terça-feira, 31 de julho de 2007

PARABÉNS, BARREIROS!


João Barreiros é o Mestre incontestável da Ficção Científica Portuguesa e faz hoje 55 anos.

Que melhor forma de celebrar o evento do que iniciando uma série de entrevistas com os autores portugueses do Fantástico?

A começar por ele…

Nascido em 1952 e Licenciado em Filosofia, organizou em parceria com a Cinemateca Portuguesa e a Fundação Calouste Gulbenkian o Grande Ciclo do Cinema de Ficção Científica, em 1984. Dirigiu duas colecções com objectivos ambiciosos para o género em Portugal, tendo publicado a primeira tradução a nível mundial do NEUROMANTE de William Gibson, em 1985. É o autor de O CAÇADOR DE BRINQUEDOS E OUTRAS HISTÓRIAS (1993), TERRARIUM (com L.F. Silva, 1995), A VERDADEIRA INVASÃO DOS MARCIANOS (2004) e DISNEY NO CÉU ENTRE OS DUMBOS (2006).

Barreiros, depois de um interregono de dez anos, entre a publicação do TERRARIUM (1995) e da A VERDADEIRA INVASÃO DOS MARCIANOS (2004), no qual publicaste apenas um conto por ano nas antologias da Simetria (1996-2000), os últimos meses assistiram à publicação de duas noveletas (uma pela
Saída de Emergência e outra pela Livros de Areia), à republicação de um conto de 1995 (pela Chimpanzé Intelectual) a qual foi também traduzida e incluída na EUROPEAN SF HALL OF FAME (2007); Aguarda-se para os próximos meses a publicação de A BONDADE DOS ESTRANHOS: PROJECTO CANDYMAN (Chimpanzé Intelectual) e uma colectânea dos teus contos dispersos (pela Livros de Areia), um conto numa antologia sobre brinquedos, AS IDADES DO BRINQUEDO (2007) e um de horror, SE EU MORRER ANTES DE ACORDAR (também pela Chimpanzé Intelectual). Para além disso, voltaste a assinar críticas para o Público. Sentes que aos 55 anos, começas a obter o reconhecimento que mereces?

Penso que o que aconteceu não passa de um mero exercício de sincronicidade. Mas lá pelo facto de eu ver publicado um conto aqui e ali, isso não quer dizer que um determinado autor seja lido. Os livros continuam a vender-se pouco. Os adultos deixaram de ler FC. E os jovens só lêem fantasia infanto-juvenil. Os editores, mesmo aqueles que publicam obras próximas do fantástico, recusam-se a pés juntos a publicar seja o que for que se passe no futuro, mesmo que esse futuro seja o dia depois de amanhã. Continua a não existir uma crítica especializada: — note-se, por exemplo, que nenhum jornal falou do DISNEY nem da VERDADEIRA INVASÃO... E também estou quase certo que ninguém falará da BONDADE...

Numa nota recente da Caminho, fui informado que quanto às vendas do CAÇADOR e do TERRARIUM, nenhum deles ultrapassou os 800 volumes. E é de lembrar que já faz 10 anos desde a publicação do TERRARIUM. Portanto a minha “invisibilidade” permanece tal qual.

Ao contrário de outros autores, nunca fugiste à Ficção Científica, mesmo quando escreves no modo do horror. Porquê esta fidelidade a um género que a intelligentzia portuguesa despreza?

Por uma questão de militância. De marcar posição. De fazer frente ao passado. Por me divertir, sonhar o futuro ou mesmo ter saudades dele. Porque escrevo como uma forma de prazer onde o mundo inteiro é espectáculo. Prefiro mil vezes esse universo exterior, esse universo-como-personagem do que a circularidade do meu umbigo, a poesia sem rima, e todas as temáticas urbano-depressivas sobre conversas de cama e morte de familiares. O quotidiano aborrece-me. Os super-mercados nauseiam-me. Noites de farra aborrecem-me o fígado. Sobre que falar então? Dizia alguém que toda a linguagem é metafórica. Mas a FC é o único género onde a metáfora é realista, onde todas as palavras terão de ser cuidadosamente medidas. Aqui, "um céu demasiado azul", implica a possibilidade do sol se estar a transformar numa gigante branca...

A alienação da FC por parte do establishment cultural encontra um espelho tão tortuoso quão divertido nos E.T. que povoam as tuas obras: desde Mr. Lux no TERRARIUM que colecciona avidamente todas as pulps, até às tenebrosas aranhetas que estrebucham quando Chekov é interpretado num palco. Porquê esta fixação que os alienígenas barreirianos nutrem pela “nossa” FC?

Uma ideia que sempre me fascinou, mas que raramente vi tratada por outros autores, é pensar que os alienígenas, se é que existem, poderão ter formas de Arte. E que essas mesmas formas de arte resultarão perfeitamente incompreensíveis quando colocadas perante os nossos olhos.

Brian Aldiss tratou desse assunto de uma forma quase escatológica quando colocou os seus extra-terrestres a viverem uma profunda experiência estética perante as respectivas poias. Inversamente, também poderemos perguntar o que sentirão eles ao ler... bom, digamos, o Proust ou o Saramago? No ciclo das Aranhetas incluí o conceito de que todos os textos demasiado “literários” possuem uma densidade assassina. A leitura mata alienígenas, literalmente. Como se fosse uma arma. Como se um “clássico” tivesse, como subtexto, uma espécie de meta-mensagem onde as depressões do seu autor resultariam em ordens subliminais de auto-destruição.

Pela minha parte pergunto-me se os proverbiais extra-terrestres também escreverão FC. E que pensarão eles de nós, os tais “monstros de olhos achatados”?

Já o herói barreiriano, ao contrário, por exemplo, do engenheiro heinleiniano, é um tipo que está constantemente no lugar errado, na hora errada, a fazer a coisa errada. E, no entanto, tem sempre uma convicção interior muito forte. São como miúdos traquinas, que encontram na tecnologia o supremo dos brinquedos. São reflexos do teu próprio papel nos meios da FC e da literatura?

Yeap. Como dizem os nossos amigos britânicos, “shit happens, and happens at the worst possible moments”. Os meus personagens são exemplos disso. Talvez essa marca esteja mais presente na minha última novela, A BONDADE DOS ESTRANHOS: PROJECTO CANDYMAN.

A revolta de Joana contra uma instituição que a tramou, seja ela humana ou alienígena, só pode ser catastrófica. Quem teve infâncias monstruosas comete actos monstruosos quando adulto. Mas em boa verdade, é aborrecido estar sempre revoltado contra o mundo. A raiva perante a estupidez ou a ignorância é um sentimento que nos consome. Não me apetece passar a vida a tomar anti-ácidos. Porque afinal o meu coração respinga de uma “bondade” incontida.

E embora as minhas histórias sejam hiper-violentas, isso serve um pouco como forma de terapia. Na vida real posso ser bondoso como um cordeirinho acabado de nascer...


Quem tem o prazer de te conhecer pessoalmente sabe que nutres um maravilhoso fascínio pela tecnologia. Como encaras a onda de obras de Fantasia escritas por adolescentes e que parecem ser verdadeiros manifestos tecnofóbicos (um jovem autor, ainda em recente entrevista ao suplemento ÍPSILON do Público, se vangloriava de que no “seu mundo” a pólvora jamais seria descoberta)? Como sintomas de uma doença da cultura popular portuguesa, ou mero oportunismo face aos fenómenos Harry Potter e Senhor dos Anéis?


De facto não haveria coisa mais interessante do que introduzir tecnologia num mundo medieval.

Mark Twain inventou esse conceito genial no seu livro “Um Yankee na corte do Rei Artur”.

Lembro-me ainda do THE MAN IN BLACK, do John Brunner, onde um “exorcista” renegava todas as bolsas de “magia”, graças a uma atitude racional e positivista. Recordem-se da série de fantasia da Sheri Tepper, THE TRUE GAME, onde nevava em todas as batalhas onde participavam magos, pois estes iam roubar energia térmica ao espaço em volta, para os seus feitiços.

Ou as minas no centro da Terra, onde vivem os demónios, e os humanos vão sacar-lhes as “poias” cristalinas, que muito valem no nosso mundo. Sem esquecer toda a “tecnologia” necessária para as recolher. Não percam o ciclo de Nifft, the Lean, do brilhante autor Michael Shea, que infelizmente tão pouco escreve.

As oportunidades de sabotar o esquema da fantasia introduzindo nele pequenas gotas do pensamento científico são muitas e memoráveis. Pensem em Jack Vance, China Mièville, Scott Lynch, Steven Erickson, para apenas citar alguns exemplos.

O problema não está aí. Localiza-se principalmente numa falha de imaginação, ou mesmo de ousadia, pois, tal como acontece na FC, autor que não tenha nunca lido antes fantasia, corre o risco de reinventar a roda. Estes jovens autores deveriam ter uma mão editorial que os ajudasse, que lhes dissesse que deveriam ganhar um pouco mais de maturidade. E que deveriam ler muito, muito mais antes de começarem a escrever.

Mas é também uma doença cultural, claro. A desconfiança no futuro. O medo da mudança. O peso do imaginário judaico-cristão que força autores e leitores a criarem heróis positivos, sempre a combaterem contra as forças das Trevas. Ah, que saudades da BLACK COMPANY do Glen Cook, onde os heróis eram uma horda de mercenários malvados e violadores, a combaterem pelo lado das trevas...E recordam-se do Thomas Covenant, o herói leproso de Stephen Donaldson que logo nas primeiras páginas, chegado ao mundo da fantasia, “viola” uma jovem que se prestou a ajudá-lo?

Aqui para nós, digo o mesmo que Steven Erickson já disse algures: Se voltar a ouvir falar de uma jovem guerreira a querer lutar contra as forças do Mal, vomito. Pronto. É uma atitude assaz escatológica, concordo, mas talvez seja a única possível.

