domingo, 8 de julho de 2007

OS PECADOS DOS PAIS




William Morrow, 2007
384 páginas
ISBN-10: 0061147931
ISBN-13: 978-0061147937


Jude Coyne, famosa estrela de heavy-metal e praticamente o único sobrevivente do grupo Jude’s Hammer, adquire um fantasma na Internet. O que podia ser apenas uma brincadeira ou excentricidade, acaba por revelar-se um assunto bastante mais sério, uma vez que Jude foi escolhido, propositadamente, como alvo e recipiente daquele fantasma: o espírito de Craddock McDermott, um velho hipnotista e veterano do Vietnam, que faleceu pouco depois do suicídio da enteada, a última namorada de Jude. E, à medida que as aparições do fantasma se vão tornando mais e mais agressivas, Jude compreende que o seu único objectivo é a vingança. Mas a verdade é como as moedas, tem mais do que uma face, e quando Jude, Georgia (a sua actual namorada) e os dois fiéis pastores alemães partem rumo à Florida para por cobro àquela ameaça, o que descobrem é ainda mais sinistro e surpreendente do que à partida podiam contar.

O confronto do leitor moderno com uma história de fantasmas, quase um século depois de M.R. James ter (praticamente) esgotado as variações do género, obriga-o a formular, uma e outra vez, a velha questão que Lafcadio Hearn levantou no seu Nightmare-Touch (in Shadowings, 1900):”para aqueles que acreditam em fantasmas, qual é a razão do medo inspirado por eles?” E a resposta aventada, a título especulativo, permite-nos tactear a real inquietação que escorre, quase física, das páginas desta primeira obra de fôlego de Joe Hill. “Qualquer medo que possa sentir-se, é sempre resultado da experiência – experiência do indivíduo ou da espécie – experiência da vida presente, ou de outras já esquecidas. O próprio medo do desconhecido não pode ter outra causa. E o medo de fantasmas, só pode ser resultado de uma dor já experimentada”.

O fantasma torna o passado táctil. Obriga ao reviver de uma dor pretérita. O fantasma é, afinal, a vingança da memória, o remorso corporizado. Quando conhecemos Jude Coyne, ele é o que esperaríamos que fosse uma velha estrela de Heavy Metal, semi-retirada, depois do suicídio de um elemento da sua banda (disfarçado sob a capa de um acidente de automóvel) e da morte dolorosa (às mãos de um cancro incurável) de um outro: ou seja, tudo menos assolada por remorsos. A sua cama é frequentada por uma série sucessiva e ininterrupta de roadies, groupies, ou jovens góticas, pelo menos trinta anos mais novas que os seus cinquenta e seis, e a vida suficientemente abastada para que as possa tratar com o desprezo que as gothic chicks buscam nas divindades do hard rock. Suficientemente abastada, mesmo, para se entregar a pequenas indulgências macabras, como seja coleccionar artigos do oculto e do extremo (desde a confissão de uma bruxa, assinada no século XVIII, até um filme snuff). Por isso, Jude não hesita quando lhe surge a possibilidade de adquirir na Internet um fantasma verdadeiro, que acompanha um fato que lhe é entregue numa caixa negra, em forma de coração.

Verdade seja dita, Jude Coyne é-nos apresentado como sendo uma criatura verdadeiramente desprezível, não muito distante daquela faceta de si próprio, que Jerry Lewis nos mostrou no sublime The King of Comedy (Scorcese, 1982). Aliás, observe-se (como Georgia o faz também), que “Jude Coyne”, é homófono de “Judas Coin”, das moedas com que Judas vendeu Cristo. Sintomaticamente, dizem-nos as fontes bíblicas, Judas acabou por se suicidar, ele próprio, por remorsos…

A chegada do fantasma, porém, com o seu fato negro e olhar de sarrabisco, como se oculto sob os traços furiosos de uma caneta (um aspecto curioso, incomum mesmo, mas que evoca uma estética mais japonesa, da tradição dos kwaidan, ou o hábito mediterrânico de cobrir os olhos dos cadáveres com moedas, para pagar a passagem a Caronte), vai forçar o leitor a alterar, progressiva e radicalmente, a forma como encara Jude Coyne; vai mostrar que por baixo da barba hirsuta do roqueiro, se encontra ainda (o fantasma?) de Justin Cowzynski, um rapaz pobre de uma família pobre do sul, vítima de maus-tratos familiares (da violência do pai e da cobardia da mãe), e que apenas queria tocar guitarra.

