pretendo conseguir, com estes curtos comentários, apaziguar o ódio que nitidamente distilas em relação à religião. Gostaria, contudo, de poder levar-te a compreender que esse ódio conduz a uma arrogância que fica mal e que em nada beneficia os teus argumentos. Bem sei que não é vosso objectivo "converter" ninguém, que deixam essas coisas para os "fanáticos da religião", embora também não o compreenda. Se a religião é tão má assim, então devem-se esforçar verdadeiramente para livrar a humanidade dela, aliás, parece ser o que fazem com os livros do Hitchens do Harris e outros que tais. Contudo, ainda estou para conhecer algum religioso que tenha abandonado a sua crença por causa dos argumentos desses homens. Ainda ninguém lhes disse que a raiva e a fúria ácida raramente convencem alguém.
Ainda sobre o Hitchens, uma curta citação do Suplemento de Fim de Semana do Financial Times, entitulado: "Here's the hitch" «As for Stalin, Hitchens writes, look at "the permanent search for heretics and schismatics; the mummification of dead leaders as icons and relics". Remind you of anything? Hitchens says that Stalin understood his people's religious superstitions and mimicked them. So King wasn't really religious and Stalin was. If that sort of intellectual and moral shabbiness is to your taste, then this book should be too.»

Adiante. Quanto a este mais recente post. Fazes uma interessante argumentação, mas ela tem por pilar, entre outras, esta afirmação que me parece fundamentalmente falsa e inqualificada: "e atentando na irreconciliável representação que religião e ciência fazem do mundo".
Esta frase urge a pergunta: Qual religião? e qual ciência?
Isso inclui todos os cientistas religiosos? Já os avisaste que vivem num poço de contrariedade? Todos os biólogos, matemáticos, físicos, médicos (etc, etc,) que são fiéis (nos dois sentidos) de uma religião... todos devem cessar imediatamente as suas funções porque tu decidiste que a representação que a ciência e a religião fazem do mundo são irreconciliáveis.
Tudo bem.
Noto que os exemplos que dás de religião datam do século XIX, mas dúvido que fiques por lá no que diz respeito à ciência. Escolha tua. Ignoras totalmente a evolução que se deu no ambito da compreensão e leitura das escrituras.
Finalmente, um comentário sobre as tuas certezas de que, caso terminassem as isenções fiscais et al, a igreja católica acabaria. Sugiro que avises rapidamente os católicos na China, no Vietname e no Laos, pois duvido que estejam a par dessa certeza. Podes informar os 10,000,000 de chineses católicos que devem cessar a sua existência, talvez a tua argumentação seja mais eficaz que as prisões e as torturas que o governo lhes impõe.
Houvessem mais Seixas, Hitchens e Harrises na União Soviética e talvez o (ultra-religioso) Stalin tivesse efectivamente conseguido acabar com essa praga que é o Cristianismo.
Mas não. A ténia vive. Graças a Deus.
Um abraço,
Filipe

João Seixas disse...

Caro Filipe,

Ódio é uma palavra que, no contexto, padece de uma conotação demasiado extremista. Se consideras que o mundo não teria sido bastante melhor sem a religião, é uma proposição que carece de prova - prova essa que, convenhamos, como em todas as histórias alternativas, é difícil de produzir. O registo histórico, porém, não deixa margem a grandes dúvidas.

A questão que levantas, das citações que faço do Século XIX, deve ser igualmente entendida em contexto e duplamente: em primeiro lugar, procurei uma posição oficial da hierarquia católica que exemplificasse o contexto histórico/cultural em que se cozinhava a génese da Ficção Científica. Se, com carácter de uma visão literária mais ou menos coerentes a situarmos no surgimento das obras de Verne e Wells, a Encíclica de 1853 é a que mais se aproxima cronologicamente dessa génese; por outro lado, a "evolução que se deu no âmbito da compreensão e leitura das escrituras" é, na minha perspectiva, precisamente um dos elementos que traem o carácter de criação humana da religião. Que os ensinamentos da Igreja e o teor da expressão divina, se tenham de ir actualizando (por vezes com grande esforço) na correnteza que o avanço do conhecimento científico vai deixando atrás de si, é sintomático do que podemos considerar uma actualização do "marketing" religioso.