Dirigiste colecções na Gradiva e na Clássica, foste publicado pela Caminho, Presença, Saída de Emergência, Livros de Areia e chimpanzé Intelectual: como vês o papel das editoras portuguesas?

Bem que gostaria, nestas curtas linhas, de glorificar o heróico papel das editoras portuguesas na defesa do género. Infelizmente não é esse o caso.

As velhas editoras que publicavam FC, publicavam-na a medo, quase sem nenhum investimento. Tinham tendência a escolher as piores obras dos piores escritores pois os direitos de autor eram muito mais baratos. Não queriam publicar obras com mais de 200 páginas, excluindo assim, para todo o sempre, livros memoráveis como o STAND ON ZANZIBAR do Brunner ou o RIVER OF GODS do McDonald, para apenas citar dois exemplos.

Depois não se investia em bons tradutores. Para quê?, perguntavam as Editoras. Não será a FC uma para-literatura, dedicada aos geeks e aos adultos com problemas de crescimento emocional?

Outras editoras preferiam apenas publicar tie-ins, dizendo que eram precisamente esses livros que garantiam a publicação ocasional de outros melhores que ninguém iria ler.

A verdade é que todas elas acabaram. Hoje em dia não há em Portugal uma única editora a publicar FC. Os editores, quando pensam publicar qualquer coisa no domínio do fantástico, pedem ao agente literário que lhes envie qualquer coisa simples, barata, e sem grande exigência estilística.

E quando por mero acaso publicam FC sem o saberem, como no caso da ESTRADA do Cormac McCarthy, louvam-no como algo de profundamente original como se a FC não tivesse já tratado desse tema muito, muito antes e muito, muito melhor.

Ou chega a acontecer que um editor “esconda” que o livro é de FC, e na capa, em vez de um disco voador, ponha uma “passarola”, quem sabe para não assustar as “tias” que costumam ler romances históricos.

Provavelmente estão a defender-se ao procurarem vender um produto com outro rótulo. Mas a FC é um anátema, sim, para qualquer editor que se preze. É por isso que não existe uma única revista do género a ser publicada em Portugal.

Se eu fosse rico, se tivesse milhões de euros para estoirar, gostaria de publicar uma colecção de FC a sério, com boas obras, bons autores, bons tradutores, boas capas. Para que em seguida pudesse dizer, “depois de mim, o dilúvio”.

E se te convidassem para organizar outra colecção de Literatura Fantástica, hoje, que títulos escolhias?

Na FC escolheria Space Operas, começando pelas mais comerciais, tipo David Weber, mas sem esquecer Baxter, Reynolds, Hamilton, Banks. Talvez uma FC militarista, pós-Heinlein, tipo David Drake, David Feintuch ou Elizabeth Moon. E porque não a série do Miles da Lois McMaster Bujold?

Em Fantasia há sempre um Scott Lynch, um Abrecombie, um Donaldson, uma Martha Wells, um Sean McMullen, uma Robin Hobb... No horror há sempre um McCammon, um King, um Straub. Tudo depende da promoção...

E pelo inverso: se te pagassem principescamente para escrever uma fantasia juvenil… que história contavas?

A história de uma cidade com uma Torre imensa, uma torre que ligava o céu às profundezas do inferno habitado por demónios. Essa torre teria um balancé interior, uma espécie de giroscópio interno que a manteria direita. A história trataria de um jovem artesão, chamado Filipinho, responsável pelas engrenagens que mantêm o giroscópio funcional. Até que um belo dia...

Apesar de não teres sido o primeiro autor de FC em Portugal, a qualidade e ímpeto dos teus textos, e a acutilância das tuas críticas, rapidamente te erigiram como o “expoente” da FC portuguesa. E, desde a tua primeira publicação semi-amadora (DUAS FÁBULAS TECNOCRÁTICAS, 1977), continuas sem “rival” à altura, apesar da manifesta qualidade de autores como o Luís Filipe Silva. Como vês hoje a FC portuguesa? Em que mudou desde que começaste a escrever?

Ora, nada. Ninguém escreve FC em Portugal, a não ser uma ou outra obra de cariz amador, publicada em edições de autor que logo são engolidas pela Grande Noite. Gostaria que o Luís Filipe Silva voltasse a escrever sem se preocupar com as posições dos intimistas ou urbano-depressivos. Gostaria que um certo João Seixas tivesse tomates para terminar a sua parte do tríptico.

Quando eu e o LFS escrevemos o TERRARIUM (até agora julgo eu, o mais volumoso livro de FC nacional jamais publicado na história do género) julgámos que ele ia abrir portas, entusiasmar novos escritores como uma forma de desafio para que nos suplantassem em tamanho e ousadia. Nada disso aconteceu. O TERRARIUM foi como que o canto do cisne.

Bem que gostaria de ter um rival. Ou mesmo dois ou três. Mas nada.Escrever no vazio, sabe-se lá para quem, dói que se farta.

Numa recente visita à Polónia que, como toda a gente sabe, não “existia” antes dos anos 50, encontrei livrarias imensas, com secções avultadas dedicadas à FC, com quase “tudo” traduzido e, para grande espanto meu, mais de 20 autores polacos todos eles com obras de FC disponíveis (e não estou a falar aqui da fantasia). Ter na frente aquelas fileiras de autores polacos — autores a que nunca poderei ter acesso por causa da língua — encheu-me de uma surda tristeza. Lembro-me de um livro enorme, que o Michael Kandell muito louvou, OCEANO NEGRO, de um tal Jacek Dukaj, ao que parece uma resposta sublime ao STAND ON ZANZIBAR. É terrível pensar que a Polónia defende os seus autores, que há quem os leia e os publique.

E que aqui, nada existe, nem vai existir no futuro próximo pois a iliteracia continua a crescer como um cancro.


Pegando nesse exemplo: e a FC em si, extra-fronteiras? Sempre foste defensor do óbito da FC que Clute pronunciou no início dos anos 90 (e que depois retractou parcialmente). Achas que havia razões para o pânico? Ou a FC morreu mesmo, e a nossa actividade não passa de necrofilia?

A FC tradicional está a envelhecer. Os grandes autores da Golden Age estão hoje extintos. Os da terceira geração (pós-New Wave) andam a morrer como tordos. Os livreiros conglomerados só apostam em mega-bestsellers, o que significa que a FC foi varrida das estantes da maior parte das livrarias. Um pouco por todo o mundo as livrarias “especializadas” foram mergulhando no abandono e na falência. Tome-se à guisa de exemplo, a extinção da maravilhosa MURDER ONE em Charing Cross Road.

Um autor conhecido deixa de ser publicado porque os editores preferem apostar na edição da primeira obra de um jovem arrivista. Mas a verdade é que este desgraçado só pode publicar quatro vezes na mesma editora antes de ser escorraçado para as trevas exteriores. Todos eles dependem da análise estocástica das futuras vendas. E se essa previsão do futuro não se revelar propícia...então...

Mesmo assim a FC britânica, principalmente o novo género da Space Opera Gótica continua sublime. E porque estes senhores continuam a escrever pelo menos um livro por ano, está salva a honra do convento.

Leiam por favor Ian McDonald, Ian R. McLeod, Peter F. Hamilton, o Alastair Reynolds, Jon Courteney Grimwood, Ian R. Banks para apenas citar alguns. São eles que mantêm a chama acesa. Quanto a eles serem publicados em Portugal...ah...tristes tristezas!

Que consideras ser necessário para inverter essa situação nesta lusa periferia? Ou é mesmo um beco sem saída?

Para inverter a situação seria necessário que as Editoras começassem a publicar livros “diferentes”, mesmo que nada ganhassem no início. Depois teria de haver programas na TV dedicados ao género, clubes de leitura, livrarias especializadas e...mais do que tudo, duas ou três revistas mensais, bem produzidas, bem ilustradas, a anos-luz das BANGs, por exemplo.

E depois sessões de hipnagogia sob as almofadinhas de todos os bebés, a dizer-lhes o que devem ler.

Infelizmente já chegámos tarde. Os miúdos, hoje em dia, são filhos de duas gerações que nunca leram. As casas deles, mesmo os que são filhos de professores, não têm livros, portanto como hão-de eles iniciar o processo de leitura? As bibliotecas das Escolas nada têm que seja novo ou diferente. E, como os professores responsáveis por essas bibliotecas também não lêem, como hão-de eles estimular os miúdos? Desconheço quais as obras que foram incluídas no Plano Nacional de Leitura para os jovens das Escolas. Mas desconfio que, entre elas, não haverá um único romance de FC. Lembro-me que, aqui há alguns anos, os meninos do Colégio Francês liam as CRÓNICAS MARCIANAS do Bradbury, e faziam eles muito bem.

E, já agora, como farias para introduzir à literatura fantástica uma nova geração de leitores jovens, atafulhados em playstations, DVD e telemóveis 3G?

Seria muito difícil. Os jovens hoje em dia sofrem, como já disse, de iliteracia. Isto quer dizer que, mesmo sabendo ler, não percebem aquilo que leram. Tive disso um belo exemplo quando na Escola onde sou professor, uma turma do 10º ano tentou ler o DISNEY NO CÉU...Só rir, só rir...

A título de exemplo, disseram que não tinham gostado do fim, porque acabava mal...porque é que eu não o reescrevia? Acabar mal, exclamei espantado! Mas tem um happy end múltiplo: A Suzana ganha porque defendeu a prole. A prole ganha porque pôde nascer aos milhões. Marklin ganha porque conseguiu fugir à Suzana. O Rato Negro ganha porque atingiu a Singularidade gnóstica. As ninhadas de ratinhos ganham porque se puderam reproduzir em grandes orgias. A Diáspora ganha porque pôde deitar as mãos a um gerador de hiper-espaço. Afinal ganharam todos e viveram felizes para sempre.

E ao dizer isto vi os olhares aterrados das criancinhas e professoras, sempre habituadas ao triunfo monolítico do Bem contra o Mal.

