quinta-feira, 5 de julho de 2007

TRINTA FANTASMAS


Poucas passagens das páginas da FC serão tão assombrosas e evocativas quanto as palavras iniciais da novela que Arthur Clarke escreveu baseada no argumento homónimo que assinou com Stanley Kubrick para 2001: A Space Odyssey (1968):


Behind every man now alive stand thirty ghosts, for that is the ratio by which the dead outnumber the living. Since the dawn of time, roughly a hundred billion human beings have walked the planet earth”.

Cito directamente da edição da Arrow Books (Londres) de Outubro de 1968. Lembrei-me desta passagem a propósito de um texto que se lê no Público de hoje, emanado do ócio de Helena Matos.

E escreve a articulista: “O que importa é que nessa instituição milenarmente sábia que é a Igreja Católica (católicos ou não, todos temos de convir que instituição alguma existe tanto tempo sem uma forte sabedoria)…

Ressinto-me desde logo do imperativo categórico. Não, não temos que convir nada disso, como o mais discreto conhecimento da História permite apurar.

Aliás, e porque a obra é recente, recomenda-se a leitura atenta de GOD IS NOT GREAT (Twelve, New York, 2007) de Christopher Hitchens, um atlas sintético e tranquilo, sem histrionismo ou drama desnecessário, da irrecuperável estupidez do fenómeno religioso, transversal aos cinco continentes e a todos os períodos da história.

Hitchens, que em 1997 já demolira impiedosamente, a golpe de argumentos sérios e provas irrefutáveis, o mito daquela figura sinistra e hipócrita que dava pelo nome de Teresa de Calcutá (The Missionary Position – Mother Teresa in Theory and Practice) apresenta-nos agora um documento magnífico, redigido no inultrapassável estilo coloquial a que já nos habituou, onde, martelada a martelada, vai fazendo ruir os ídolos bafientos das três grandes religiões monoteístas, sem poupar episódios tremendamente elucidativos de outros cultos menores (incluindo como no Sri Lanka chegou, por um dia, a encarnar uma pseudo-divindade).

Bastaria recordar alguns dos episódios que nos são narrados (desde Bartolomeu de las Casas a escrever sobre o massacre dos ameríndeos, até às mais estúpidas e recentes afirmações do Vaticano quanto ao uso de preservativos e pesquisas em células estaminais) para descobrir como pôde uma instituição como a Igreja Católica existir durante tanto tempo: sabendo colar-se ao poder secular, quando não mesmo sobrepondo-se a ele.

Se desde A.D.313 gozou do beneplácito do Império, e governou senhora da Europa durante a Idade Média, servindo-se das mais sujas manobras da política secular, das mais sangrentas guerras e das mais sórdidas torturas, soube também sobreviver ao ímpeto imparável do Iluminismo e do pensamento científico, pondo-se cautelosamente do lado do poder, fosse ele assegurado por Napoleão, Hitler, Franco, Salazar ou Mussolini. E, não se podendo aliar abertamente a ele, soube calar para partilhar desse mesmo poder, quando nas mãos do Papa Doc, de Suharto ou do Ayatolah Khomeini (cuja fatwa sobre Salman Rushdie foi tolerada e compreendida pelo Vaticano).

Deixou atrás de si um rasto de sangue e obscurantismo, um exército de fantasmas espezinhados, queimados na fogueira ou deserdados pelo conhecimento científico e médico que sucessivos papados foram perseguindo, destruindo ou ocultando.

Hoje, onde cumpre pouco mais do que o papel de palco e adereço para novelas medíocres de Dan Brown, vive agarrada ao ventre dos estados laicos, mendigando isenções fiscais e tributárias (que, a serem levantadas, significariam de pronto o seu fim) e procurando insinuar-se insidiosamente nos currículos académicos, nos laboratórios científicos e nas cadeiras dos parlamentos, procurando perpetuar, por decreto ou fraude intelectual, aquilo que a realidade já lhe não permite.

Leva, ao fim e ao cabo, a existência, ainda gorda e ainda rica, de uma ténia, criatura que existe também há fartos milhões de anos, embora ninguém lhe reconheça, por isso, especial sabedoria.

2 comentários:

David Soares disse...

Boa recomendação! Também o tenho encomendado, mas ainda não chegou. Entretanto, posso recomendar estes que já li e que também se inscrevem na mesma temática:
1)Breaking the Spell, de Daniel C. Dennet (Alle Lane, 2006)
2)The God Delusion, de Richrd Dawkins (Bantam Press, 2006)
3)The End of Faith, de Sam Harris (W.W. Norton & Company, 2004)
4) e um que estou mesmo a terminar intitulado "American Theoracy", de Kevin Phillips (Penguin, 2006)

Na minha opinião, são todos bastante bons; talvez o mais tímido (surpreendentemente) seja o do Dennett, com uma primeira parte menos bem conseguida, mas com uma segunda parte fantástica.
O do Dawkins é escrito num tom mais ácido, e ainda bem, e possui muita documentação interessante, ficando no ar apenas a sensação que poderia ter sido um livro maior. Contudo, o que mais me entusiasmou (está a entusiasmar) é mesmo o do Phillips que desvenda coisas de puxar os cabelos sobre as ligações entre a indústria do petróleo e a direita religiosa norte-americana.

Só para não pensarmos que o fenómeno do endividamento é exclusivo da Europa, ou de Portugal, transcevo um excerto da página 273: "In 1980 americans collectively put aside a net 7.4 percent of national income. By 1990 that had fallen to 4.5 percent, and by 2005 to a record-low negative savings rate." Ou seja: há mais de um quarto de século que os norte-americanos gastam mais que aquilo que ganham e aquilo que ganham não é suficiente para preencher o buraco escavado pela dívida. Phillips explica, com fundamento, que a aliança entre a religião e a política não é inocente diante desta situação.

Cheers.

João Seixas disse...

Salve David. Excelentes recomendações, todas elas. Aliás o Dawkins, carinhosamente conhecido como Darwin's Bulldog é inexcedível nesse aspecto. Não sei se te lembras da sua análise da "God's Utility Function" no "River Out of Eden" de 1996?

Fiquei com curiosidade sobre o livro do Philips, que aliás já me tinha chamado a atenção ao ler um dos teus posts mais recentes no Sonho de Newton.

Acrescentaria talvez o "How We Believe" do Michael Shermer e, em menor medida, porque mais abrangente, mas do mesmo autor, o "Why People Believe Weird Things".