No que tange à irreconciliável representação que ciência e religião fazem do mundo, muito haveria a dizer, nomedamente quanto a essas hostes de cientistas que também são crentes (já vi polls que indicavam os 80%) e que, quando se enfrenta casuisticamente, se desvanece como uma miragem no horizonte do sahara.

Felizmente, essa irreconciliabilidade não nesce da minha pena, vem sendo um facto cada vez mais inegável a cada nova descoberta, deixando ao crente apenas o refúgio, intelectualmente vácuo, da causa incausada, mero motor da história, que deu o pontapé de saída e ficou a ver o jogo das linhas laterais.

Mais tarde voltarei a isto...

Terminando por onde comecei, o ódio que pareces ler nas minhas palavras, ecoa aquela idea que o Hitchens refere também no seu livro: ninguém tem nada contra a religião, desde que ela nos deixe em paz.

Abraços

Anónimo disse...

"ninguém tem nada contra a religião, desde que ela nos deixe em paz."
Please, João... será só isso? Mesmo?
Eu não tenho nada contra o Polo Aquático do Salgueiros, desde que me deixe em paz. Por isso não dedico a minha vida a escrever livros sobre o clube nem a tentar deitá-lo abaixo, nem o comparo a um parasita.
Tu tens claramente muita coisa contra a religião, é por isso mesmo que sentes que ela não te deixa em paz, vês provocações em toda a parte.

Só uma palavra sobre as escrituras, uma vez que este não é o local para um grande debate teológico. A forma como se vão relendo as escrituras não é nova. Antes mesmo do Cristianismo, já Fílon de Alexandria propunha uma grelha de leitura das escrituras por analogia.
Essa tendência continuou por lá e levou, já na era cristã, à criação da escola de Alexandria que lia e interpretava as escrituras dessa forma, por oposição à escola de Antioquia que defendia uma leitura mais literal.
Não penses que os cristãos (pelo menos não os das igrejas apostólicas) entendem a Bíblia como os muçulmanos entendem o Alcorão. Sabe-se muito bem que a Bíblia é trabalho de homens, em contextos históricos e culturais específicos. Não é por isso que deixa de ser revelação, e por ser uma revelação viva e sempre actual, pode ser lida de maneiras diferentes em cada geração. Sem que as verdades fundamentais sejam postas em causa.
Quanto à questão do mundo ser melhor sem a religião... as provas que tu vês, (ou pensas ver, já que eu vejo provas contrárias, ou penso ver) são absolutamente irrelevantes. Primeiro tens que mostrar que um mundo sem religião teria sido sequer possível. E aí, não tens muitas provas que te safem...

Enfim, tudo isto para dizer duas coisas, essencialmente:
1º Acho um erro dizeres (parece-me que era isso que querias dizer) que não é compatível ser crente e escrever fantasia ou FC. Confesso, porém, que não tenho uma gota do conhecimento enciclopédico que tu tens para demonstrar isto com exemplos. Se me disseres que nunca existiu um bom escritor de FC que tivesse convicções religiosas, então eu tenho que meter a viola no saco e calar-me... mas parece-me um bocado absurdo pensar que uma pessoa religiosa não possa ter elasticidade mental suficiente para acreditar numa coisa e escrever fantasia/FC. Até daria o exemplo do Tolkien e do C.S. Lewis, mas calculo que não gostes deles. Resta saber se não gostas, precisamente pelas mensagens religiosas que se lêem nos seus livros.
Adiante:

2) A palavra "ódio" é muito forte? Meu caro, tens que ter em atenção como os crentes vão ler estes teus posts. Quando te dedicas um post inteiro a atacar a religião e terminas comparando-a com uma ténia, é óbvio que a ideia que dá é que a religião de causa uma reacção que só se pode chamar ódio. Digo o mesmo do Hitchens, do Harris e dos outros todos.
Tens aqui um blog muito sério, sobre um assunto no qual és um perito (cada vez mais) reconhecido em Portugal. Escreves aqui o que bem te apetece, mas tens que pensar: queres ser conhecido como o João Seixas, perito em literatura FC/Fantasia; ou João Seixas o gajo que perde a cabeça e revolta-se cada vez que alguém se benze num raio de 5km?
Eu, que conheço o teu trabalho, acho que não mereces o segundo epíteto, e tenho pena que vás trabalhando nesse sentido.
Um grande abraço,
Filipe

Anónimo disse...

Errata: Onde escrevia Analogia, deve ler-se Alegoria.
Sorry.
Filipe