Mas sugiro a leitura comentada de contos escolhidos a dedo. Sugiro clubes de cinema e ateliers de escrita criativa, na escola, e não só.

E por falar em escrita criativa: qual é o método de escrita do João Barreiros? Qual é o segredo do sucesso, atendendo a que qualquer pessoa que já escreveu contigo sabe que és um autor rápido e profíquo...

O plot nasce com uma imagem única que depois se divide para trás e para a frente da árvore narrativa. Depois é esperar a possessão da Musa, que chega em sonhos ou nos momentos mais inopinados do dia.

É uma forma terrível de submissão a uma força maior que me deixa esgotado e a tremer de frio.

Quando a Musa surge, as coisas avançam, mosaico a mosaico. Quando não chega, as histórias morrem a meio. A maior parte das vezes as soluções do plot chegam em sonhos como uma intuição. No caso da BONDADE vivi vários meses com a imagem sufocante de um jardim implacável onde a Joana andava perdida.

O que nos leva à inevitável questão: Barreiros, esta actividade é para continuar? Tens mais projectos em mão?

Bom, estou a pensar escrever um romance steampunk a meias com um certo senhor que todos conhecem. É também uma história alternativa, pois aqui as teorias criacionistas são verdadeiras. As vagas criacionistas espalham-se em ondas, pelo Cosmos, alterando tudo por onde passam, reformatando a vida nos planetas por onde já passou uma onda anterior. O que aconteceria ao nosso mundo se sofresse dois impactos sucessivos, um no Séc. XVIII e outro no inicio do Séc. XXI?

Ah, o romance steampunk, pois… errr… estou atrasado com isso, não é?


Obrigado Barreiros. E feliz aniversário.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

AO VENCEDOR, OS LOUROS


É hoje finalmente revelada a identidade do vencedor do 1º Concurso de Contos de Terror do CTLX, de cuja escolha tive a honra e o prazer de participar com o David Soares e o António de Macedo.

Do número inesperado de manuscritos, decidimos extrair ainda uma "menção honrosa", por entendermos ser de todo o interesse incentivar a permanência no - e o aprofundamento do -género por autores que revelaram capacidade para se moverem com algum à vontade pelos corredores tortuosos do fantástico.

Quer o vencedor, quer a menção especial do júri, mereceram unanimidade na sua escolha, facto que é sempre digno de ressalvar.

O Concurso, o primeiro do género em Portugal, onde o Horror é tão maltratado pela crítica, pelos autores e pelas próprias editoras, contou com a participação de 90 originais, os quais se bateram por lograr engalinhar a pele rija dos três elementos do júri. Alguns conseguiram, mas não pelos melhores motivos.

Os contos seleccionados integrarão uma colectânea de contos a ser editada em parceria pelo Cineclube de Terror de Lisboa e pelas Edições Chipanzé Intelectual. O lançamento encontra-se aprazado para Setembro, durante o 1º MOTELx - FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINEMA DE TERROR DE LISBOA.

O Blade Runner vai acompanhar de perto o Festival, pelo que esperem por algumas críticas aos filmes seleccionados para a mostra, bem como as notícias mais sangrentas e aterradoras.




domingo, 22 de julho de 2007

VIPER AT WORK




Hoje é Domingo. Dia de crítica no
Blade Runner.

Como a publicação incerta ao longo desta última semana permitia antever, não me foi possível terminar nenhuma crítica aceitável para hoje.
Com a chegada do Verão, muitos blogues anunciam o incremento de uma actualização errática; coisas das férias e da silly season.

O
Blade Runner segue, contrariado, a mesma tendência; se já houve quem me chamasse viperino nas críticas que assino, é bem certo que a minha herança reptiliana se sobrepõe por vezes aos genes de primata.

Como qualquer réptil que se preze, o verão trás-me mais trabalho e actividade e dá-se a coincidência de nesta última semana, bem como na próxima, se sobreporem demasiados
deadlines.

A minha esperança é que todos eles se traduzam em trabalho visível e publicado nos próximos meses. Deixo por isso as minhas desculpas a quem esperava a actualização habitual dos domingos.

Já agora, a foto é de uma naja do Paquistão. Achei que gostavam de saber.

sábado, 21 de julho de 2007

IS HARRY POTTER A GHASTLY HOLLOW?


Ao escrever estas linhas, se tudo correu bem, o sétimo volume da série Harry Potter começou a ser distribuído pelos milhares de leitores que durante horas, um pouco por todo o mundo, formaram filas intermináveis à espera de um exemplar de Harry Potter and the Deathly Hallows, último volume da heptalogia que mais livros vendeu em toda a história da humanidade.

Fixemo-nos nesta frase, pela importância que tem: “em toda a história da humanidade”.

Admito que, num cálculo cumulativo, livros como a Bíblia, o Corão, A Origem das Espécies, e poucos mais, terão vendido um total superior à saga Harry Potter; mas quantos desses títulos foram activamente procurados pelos seus leitores – leitores que provavelmente nunca antes leram um livro – para serem lidos pelo mero prazer da leitura?

Neste momento, Rowling vive o sonho de qualquer escritor… a primeira edição norte-americana deste último volume da saga recebeu uma anunciada tiragem de 2.500.000 exemplares.

Nas próximas quarenta e oito horas pelo menos um quinto dos volumes vendidos já terá sido lido de capa a contra-capa por leitores ávidos de descobrir a resposta à pergunta: pode Harry Potter morrer?

Milhões de jovens leitores por todo o mundo leram os seis volumes anteriores – muitos, mais do que uma vez - no que totaliza quase três milhares e meio de páginas. E prepara-se para enfrentar mais oitocentas. Em inglês, porque a edição nacional, da Presença, só lá para Outubro chega às bancas, obrigando, certamente, a uma repetição das filas de hoje.

Curiosamente, uma rápida leitura dos blogues habituais (e refiro-me aos blogues de referência, não aos de fãs entusiastas), revela um silêncio comprometido perante este fenómeno. Apenas O Sonho de Newton de David Soares se lhe refere, numa pertinente reflexão sobre um episódio mais aterrador do que qualquer dos monstros que surgem nas páginas de Rowling.

Confesso que não sou apreciador da saga Harry Potter; mais, tenho tendência para antipatizar de imediato, seja com que obra for, que estabeleça categorias excludentes entre aqueles que acreditam e aqueles que não: e a designação de muggles para todos aqueles que não acreditam, e pior – que não têm acesso – ao mundo da magia, invoca de demasiado próximo o gérmen de um fundamentalismo que nunca conduz a coisas boas. E reconheço que não consigo compreender o que pode levar alguns marmanjos de barba rija a enfiarem-se nas filas com as criancinhas atrás de um livro que nunca leriam quando crianças.

Mas o facto inescapável, é que numa noite fria de Julho, milhares de crianças que mal sabem ler português, fizeram fila para arrebatar um livro, com cerca de oitocentas páginas, escrito em inglês.

Que isso aconteça num país onde o Público noticiava, há precisamente uma semana, que praticamente três quartos dos estudantes não conseguia perceber o conteúdo dos testes escolares de português, e onde o “leitor habitual” lê menos de três livros por ano, é facto que devia obrigatoriamente suscitar questões de fundo sobre o sistema educativo, o programa escolar e o ridículo e oportunista Plano Nacional de Leitura.

E a nós, defensores e estudiosos da Literatura Fantástica, gostemos ou não de Harry Potter, o facto de ser um livro de Fantasia o único capaz de mobilizar estes exércitos de leitores jovens, não nos deve envergonhar; muito pelo contrário.

Atribui-se normalmente a Inácio de Loyola o dito “Entreguem-me as crianças e eu devolver-vos-ei cristãos”; pois bem, o Fantástico já apanhou as criancinhas… compete-nos a nós, ajudá-las a crescer.

domingo, 15 de julho de 2007

NAS ASAS DA HISTÓRIA


Del Rey Books, 2006
384 páginas
ISBN 10: 0345481283
ISBN 13: 978 - 0345481283



Numa realidade alternativa, as Guerras Napoleónicas travam-se com o auxílio de Dragões, criaturas aladas, capazes de cuspir fogo ou ácido, e com os quais são levadas a cabo as primeiras batalhas aéreas e aeronavais da História (numa referência passageira, ficamos mesmo a saber que Sir Francis Drake, contou com a ajuda de dragões para desbaratar a Invencível Armada). O Capitão William Laurence, da Marinha Britânica, captura uma embarcação francesa que transporta, num compartimento especialmente preparado para o efeito, um raríssimo ovo de dragão chinês (que, sem que o saiba, é um presente do Imperador Celeste para Napoleão). Antes de conseguir levar o navio para um porto doméstico, o ovo choca e Laurence vê-se inesperadamente “vinculado” (no sentido lorenziano) a Temeraire, um dragão extremamente loquaz e articulado. Uma vez que o vínculo entre dragões e cavaleiros (pilotos) é inquebrantável, Laurence é forçado a abandonar a sua honrosa posição na prestigiada Marinha Real, para atender ao seu dragão, acabando por ingressar no Corpo Aéreo, uma força aérea composta de dragões, cada qual com a sua tripulação e características. A pouca estima em que esta “força aérea” é tida, leva a que Laurence caia em desgraça entre a aristocracia, perca o casamento com a sua prometida, e se veja embrulhado nas disputas e agruras da vida militar nos campos de treino da guerra aérea. Neste primeiro volume, acompanhamos o treino e o desenvolvimento da relação entre Laurence e o Dragão Temeraire, que apesar de maduro, articulado e filósofo, não parece possuir as mesmas capacidades bélicas dos seus companheiros e adversários, os dragões ingleses e franceses… até ao momento decisivo, em que essas capacidades se mostram mais necessárias.

