quinta-feira, 5 de julho de 2007

AOS BRONCOS, AS ESTRELAS

Os portugueses descobriram relativamente tarde o prazer asséptico dos centros comerciais. Quando Belmiro de Azevedo, epítome do português moderno e de sucesso, introduziu esses vastos espaços fechados na realidade nacional, eram já modelo praticamente abandonado na Europa dita civilizada. Mas os portugueses são assim: mal tomam o gosto a uma coisa, entregam-se totalmente; é um abandono deleitoso, um entusiasmo primaveril que se prolonga pela sua existência (atente-se na profusão de rotundas, outro exemplo de descobertas tardias e ultrapassadas mas recebidas como uma nova parúsia). É a alma nacional, sempre cheia de “saudade” e “casas caiadas”.

E na verdade é vê-los pelos corredores apinhados, sob as luzes inclementes, sob o céu esquálido de chapa enrugada e polímeros plásticos, entrando e saindo de cubículos onde Quasímodo teria dificuldade em voltar-se, carregando sacos pesados, caminhando quilómetros que se recusariam a percorrer numa rua a céu aberto, sob o azul celeste e as nuvens pachorrentas.

Certa vez, ouvi um grupo combinar a passagem de um dia inteiro num shopping recém inaugurado, como quem prepara um piquenique ou uma excursão de fim-de-semana.

Depois ocorreram-me as palavras do cosmonauta russo Valery Ryumin: “Estão reunidas todas as condições necessárias para o homicídio quando fechamos dois homens numa cabina, e os deixamos lá sozinhos durante dois meses”.

De acordo com Mark Shepanek, que em 2001 era director do departamento de medicina aeroespacial da NASA (citado pela revista “Discover”, Vol. 22, nº5, Maio de 2001), o maior desafio que os futuros colonos espaciais terão de enfrentar serão psicológicos: mormente o isolamento num espaço limitado e durante um longo período de tempo.

Embora as grandes naves-geração da FC estejam ainda longe das possibilidades de concretização, e da própria vontade política, se o entusiasmo pelos ambientes artificiais for um indício, os portugueses ainda poderão ditar cartas na conquista espacial.

Que bom português resiste a um shopping?

1 comentário:

David Soares disse...

Lembro-me de, há uns anos, ter lido o "Simulacros e Simulações", do Jean Baudrilard,e ficado surpreendido com o capítulo que falava sobre centros comerciais: nessas páginas, o autor mencionava o fenómeno em que o centro comercial é construído em primeiro lugar e só depois se ergue o subúrbio à sua volta. Contudo, neste preciso momento, isso já é possível de observar nas áreas limítrofes de Lisboa, nos concelhos de Oeiras e Loures, por exemplo.

Outra mecânica engraçada relacionada com a expansão efervescente do sector terciário é a emergência da "Micropólis": aglomerados urbanos (muitíssimo afastados dos grandes centros de actividade) que não alcançam um número elevado de população que os permita serem promovidos a cidades, mas que já têm tudo aquilo que uma cidade tem. Por vezes são chamados de "exurbia". No fundo, questiono se esta relação entre o comércio e o urbanismo é nova, porque as primeiras cidades também surgiram em órbita dos mercados, ou nas proximidades das rotas comerciais.

Talvez a novidade se encontre no próprio centro comercial que, com as suas "ruas", "avenidas" e lojas dispostas em micro-bairros, se aproxima, ele mesmo,da estrutura de uma cidade. Basta lembrar o slogan que acompanhou a campanha publicitária do "primeiro" centro comercial lisboeta, Amoreiras: "Uma cidade dentro da cidade".

Algo que tenho constatado quando passeio nos centros comeciais é que não são nada elitistas (sim, mesmo o Amoreiras, ali ao lado de Campo de Ourique e perto de São Bento), mas os visitantes acabam por fazer a sua própria divisão de classes, mediante os horários: num dia de semana de manhã vêem-se reformados, estudantes e donas de casa das classes médias e altas; durante a tarde, são, maioritariamente, estudantes, desempregados e representantes da classe alta; ao cair da noite, são os indivíduos de classe média que saem dos empregos e já depois da hora do jantar são os jovens das classes média e alta e os jovens dos bairros mais pobres. Acho que o consumo acaba por ser um neutralizador.

Cheers.