A narrativa, conforme sintetizada acima, admite níveis de leitura diversificados, traduzindo o imperecível potencial do horror para minar o inconsciente colectivo das sociedades modernas; mas, sobretudo, explora de forma apaixonada os processos de formação/desintegração da personalidade individual, elaborando um jogo de espelhos e miragens entre as várias personae (no sentido de máscara social), representadas pela sua identidade pública, auto-imposta (Jude Coyne, que acoberta sob a sua persona violenta, fria e indiferente, a personalidade mais afável de Justin, ou daquilo que Justin poderia ter sido, tivesse crescido num outro ambiente) ou imposta por outrem (Marybeth, que primeiro tem a persona de Morphine, a stripper, sob cuja máscara pretende ultrapassar – em excesso, assim redimindo – os pecados de ter sido uma prostituta aos treze anos; e depois a de Geórgia, que lhe é atribuída por Jude, que não quer saber do seu passado, até ambas serem quase submersas pela personalidade de Florida, a rapariga maníaco-depressiva cujo suicídio o fantasma do padrasto parece querer vingar). Mas o próprio fantasma, nas suas motivações, não passa de uma máscara.

Joe Hill escreve de uma forma surpreendente; para aqueles que sabem ser filho de Stephen King, que praticamente criou o horror contemporâneo, será difícil resistir a fazer comparações com as obras do pai; os carros fantasma de Christine e From a Buick 8 estão aqui presentes, tal como os cães sobrenaturais de Cujo; os dedos decepados e a porta riscada no solo de The Dark Tower, o recurso aos brand names que polvilham os diálogos e as descrições [quando Jude diz a Geórgia que comprou o fato assombrado numa mera imitação do eBay, (“a third-rate clone”) e lhe explica que por um qualquer motivo era necessário que ele comprasse o fato, concluindo ter a certeza de que existe ali uma qualquer mensagem moral mais profunda, a resposta da companheira é simplesmente “Yeah. Stick with eBay”], e os diferentes tipos de fonte impressa para representar diferentes tipos de discurso, são tudo elementos característicos da obra de King (como antes de John dosPassos, John Sladeck ou John Brunner). Mas, por via da sua popularidade, espalharam-se rapidamente pela paisagem literária, encontrando-se, de uma forma ou outra, na obra de qualquer autor. Onde Hill segue as passadas de King é na soberba habilidade narrativa, na sobreposição da arte do storytelling à da mera escrita novelesca (experimente-se ler o texto em voz alta, para depressa notar o ritmo e a cadência quase musical das frases). Tal como um bando de aves que nos prende o olhar para logo nos ludibriar com uma súbita e coordenada mudança de direcção, Hill agarra o volante da atenção do leitor e passa a conduzi-lo a seu bel-prazer, por cenários cada vez mais inesperadas.

O estilo de escrita consegue fazer o texto parecer mais sórdido do que realmente é (um feito, ele próprio, digno de nota); a imaginação visual e descritiva é (para recorrer a um cliché) verdadeiramente transbordante; e o ritmo é de montanha russa. A tal acresce a riqueza de caracterização das personagens, desde as principais, aos meros intervenientes secundários numa única cena (inesquecível o homem da laringe electrónica e a esposa gorda numa casa de fast-food) que permitem uma identificação imediata por parte do leitor, a par de uma honestidade de autor surpreendente, que permite que as personagens se mantenham fiéis até aos aspectos negativos da sua personalidade. E, não menos relevante, é um dos raros livros de horror que é verdadeiramente implacável na criação de um ambiente credível e capaz de transcender os limites das próprias páginas.

Numa paisagem literária quase obnubilada pela predominância do estilo sobre o conteúdo, é com agrado que se vê um autor (quase) estreante adoptar a difícil arte do estilo invisível, onde a palavra escrita se transforma imediatamente em imagens e sensações no cérebro do leitor. Também o narrador é uma máscara, um fantasma, reproduzindo a nível estilístico o próprio tema da novela (chegados ao final, sentimos como perfeitamente justificadas as informações que o narrador nos vai dando nos primeiros capítulos, obrigando-nos a testemunhar a reacção das personagens àquilo que nós já conhecemos).




Heart-Shaped Box devolve-nos, sobretudo, o raro prazer de contar e ouvir contar uma história de fantasmas junto à lareira.

3 comentários:

Diário de bordo disse...
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João Seixas disse...

Travassos, tinhas o comentário em duplicado. Por mero lapso, foram os dois eliminados, pelo que se requer a Vª Exª se digne voltar a colocá-lo, logo que para isso disponha de tempo na sua sobrelotada agenda... ;D

Blogger disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.