Como bem observou Gary K. Wolfe, a propósito deste His Majesty’s Dragon, vem sendo fenómeno cada vez mais frequente (ecos ainda do sucesso da série Harry Potter?), o surgimento de novos autores que se apresentam no mercado através de uma série de volumes (projectada, ou mesmo já escrita) que exploram um novo universo, ou uma personagem (mais ou menos) carismática, fenómeno esse que se manifesta de forma mais visível nos géneros do fantástico (sobretudo Fantasia e Ficção Científica) e no policial. Comercialmente, tal aposta é compensadora ao criar na percepção do consumidor a consciência de um novo “nome/marca”, passível de permitir uma mais fácil identificação, e obviando assim à luta que os novos e emergentes autores têm de travar para se afirmarem através da acumulação de uma massa de trabalhos variada e inovadora; na vertente editorial, a aposta em tais “séries instantâneas” pode ser recompensada pela rápida criação de uma “franchise” de sucesso automático.

Na vertente negativa de tal fenómeno conta-se, as mais das vezes, a inultrapassável mediocridade de tais séries, que se limitam à reciclagem (por vezes mesmo, pobremente encapotada) de receitas de outras séries, já testadas no mercado. O mesmo é dizer, por cada George R.R. Martin ou Steven Erikson, surgem dúzias de David Eddings ou Robert Jordans.

No caso de His Majesty’s Dragon, a aposta é suficientemente inovadora para merecer apenas comparações referenciais com a saga dos Dragonriders of Pern, de Anne MacCaffrey e com as aventuras navais de Patrick O’Brian, às quais poderíamos acrescentar, igualmente, a superlativa série de C.S. Forrester (Horatio Hornblower) ou, no patamar entre a Fantasia e a Ficção Científica, a série The World in Darkness de Harry Turtledove. Atrever-me-ia mesmo a afirmar que um importante catalisador para a publicação da primeira parte das aventuras do dragão Temeraire e do seu “piloto” Will Laurence, em rápida sucessão nos Estrados Unidos, foi o estrondoso sucesso de Jonathan Strange & Mr. Norrell, de Susanna Clarke, que operou pela primeira vez, em 2004, o entrecruzar das Guerras Napoleónicas com aspectos de Fantasia.

No aspecto literário, a escrita é fluida e elegante, prestando atenção aos detalhes da época, quer sociais (o sense and sensibility da sociedade da Regeneração, corporizada no espírito cortês de Laurence e na sua relação com o dragão), quer técnico-militares (na exploração, relativamente bem conseguida, da influência de elementos anacrónicos de guerra aérea – baseada em experiências posteriores, sobretudo das duas Guerras Mundiais – nas batalhas históricas das Guerras Napoleónicas). O tamanho do volume (356 páginas na edição paperback americana, 330 na edição hardback inglesa) é adequado ao desenrolar da primeira parte da narrativa, mas impede uma exploração mais aprofundada da sociedade da época e dos seus maneirismos, os quais ficam forçosamente limitados às relações familiares aproximadas (sobretudo entre Laurence e a sua família, e Laurence e a sua ex-prometida) e ao relacionamento da vida militar (sobretudo, neste primeiro volume, nos campos de treino); cabe assim aos dragões – personagens tão bem definidas e individualizadas como as próprias personagens humanas – suportar algumas das características mais interessantes, o que se evidencia deliciosamente quando Temeraire começa a desenvolver inclinações revolucionárias (que são exploradas nos volumes posteriores).

Não obstante o realismo que a autora procura incutir na narrativa, His Majesty’s Dragon é, ainda assim, uma obra de Fantasia (e, não, por exemplo, um Universo Alternativo de Ficção Científica), o que é bem patente no negligenciar de alguns aspectos a que uma obra de FC teria obrigatoriamente que responder: nomeadamente, a génese e desenvolvimento dos dragões (que, no contexto da obra, sempre estiveram presentes), a aerodinâmica dos combates aéreos (empolgantes e bem descritos, mas impossíveis) e a economia dos dragões como arma de guerra (se os dragões comem 3 ou 4 vacas por dia, como podia a agro-pecuária inglesa sustentar um Corpo Aéreo com tantos dragões?).
Alguns destes aspectos (magnificamente explorados, por exemplo, em The Iron Dragon’s Daughter de Michael Swanwick) servem, no entanto, para fortalecer a narrativa, ajudando-a a centrar-se no seu objecto central: concretamente o estreitamento de laços entre Laurence e o seu dragão, ao mesmo tempo que se afasta da sociedade aristocrática, e o ultrapassar (climático e bem conseguido) da inferioridade de Temeraire, raro dragão chinês, face aos seus companheiros e adversários, capazes de cuspir fogo e ácido. O simples facto de a autora nos dar a entender que os dragões sempre existiram, e são para a humanidade tão normais como os cavalos, ajuda o leitor a aceitar mais facilmente o universo alternativo em que é convidado a entrar.

domingo, 8 de julho de 2007

OS PECADOS DOS PAIS




William Morrow, 2007
384 páginas
ISBN-10: 0061147931
ISBN-13: 978-0061147937


Jude Coyne, famosa estrela de heavy-metal e praticamente o único sobrevivente do grupo Jude’s Hammer, adquire um fantasma na Internet. O que podia ser apenas uma brincadeira ou excentricidade, acaba por revelar-se um assunto bastante mais sério, uma vez que Jude foi escolhido, propositadamente, como alvo e recipiente daquele fantasma: o espírito de Craddock McDermott, um velho hipnotista e veterano do Vietnam, que faleceu pouco depois do suicídio da enteada, a última namorada de Jude. E, à medida que as aparições do fantasma se vão tornando mais e mais agressivas, Jude compreende que o seu único objectivo é a vingança. Mas a verdade é como as moedas, tem mais do que uma face, e quando Jude, Georgia (a sua actual namorada) e os dois fiéis pastores alemães partem rumo à Florida para por cobro àquela ameaça, o que descobrem é ainda mais sinistro e surpreendente do que à partida podiam contar.

O confronto do leitor moderno com uma história de fantasmas, quase um século depois de M.R. James ter (praticamente) esgotado as variações do género, obriga-o a formular, uma e outra vez, a velha questão que Lafcadio Hearn levantou no seu Nightmare-Touch (in Shadowings, 1900):”para aqueles que acreditam em fantasmas, qual é a razão do medo inspirado por eles?” E a resposta aventada, a título especulativo, permite-nos tactear a real inquietação que escorre, quase física, das páginas desta primeira obra de fôlego de Joe Hill. “Qualquer medo que possa sentir-se, é sempre resultado da experiência – experiência do indivíduo ou da espécie – experiência da vida presente, ou de outras já esquecidas. O próprio medo do desconhecido não pode ter outra causa. E o medo de fantasmas, só pode ser resultado de uma dor já experimentada”.

O fantasma torna o passado táctil. Obriga ao reviver de uma dor pretérita. O fantasma é, afinal, a vingança da memória, o remorso corporizado. Quando conhecemos Jude Coyne, ele é o que esperaríamos que fosse uma velha estrela de Heavy Metal, semi-retirada, depois do suicídio de um elemento da sua banda (disfarçado sob a capa de um acidente de automóvel) e da morte dolorosa (às mãos de um cancro incurável) de um outro: ou seja, tudo menos assolada por remorsos. A sua cama é frequentada por uma série sucessiva e ininterrupta de roadies, groupies, ou jovens góticas, pelo menos trinta anos mais novas que os seus cinquenta e seis, e a vida suficientemente abastada para que as possa tratar com o desprezo que as gothic chicks buscam nas divindades do hard rock. Suficientemente abastada, mesmo, para se entregar a pequenas indulgências macabras, como seja coleccionar artigos do oculto e do extremo (desde a confissão de uma bruxa, assinada no século XVIII, até um filme snuff). Por isso, Jude não hesita quando lhe surge a possibilidade de adquirir na Internet um fantasma verdadeiro, que acompanha um fato que lhe é entregue numa caixa negra, em forma de coração.

Verdade seja dita, Jude Coyne é-nos apresentado como sendo uma criatura verdadeiramente desprezível, não muito distante daquela faceta de si próprio, que Jerry Lewis nos mostrou no sublime The King of Comedy (Scorcese, 1982). Aliás, observe-se (como Georgia o faz também), que “Jude Coyne”, é homófono de “Judas Coin”, das moedas com que Judas vendeu Cristo. Sintomaticamente, dizem-nos as fontes bíblicas, Judas acabou por se suicidar, ele próprio, por remorsos…

A chegada do fantasma, porém, com o seu fato negro e olhar de sarrabisco, como se oculto sob os traços furiosos de uma caneta (um aspecto curioso, incomum mesmo, mas que evoca uma estética mais japonesa, da tradição dos kwaidan, ou o hábito mediterrânico de cobrir os olhos dos cadáveres com moedas, para pagar a passagem a Caronte), vai forçar o leitor a alterar, progressiva e radicalmente, a forma como encara Jude Coyne; vai mostrar que por baixo da barba hirsuta do roqueiro, se encontra ainda (o fantasma?) de Justin Cowzynski, um rapaz pobre de uma família pobre do sul, vítima de maus-tratos familiares (da violência do pai e da cobardia da mãe), e que apenas queria tocar guitarra.

A narrativa, conforme sintetizada acima, admite níveis de leitura diversificados, traduzindo o imperecível potencial do horror para minar o inconsciente colectivo das sociedades modernas; mas, sobretudo, explora de forma apaixonada os processos de formação/desintegração da personalidade individual, elaborando um jogo de espelhos e miragens entre as várias personae (no sentido de máscara social), representadas pela sua identidade pública, auto-imposta (Jude Coyne, que acoberta sob a sua persona violenta, fria e indiferente, a personalidade mais afável de Justin, ou daquilo que Justin poderia ter sido, tivesse crescido num outro ambiente) ou imposta por outrem (Marybeth, que primeiro tem a persona de Morphine, a stripper, sob cuja máscara pretende ultrapassar – em excesso, assim redimindo – os pecados de ter sido uma prostituta aos treze anos; e depois a de Geórgia, que lhe é atribuída por Jude, que não quer saber do seu passado, até ambas serem quase submersas pela personalidade de Florida, a rapariga maníaco-depressiva cujo suicídio o fantasma do padrasto parece querer vingar). Mas o próprio fantasma, nas suas motivações, não passa de uma máscara.

Joe Hill escreve de uma forma surpreendente; para aqueles que sabem ser filho de Stephen King, que praticamente criou o horror contemporâneo, será difícil resistir a fazer comparações com as obras do pai; os carros fantasma de Christine e From a Buick 8 estão aqui presentes, tal como os cães sobrenaturais de Cujo; os dedos decepados e a porta riscada no solo de The Dark Tower, o recurso aos brand names que polvilham os diálogos e as descrições [quando Jude diz a Geórgia que comprou o fato assombrado numa mera imitação do eBay, (“a third-rate clone”) e lhe explica que por um qualquer motivo era necessário que ele comprasse o fato, concluindo ter a certeza de que existe ali uma qualquer mensagem moral mais profunda, a resposta da companheira é simplesmente “Yeah. Stick with eBay”], e os diferentes tipos de fonte impressa para representar diferentes tipos de discurso, são tudo elementos característicos da obra de King (como antes de John dosPassos, John Sladeck ou John Brunner). Mas, por via da sua popularidade, espalharam-se rapidamente pela paisagem literária, encontrando-se, de uma forma ou outra, na obra de qualquer autor. Onde Hill segue as passadas de King é na soberba habilidade narrativa, na sobreposição da arte do storytelling à da mera escrita novelesca (experimente-se ler o texto em voz alta, para depressa notar o ritmo e a cadência quase musical das frases). Tal como um bando de aves que nos prende o olhar para logo nos ludibriar com uma súbita e coordenada mudança de direcção, Hill agarra o volante da atenção do leitor e passa a conduzi-lo a seu bel-prazer, por cenários cada vez mais inesperadas.

O estilo de escrita consegue fazer o texto parecer mais sórdido do que realmente é (um feito, ele próprio, digno de nota); a imaginação visual e descritiva é (para recorrer a um cliché) verdadeiramente transbordante; e o ritmo é de montanha russa. A tal acresce a riqueza de caracterização das personagens, desde as principais, aos meros intervenientes secundários numa única cena (inesquecível o homem da laringe electrónica e a esposa gorda numa casa de fast-food) que permitem uma identificação imediata por parte do leitor, a par de uma honestidade de autor surpreendente, que permite que as personagens se mantenham fiéis até aos aspectos negativos da sua personalidade. E, não menos relevante, é um dos raros livros de horror que é verdadeiramente implacável na criação de um ambiente credível e capaz de transcender os limites das próprias páginas.

Numa paisagem literária quase obnubilada pela predominância do estilo sobre o conteúdo, é com agrado que se vê um autor (quase) estreante adoptar a difícil arte do estilo invisível, onde a palavra escrita se transforma imediatamente em imagens e sensações no cérebro do leitor. Também o narrador é uma máscara, um fantasma, reproduzindo a nível estilístico o próprio tema da novela (chegados ao final, sentimos como perfeitamente justificadas as informações que o narrador nos vai dando nos primeiros capítulos, obrigando-nos a testemunhar a reacção das personagens àquilo que nós já conhecemos).




Heart-Shaped Box devolve-nos, sobretudo, o raro prazer de contar e ouvir contar uma história de fantasmas junto à lareira.

A LENTE DISTORCIDA: O F(É)NTÁSTICO

Escrevi abaixo que nenhum dos géneros do fantástico (Ficção Científica, Horror e Fantasia) poderia ter surgido sem o abandono da fé religiosa, o que provocou um comentário discordante (e bem-vindo) da Safaa Dib. Para quem não a conhece (e se não a conhece, o que anda a fazer no mundo?) a Safaa é uma das organizadoras do Fórum Fantástico (o outro é o Rogério Ribeiro) e a autora do interessantíssimo Stranger in a Strange Land (que bem poderia ser o nome deste blog se ela o não tivesse tomado primeiro). O que serve para dizer que a opinião da Safaa tem peso acrescido.

E considera ela haver um certo simplismo na relação dos factores fé e fantástico, pelo menos consoante defini os seus géneros no post em questão. É evidente que qualquer tentada definição dos géneros é em si mesma, uma contenção, e por isso sujeita às mais variadas discordâncias, por via do maior ou menor número de “textos” que caibam ou sejam excluídos do seu âmbito.

Porém, se excluirmos a ficção científica, podemos encontrar elementos do fantástico (Fantasia e Horror) nas mais variadas fontes, desde os primeiros relatos orais aos primeiros documentos escritos; de facto, tropos do fantástico como o morto-vivo, demónios, anjos, vampiros, djinns, magia, seres metamórficos, dragões e bruxas (para escolher alguns dos exemplos mais frequentes de um leque incomparavelmente maior) fazem a sua aparição em muitos dos textos sagrados ou epopeicos (o livro dos mortos egípcio, a bíblia, a epopeia de Gilgamesh, a Ilíada e a Odisseia, etc...), o que nos impõe isolar um elemento de distinção entre os géneros que surgiram após ou com o Iluminismo e esses textos anteriores.

Mormente, é necessário descortinar qual o elemento que separa o fantástico moderno do maravilhoso medieval: e esse elemento apenas pode ser encontrado no que de comum têm esses géneros, pelo menos conforme nós os entendemos (neste sentido, é de particular acuidade a tese propugnada por Paul Veyne no seu Acreditaram os gregos nos seus mitos?, publicado entre nós pelas Edições 70, Lisboa, 1987).

E o que de comum encontramos é, desde logo, a certeza de que as suas narrativas se encontram imbuídas de uma fundamental irrealidade daquilo que nos é mostrado: o mesmo é dizer, à luz da nossa experiência, conhecimentos históricos e factos cientificamente demonstrados, quer o ambiente em que a narrativa se desenrola, quer as implicações da própria narrativa, seriam prática ou conceptualmente impossíveis nas circunstâncias de tempo ou lugar em que a narrativa é escrita. E, sobretudo, tal irrealidade é conhecida dos destinatários da narrativa.

Referindo-se a essa fundamental irrealidade (e uso aqui o fundamental, para separar o fantástico da normal irrealidade de qualquer texto de ficção), Isaac Asimov escreveu:

Fantasy should mean not only something that is not so and therefore exists only as an idea, but also something that could not possibly be so and therefore can exist in no other way than as an idea” (in Magic, Voyager, Harper Collins, 1997) . “In fact we can be stricter still and insist that fantasy must deal not only with matters that we conceive as not capable of existence in our universe, but which we insist are incapable of existence even in a universe modified by reasonable scientific advance.” (idem)

Neste ultimo caso, ou seja, quando o mundo representado na narrativa, ou as suas implicações, se tornem concebíveis num universo alterado por avanços razoáveis do conhecimento científico, estaríamos no âmbito da ficção científica.

Lendo o que escrevi no post inicial, descrevi a Fantasia como pressupondo “uma substituição do real por uma lógica distinta e impossível, da qual não se exige mais do que a coerência interna dos seus próprios postulados”.

A definição de Fantasia, que nos é apresentada na Encyclopedia of Fantasy (organizada por Clute e Grant) ecoa de muito perto o postulado asimoviano: “Fantasy is a self coherent narrative. When set in this world, it tells a story which is impossible in the world as we perceive it, when set in an otherworld, that otherworld will be impossible, though stories set there may be possible in its terms”.

Em todas as três definições (da qual, como fez Asimov, podemos derivar a de ficção científica), a de Clute, Asimov e a minha (mais modesta) própria, destaca-se como imprescindível o conceito de possível e impossível; conceito esse que só pode ser aferido pelos instrumentos do pensamento científico.

Recordemos agora, por contraposição, o que Leão XIII fez verter na encíclica Encíclica Providentissimus Deus, de 1893: “Não pode nunca existir desacordo real entre o teólogo e o físico, enquanto cada um permanecer na sua própria esfera, e desde que um e outro, como adverte S. Agostinho, tenha o cuidado «de não fazer afirmações temerárias nem afirmar que uma coisa é conhecida, quando de facto não o é»”.

E o que Santo Agostinho tem a dizer quando confrontado com tal desacordo é por demais eloquente:

Devemos provar que tudo o que se pode verdadeiramente demonstrar como verdadeiro na natureza física não está em oposição com as nossas santas Escrituras, e que tudo o que, nas suas obras, dizem ser contrário às Escrituras – ou seja à fé católica – devemos nós, ou provar, tão perfeitamente quanto possível, que é rotundamente falso ou pelo menos crer que o é.

E acrescenta o papa: “Que os sábios se convençam lealmente que Deus, Criador e Governador de todas as coisas é também o Autor das Escrituras e que, por conseguinte, nada se pode provar, nem por meio das ciências físicas, nem pela arqueologia, que seja realmente contrário às Escrituras”. (Encíclica Providentissimus Deus).

Como nos recorda E. C. Messenger (de onde venho retirando estes ensinamentos), “vinte e três anos antes, em 1870, o concílio do Vaticano tinha solenemente proclamado a impossibilidade de desacordo entre a fé e a razão humana. Pode, é certo, haver a aparência de uma contradição, mas isso só pode provir do facto de a fé não ter sido bem compreendida e bem interpretada, segundo o espírito da Igreja, ou de se terem tomado por certezas o que não eram senão opiniões humanas” (o sublinhado é meu).

(citado de “A Origem do Homem segundo o Livro do Génesis”, por E.C.Messenger, incluído na 3ª edição da tradução portuguesa do volume organizado por Jacques de Bivort de la Saudée, “ESSAY SUR DIEU, L’HOMME ET L’UNIVERS”, Lisboa, 1957, com Imprimatur de Emmanuel, Episcopus Prienensis, de 06 de Junho de 1953.)

Perante tal impossibilidade de desacordo, postulada por tão alta autoridade como é o papa (e desde já manifesto que não admito como argumento a facciosa separação entre religião e autoridade religiosa enquanto instituição – veja-se o caso do Islão, que não tem uma autoridade central como o papa católico), e atentando na irreconciliável representação que religião e ciência fazem do mundo, afigura-se-me como inegável que foi necessário o abandono da fé, como lente de estudo do real, para que pudesse surgir o fantástico, como criação do espírito humano, e se não mesmo como instrumento de substituição do sentimento do maravilhoso que a fé proporcionava. É sintomático que aquilo que vulgarmente designamos por first science fiction, se caracterizasse pelo sense of wonder, já não perante o divino, mas perante a natureza revelada pelos novos instrumentos científicos, e a tecnologia que estes permitiram desenvolver.

Tal abandono da fé, cujo paradigma poderíamos buscar nos destinos discordantes de Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, traduziu-se, in essentia, na compreensão de que deus – e, consequentemente, a religião – deixou de ser necessário, como na equação de Laplace, para que a sociedade definisse e adoptasse um comportamento ético ainda que não sancionado por um ente superior distinto do próprio Estado.

E só num tal ambiente social, onde a “verdade” deixa de estar sujeita ao selo divino, e a própria ética se revela como constructo social, é possível explorar mundos alternativos, como projectos de distintas sociedades, laboratórios comportamentais, ou como palco de puro e simples entretenimento.

Tudo o mais, é arriscar a fogueira…

quinta-feira, 5 de julho de 2007

TRINTA FANTASMAS


Poucas passagens das páginas da FC serão tão assombrosas e evocativas quanto as palavras iniciais da novela que Arthur Clarke escreveu baseada no argumento homónimo que assinou com Stanley Kubrick para 2001: A Space Odyssey (1968):


Behind every man now alive stand thirty ghosts, for that is the ratio by which the dead outnumber the living. Since the dawn of time, roughly a hundred billion human beings have walked the planet earth”.

Cito directamente da edição da Arrow Books (Londres) de Outubro de 1968. Lembrei-me desta passagem a propósito de um texto que se lê no Público de hoje, emanado do ócio de Helena Matos.

E escreve a articulista: “O que importa é que nessa instituição milenarmente sábia que é a Igreja Católica (católicos ou não, todos temos de convir que instituição alguma existe tanto tempo sem uma forte sabedoria)…

Ressinto-me desde logo do imperativo categórico. Não, não temos que convir nada disso, como o mais discreto conhecimento da História permite apurar.

Aliás, e porque a obra é recente, recomenda-se a leitura atenta de GOD IS NOT GREAT (Twelve, New York, 2007) de Christopher Hitchens, um atlas sintético e tranquilo, sem histrionismo ou drama desnecessário, da irrecuperável estupidez do fenómeno religioso, transversal aos cinco continentes e a todos os períodos da história.

Hitchens, que em 1997 já demolira impiedosamente, a golpe de argumentos sérios e provas irrefutáveis, o mito daquela figura sinistra e hipócrita que dava pelo nome de Teresa de Calcutá (The Missionary Position – Mother Teresa in Theory and Practice) apresenta-nos agora um documento magnífico, redigido no inultrapassável estilo coloquial a que já nos habituou, onde, martelada a martelada, vai fazendo ruir os ídolos bafientos das três grandes religiões monoteístas, sem poupar episódios tremendamente elucidativos de outros cultos menores (incluindo como no Sri Lanka chegou, por um dia, a encarnar uma pseudo-divindade).

Bastaria recordar alguns dos episódios que nos são narrados (desde Bartolomeu de las Casas a escrever sobre o massacre dos ameríndeos, até às mais estúpidas e recentes afirmações do Vaticano quanto ao uso de preservativos e pesquisas em células estaminais) para descobrir como pôde uma instituição como a Igreja Católica existir durante tanto tempo: sabendo colar-se ao poder secular, quando não mesmo sobrepondo-se a ele.

Se desde A.D.313 gozou do beneplácito do Império, e governou senhora da Europa durante a Idade Média, servindo-se das mais sujas manobras da política secular, das mais sangrentas guerras e das mais sórdidas torturas, soube também sobreviver ao ímpeto imparável do Iluminismo e do pensamento científico, pondo-se cautelosamente do lado do poder, fosse ele assegurado por Napoleão, Hitler, Franco, Salazar ou Mussolini. E, não se podendo aliar abertamente a ele, soube calar para partilhar desse mesmo poder, quando nas mãos do Papa Doc, de Suharto ou do Ayatolah Khomeini (cuja fatwa sobre Salman Rushdie foi tolerada e compreendida pelo Vaticano).

Deixou atrás de si um rasto de sangue e obscurantismo, um exército de fantasmas espezinhados, queimados na fogueira ou deserdados pelo conhecimento científico e médico que sucessivos papados foram perseguindo, destruindo ou ocultando.

Hoje, onde cumpre pouco mais do que o papel de palco e adereço para novelas medíocres de Dan Brown, vive agarrada ao ventre dos estados laicos, mendigando isenções fiscais e tributárias (que, a serem levantadas, significariam de pronto o seu fim) e procurando insinuar-se insidiosamente nos currículos académicos, nos laboratórios científicos e nas cadeiras dos parlamentos, procurando perpetuar, por decreto ou fraude intelectual, aquilo que a realidade já lhe não permite.

Leva, ao fim e ao cabo, a existência, ainda gorda e ainda rica, de uma ténia, criatura que existe também há fartos milhões de anos, embora ninguém lhe reconheça, por isso, especial sabedoria.

AOS BRONCOS, AS ESTRELAS

Os portugueses descobriram relativamente tarde o prazer asséptico dos centros comerciais. Quando Belmiro de Azevedo, epítome do português moderno e de sucesso, introduziu esses vastos espaços fechados na realidade nacional, eram já modelo praticamente abandonado na Europa dita civilizada. Mas os portugueses são assim: mal tomam o gosto a uma coisa, entregam-se totalmente; é um abandono deleitoso, um entusiasmo primaveril que se prolonga pela sua existência (atente-se na profusão de rotundas, outro exemplo de descobertas tardias e ultrapassadas mas recebidas como uma nova parúsia). É a alma nacional, sempre cheia de “saudade” e “casas caiadas”.

E na verdade é vê-los pelos corredores apinhados, sob as luzes inclementes, sob o céu esquálido de chapa enrugada e polímeros plásticos, entrando e saindo de cubículos onde Quasímodo teria dificuldade em voltar-se, carregando sacos pesados, caminhando quilómetros que se recusariam a percorrer numa rua a céu aberto, sob o azul celeste e as nuvens pachorrentas.

Certa vez, ouvi um grupo combinar a passagem de um dia inteiro num shopping recém inaugurado, como quem prepara um piquenique ou uma excursão de fim-de-semana.

Depois ocorreram-me as palavras do cosmonauta russo Valery Ryumin: “Estão reunidas todas as condições necessárias para o homicídio quando fechamos dois homens numa cabina, e os deixamos lá sozinhos durante dois meses”.

De acordo com Mark Shepanek, que em 2001 era director do departamento de medicina aeroespacial da NASA (citado pela revista “Discover”, Vol. 22, nº5, Maio de 2001), o maior desafio que os futuros colonos espaciais terão de enfrentar serão psicológicos: mormente o isolamento num espaço limitado e durante um longo período de tempo.

Embora as grandes naves-geração da FC estejam ainda longe das possibilidades de concretização, e da própria vontade política, se o entusiasmo pelos ambientes artificiais for um indício, os portugueses ainda poderão ditar cartas na conquista espacial.

Que bom português resiste a um shopping?

segunda-feira, 2 de julho de 2007

A SECOND CHANCE AT EDEN



Harlan Ellison® pintou-o como um actor obcecado com quantas deixas Leonard Nimoy teria a mais que ele, antes de ser o primeiro a arruinar o argumento de “The City on the Edge of Forever”.

Herbert Solow disse dele: “Hired as the star of the show, paid as the star of the show, and billed as the star of the show, he somehow thought he was the star of the show”.

Nimoy, descreveu-o como “extremely hard working, extremely well prepared, and totally professional, but at the same time, he brought with him a great deal of zest and passion about work, food, his Dobermans, his cars, his life… (…) And he has a prankster’s sense of humor”.

Amado e odiado, William Shatner logrou, com o papel de James Tiberius Kirk, ascender ao selectivo panteão dos ícones da cultura popular do Século XX.

Um cometa que atravessou os céus televisivos entre 1966 e 1969, três anos que mudaram o mundo, antes de se apagar no setentrião de filmes eminentemente olvidáveis (Kingdom of Spiders, apesar da arrepiante beleza do seu final silencioso), séries de televisão esquecidas (T.J. Hooker, 1982-1986) e a ligação aos respiradores do pálido renascimento de sete longas-metragens que recuperaram a franchise, um punhado de novelas escritas por mãos alheias e a presença fantasmagórica como guest star em cansadas horas televisivas.

E a música, claro, do kitsch ao surpreendentemente bom…

Mas para um actor, é sabido, não há nada pior que as grilhetas que o prendem aos seus avatares. Kirk deu-lhe a fama, mas era também o penedo que o puxava cada vez mais para o poço onde caem as almas dos homens sem nome.

E eis que, quando menos se esperava, Shatner recuperou um nome… Denny Crane.

Assim mesmo, repetido com toda a insistência, em qualquer lugar e no momento mais inesperado. Denny Crane.

Denny Crane costumava ser o melhor advogado da cidade de Bóston; o Alzheimer que lhe começa a corroer o cérebro ameaça derrubá-lo do topo do pedestal, rodeado por jovens e velhos aspirantes ao título; tal como Shatner, o maior adversário que tem que enfrentar é a memória de si mesmo. I know they think I’m going crazy. That’s why I do crazy things. This way, they never know if I’m just kidding. E como Kirk tinha o seu Spock, Denny Crane tem Alan Shore, papel que James Spader desempenha de forma brilhante;

Boston Legal vai na terceira temporada no seu país natal, acaba de ver a primeira editada em DVD entre nós (para os que não gostam de esperar, a segunda já está disponível no mercado norte-americano) e é a mais irreverente, inteligente, pungente e acutilante série de advogados alguma vez produzida.

Poucos actores tiveram a rara oportunidade de se tornarem por duas vezes, ícones da cultura popular. Kirk despiu a camisola amarela e vestiu o fato Armani. Para quem viajou pelas estrelas, há que aparecer bem vestido às portas do paraíso.

Um dia, alguém há-de perguntar a São Pedro: Quem é aquele com o das orelhas bicudas? E São Pedro há-de responder: Aquele, oh, é deus. Mas tem a mania que é o William Shatner.

domingo, 1 de julho de 2007

QUEDA LIVRE

Lê-se na Actual de ontem, pelo punho de V.B.M. e a propósito de “THE BRIDGE” (2006) de Eric Steel:

O filme, com as câmaras apontadas aos suicidas da ponte Golden Gate, em São Francisco (…) aproxima-se da morte com o pudor com que um abutre sobrevoa a promessa de um cadáver. Procurem: não encontrarão movimento de câmara mais abjecto dos que as panorâmicas que vão da ponte às águas do Pacíficol para transformar a morte num número de circo”.

Donde se comprova que ainda há críticos que voltam o rosto à passagem da verdade.

FESTIVAL DE PECADOS CRISTÃOS


Edward Lee (Lee Edward Seymour, n.1957) começou a escrever em 1982 com "Nightbait", sob o pseudónimo Philip Straker. Desde essa data até hoje, publicou uma boa vintena de obras, caracterizadas pelo extremismo gráfico da violência e pelo recurso desabridoa situações sexuais. Em 2005 publicou este "Flesh Gothic" pela Leisure Books (ISBN: 0-8439-5412-4, 404 páginas).


Há algo de orgânico num enorme casarão, algo que, como nos dizia Shirley Jackson, vagueia solitário pelos corredores vazios. A casa assombrada foi um dos elementos essenciais que o Gótico veio introduzir nos cânones do horrível. O espectro do monarca traiçoeiramente deposto que habita ainda as paredes manchadas de sangue em busca de justiça. Há sempre uma situação cuja resolução não foi ainda obtida, que ultrapassa as barreiras do tempo na prisão de um espaço excêntrico; porque, nestas casas assombradas, filhas de uma concepção vitalista da natureza, é a irregularidade do espaço que nos dá o primeiro sinal de que aquela casa se encontra ‘animada por um poder que gera perplexidade nos seus habitantes e em quem a visita’ (Manuel Aguirre, The Closed Space). A arquitectura, e a geometria são como estigmas diferenciadores, seja o ‘longo labirinto de trevas’ do Castelo de Otranto, ‘o lugar de orgulhosa irregularidade” de Udolpho, ou a casa onde ‘nenhum ângulo se mostra verdadeiramente correcto’ como Hill House.

Que Edward Lee trata aqui de uma casa assombrada é algo de que o leitor se apercebe ainda antes de o seu narrador nos dizer que a “The mansion looked maniacal" (pag.37). A belíssima ilustração de capa de Erik Wilson, em biliares tons de magenta, mostra-nos as águas furtadas de uma mansão Eduardiana, com sinistros gárgulas empoleirados nos beirais como anjos petrificados prestes a ganhar vida. E o título, Flesh Gothic, intima a uma confluência da casa assombrada e da mais visceral orgânica da carne pois, como rapidamente nos aperceberemos ao mergulhar na leitura, é de pecados carnais que se trata, mais do que da carne que ornamenta as montras dos talhos, a qual não é escassa nas páginas ensanguentadas deste livro. Do que o leitor não se aperceberá imediatamente é de que Lee aponta para uma nova concepção de casa assombrada, quiçá não revolucionária, ou mesmo totalmente inovadora, mas porventura tão pobremente explorada que lhe permitiria a construção de um clássico menor do género; mas Lee parece não se aperceber disso (ou, apercebendo-se, descarta a oportunidade por uma mais comercial exploração do tema por si escolhido), perdendo mão da ideia a pouco mais de metade da obra, deixando-a contorcer-se-lhe entre os dedos e escapar-lhe por completo rumo a um mais confortável nicho de familiaridade. O mesmo é dizer, o leitor apenas tarde de mais se aperceberá que o Lee que escreveu Flesh Gothic, não é o mesmo que assinou The Teratologist (2003), ou pequenas pérolas como “Mr. Torso” (1994).

E, no entanto, tal facto devia ser evidente desde as primeiras páginas, onde Lee abdica desde logo de qualquer subtileza, rasgando-nos de imediato a realidade quotidiana para permitir que hediondas sugestões de um mundo para além do nosso espreitem momentaneamente pelas frestas assim abertas; uma sem abrigo que se degola imediatamente após entregar uma sinistra mensagem, possui ‘dentes podres como comprimidos estragados’ (rotten teeth, like corroded pills, pag.7), o que não é uma metáfora muito imaginativa, ou sequer expressiva. Tal como não o são os muitos e familiares omens que desde o Exorcista (1973) têm povoado o imaginário sobrenatural; o bêbado que revela um inexplicável conhecimento da vida privada dos personagens, as vozes dos mortos que se fazem ouvir em gravações de salas vazias, ou os mais diversos figurantes que se apresentam como mensageiros do além.

A história conta-se entre o prólogo e o epílogo (não é assim com todas as histórias?), desenhando-se numa analepse que pretende unir os fios condutores da partida e da chegada; quando o livro se abre, notamos desde logo uma fixação com a fecundidade. Um homem e uma rapariga, ele cinquentão, ela adolescente grávida, fogem como sombras pela geografia americana, cuidando de não deixar rasto de cartões de crédito, de identificações pessoais, de passado. Lee entrega-nos desde logo à chuva de Seattle; a intempérie faz com que o mundo se assemelhe a um aconchegante e ameaçador saco amniótico, as águas prontas a rebentar. Poucos livros serão tão líquidos como este, e certamente nenhum de que agora me recorde, tal é a profusão de sangue, esperma, visco, suor, gordura e mesoplasma que escorre das suas páginas. Rara é a circunstância em que algum personagem se não encontre coberto de líquido ou em contacto com ele – afinal trata-se de um livro quase pornográfico, sobre pornografia, no qual o suor, o sangue e o ejaculado desempenham papéis primordiais. E que curiosa ironia que o homem sem nome, que no longo parto da analepse vai desempenhar um papel essencial (dentro dos parâmetros que à frente discutiremos), seja um ex-alcoólico, agora abstémio (de alcóol e de sexo), que consequentemente não ingere nem expele nenhum dos líquidos do prazer pecaminoso, nenhum dos néctares das flores do mal. Quando o conhecemos ele olha para a rapariga, ‘uma imagem tremendamente erótica (…) vestida apenas em cuequinhas e soutien. (…) O soutien era demasiado apertado, dado o crescimento pré-natal; os seios ameaçavam saltar para fora’ (pag.1-2). A rapariga, ainda sem nome, assemelha-se a uma primeva deusa da fertilidade, cultuada desde logo pelo careca mal apresentado que os aborda nas escadas do flea motel onde se abrigam (Hey, man. I saw that cute little pregnant chick you brought in. I’m into that too, you know? What’s she charge for an hour?). Um culto humilhante, redutor, que no entanto serve de prenúncio ao que se segue. E o que se segue, é o longo período de gestação da analepse, que se inicia com o revelador Nove meses atrás…

A narrativa divide-se numa clássica estrutura de três partes. A primeira, SLAUGHTER NIGHT, a Noite do Massacre leva-nos de imediato ao cenário de pesadelo que foi Hildreth Mansion, naquele três de Abril, pelos olhos de Faye; Faye é-nos apresentada em fragmentos, tal como ela se percebe a si própria em fragmentos, gorda e nua (mais um símbolo de fertilidade neolítico de forte carga significativa), viajando pela casa sob o efeito de drogas. O seu percurso, pincelado em tons de sangue, recorda um filme de John Waters em que a cinematografia fosse assinada por Delacroix. O nosso périplo, arrastados que somos pela divindade fecunda, inicia-se por uma orgia, onde Faye recebe vários pénis na boca, é levada ao orgasmo por uma mulher, tem uma arma apontada à cabeça, que ignora se disparará por simpatia, por imitação, quando o felattio atingir o seu fim natural, uma dupla ejaculação de fogo e morte. A simbologia de vasos transmissores, veias e canais, repete-se pelos corredores da casa por onde Faye deambula, um corredor de corpos mutilados, a crueza de pisar um testículo arrancado do casulo escrotal. As descrições são brutais, sujas, inestéticas. Quase podia dizer-se que desprovidas de poesia. Lee assemelha-se a um Bosch descrevendo os horrores do Inferno como mentes mais simplistas gostam de o imaginar: a morte como caricatura do humano. Caricatura que atinge o seu apogeu (o apogeu da jornada de Faye) nas entranhas da própria casa, onde as paredes são feitas de carne, como já antes o foram no imaginário de Clive Barker e naquela outra cidade, de Luís Filipe Silva.

Hildreth Mansion é o cenário e a principal personagem da narrativa, como não pode deixar de acontecer em qualquer conto de espaços assombrados; o espaço é o motor da história mas, como nos recorda Joe Haldeman no seu recente Old Twentieth (2005, publicado entre nós pela Europa-América com o título O Velho Século XX), ‘se o cenário não for credível, as acções das personagens carecem de significado’. E o significado da acção centrar-se-á nos acontecimentos que nos foram truncadamente descritos naquelas primeiras sete páginas, naquela orgia apocalíptica, quase se diria holocaustica, onde as duas tensões máximas, do prazer sexual e da morte, encontram uma dimensão transfigurativa: num universo prenhe de almas incorpóreas, são as acções puramente físicas, da cópula, do desmembramento, e da morte, que conferem sentido ao novum. A orgia inicial repetir-se-á, fragmentada, ao longo da restante trama narrativa, mementi morii que exsudam das paredes da mansão, como uma pulsão para a representação de tais actos num ritual inconsciente. A casa gótica é um cenário vivo, ideia que Lee reforça ao equipar Hildreth Mansion com câmaras, microfones e intercomunicadores que tornam o espaço multifacetado numa paisagem sensória inescapável. Hildreth Mansion é, assim, a primeira personagem que nos é apresentada, exigindo que as demais a complementem de forma satisfatória, individualizada, e reactiva.

E é aqui que o controlo da narrativa começa a escapar das mãos do autor. Porque os demais personagens, quatro psíquicos, um escritor e dois ex-porn stars, são pouco mais que figurantes nas mãos daquele que, esquecido do papel discreto que se lhe impunha, assume o papel de personagem determinante: o narrador impessoal e omnipresente. Chamados por Vivica Hildreth, viúva do organizador do massacre ritual, ao cenário/personagem de Hildreth Mansion para investigar os acontecimentos daquela noite fatídica, são-nos sucessivamente apresentados Westmore, o escritor ex-jornalista alcoólico, Nykvysk, o ex-padre homossexual e exorcista, Adrianne, a psíquica especialista em OBE (out of body experiences), ex-militar onde serviu para encontrar Saddam Hussein durante a Gulf War II, a sensual Cathleen, igualmente psíquica, telequinética e ex-estrela de televisão, Willis, uma espécie de Johnny Smith, ex-médico, que padece de visões através do tacto, Karen e Mack, dois ex-porn-stars e, agindo por conta própria, Clements, o ex-polícia obcecado com o desaparecimento da jovem Debbie Rodenbaugh, que está convencido se encontra prisioneira na casa juntamente com um aparentemente morto Richard Hildreth. Todos eles são ex-qualquer coisa, sobras daquilo que já foram. Sombras em busca de identidade, de uma identidade que lhes dê consistência. De certa forma, são menos do que a própria casa que se nos apresenta, ab initio, como possuindo um corpo carnal, um espírito, uma vontade. Ultrapassado o sexo e a morte (todos são de alguma forma afligidos por disfunções sexuais, que impõem uma abstinência orgásmica ou um excesso carnal), estão às portas de uma nova ressurreição, ainda em vida, e a sua experiência em Hildreth Mansion pode ser o gatilho desse momento determinante. Como qualquer leitor minimamente atento saberá desde logo – desde o prólogo – Hildreth Mansion não lhes possibilitará tal renascimento.

A moderna casa assombrada não é já meramente habitada por espíritos irrequietos, é ela própria uma entidade viva. Predatória. Que devora aqueles que percorrem os seus corredores. The Haunting of Hill House (1959) de Shirley Jackson, Hell House de Richard Matheson (1971), Burnt Offerings (1973) de Robert Marasco, The Shinning (1976) de Stephen King ou The House Next Door (1978) de Anne Rivers Siddons tornaram tal facto num arquétipo da moderna literatura de Horror. Mas talvez ninguém o tenha dito de forma tão clara como Herman Raucher em Maynard’s House (1980): ‘Faz parte da natureza da casa absorver os seus ocupantes, como que mantendo-os vivos para sempre’. Hildreth Mansion, tal como as suas antecessoras, é um parasita (They will turn that house into a great big mouth, that’s gonna eat you. It’s gonna suck you all down and swallow you, p.315). Se o castelo Gótico era assombrado por espíritos em busca de justiça, pela vital incompletude que as paredes retêm como moscas em âmbar, a moderna casa assombrada ganha a sua vitalidade animista pela absorção transfiguradora das pulsões dos seus ocupantes (‘I think that an atmosphere like this can find out the flaws and weaknesses in all of us, and break us apart’, Shirley Jackson, Hill House, pag.105). E as falhas e fraquezas dos presentes ocupantes de Hill House, tal como daqueles no seu passado, prendem-se com o sexo. O sexo em todas as suas formas e expressões. Na casa de Hildreth respira-se uma atmosfera de pan-erotismo. Um dos encarregados da limpeza da mansão diz sentir uma sensação estranha quando está na casa.

Like you’re in a graveyard and someone is watching ya… (sugere o seu companheiro).
Mas não. É algo mais prosaico.
(Sometimes) I’d feel horny. I’d be standing there scrapping dried blood and guts off the floor in a room where a bunch of people were murdered, and I’d pop a woody (p.28).

Karen entrega-se a um banho de sol com o fato de nascimento no pátio da mansão, de uma mansão cenário de orgias registadas nos milhares de DVDs pornográficos que se multiplicam pela casa; ‘a fonte tinha sido desligada, um gárgula com a boca seca que parecia olhar para ela concupiscente' (pag. 219). Quando Cathleen se despe no cemitério, ‘her innerself felt something stir at once, some thing beyond her. Seikthis or Lieppyas – benevolent spirits which inhabit trees or congregate near graves – or simple curious wraiths attracted to her sudden nudity. Ghosts, or even buoyed souls’ (p.108). Todo o universo, visível e invisível aparece como voyeur, como se manifestasse um desequilíbrio entre a reprodução e a morte.
Mas é sinal da fraqueza de Lee como autor que tudo isto pareça mais interessante do que realmente é. Desde o primeiro momento em que põe os pés na casa, qualquer pretexto é bom para as personagens se despirem (à semelhança, porventura, das narrativas pornográficas que, por um motivo ou outro, são constantemente reproduzidas no leitor de DVD); todas as personagens femininas (e algumas masculinas), são, à vez, submetidas a ‘para-planar rapes’, uma expressão interessante para uma queca inter-dimensional, tal como foram popularizadas pelo The Entity de Frank deFellitta em meados dos anos 70. Mas se as provações de Carlotta Moran, eram enriquecidas pela angústia que sublinhava o autêntico carácter de violação, as personagens de Lee, tal como as dos filmes porno, parecem retirar do sexo forçado um sensação de normalidade e satisfação. A tal ponto que, a partir de dado momento, se nos torna difícil não imaginar a suculenta Uschi Digart no papel de Karen, Cathleen ou Adrianne, esperando que a qualquer momento uma mão se projecte de uma caixa de música para explorar um busto mais avantajado, ou os lençóis da cama se animem numa cópula onírica e perfeitamente recompensante, tal como em The Toy Box (Ron Garcia, 1971).

E, com a presença dos investigadores paranormais, Hildreth Mansion tornou-se ela própria uma simbiótica caixa de brinquedos; as aparelhagens que buscam registar a actividade paranormal são brinquedos caros para Nykvysk e companhia, tal como Nykvysk e companhia são brinquedos para Hildreth Mansion. E se nós conhecíamos a personagem principal apenas através da descrição fragmentada que recebemos dos olhos de Faye (que, na altura não sabíamos ainda, nos mostrava tanto a mansão como o Chirice Flaesc), tal como conhecemos todos os outros através de reflexos em superfícies polidas, como se não pudéssemos olhar directamente para a verdade que se oculta em cada um deles, compete à investigação levada a cabo, ao moroso processo de colagem de impressões ilusórias da sensosfera circundante, construir a personalidade desta moderna casa assombrada. E Hildreth House surge-nos como uma personagem com um passado negro, que iniciou a sua carreira como centro de acolhimento para clérigos que sentiam uma atracção doentia pelos paroquianos mais novos, perdeu a juventude como concorrido bordel, e chegou às mãos de Hildreth que a tornou sede de uma produtora pornográfica, palco de orgias de sexo e sangue, a mansão é menos do que uma habitação, uma psicobomba latente, desperta pela actividade, pelos desejos, pela luxúria de quem nela penetra. E penetra não é tanto um trocadilho sem graça, como uma descrição precisa do processo de gestação que a própria casa atravessa nos nove meses que separam o começo do fim.
Posto tudo isto, não surge como nenhuma surpresa a “descoberta” de que Hildreth pretendia criar uma casa assombrada, um templo interdimensional para adoração de Belarius, o Sexus Cyning, o Lorde da Carnalidade. Aqui Lee intersecta a narrativa deste Flesh Gothic com o universo (sólido, consistente e obscenamente divertido) dos seus anteriores City Infernal (2001) e Infernal Angel (2003), deixando que as paredes entre mundos se adelgacem um pouco para nos revelar um imaginário sangrento, um bestiário teratológico assombroso e um humor macabro e delirante (um ponto particularmente bem conseguido mostra-nos o espírito descarnado de Adrianne sugado pelas narinas de um demónio, absorvido pelo seu organismo e ejaculado na boca de uma cortesã infernal; ao fim e ao cabo, uma súmula do processo digestivo, transfigurador a que a própria Hildreth Mansion pretende submeter os nossos heróis). Mas isto passa-se já na segunda parte do livro, a adequadamente baptizada CARNAL HOUSE, e nessa altura é já demasiado tarde para salvar o que está perdido. E a responsabilidade de tal facto recai unicamente sobre o fascínio que Lee sente pelo seu mundo Infernal, e a pouca atenção que dedicou a coisas tão secundárias como enredo e personagens. E nem os mistérios dentro de mistérios, embrulhados num enigma, que se apresentam sob a forma de um corpo num caixão, um pedaço de papel num cofre e uma adolescente desaparecida são suficientes para soprar vida na história assoberbada pelos excessos sexuais das personagens. Primeiro porque estas parecem perdidas no meio da parafernália paranormal de leituras iónicas, EVPs, OBEs, subincarnados, revenants, alucinações tácticas activas e passivas, adiposians, etc…, que não lhes deixam tempo para mais do que infinitas discussões pseudo-académicas, comiserações inanes e uma incompreensível propensão para, numa casa onde cada divisão está sujeita a controlo audiovisual, nunca olharem para o monitor quando alguém é violado, morto, ameaçado ou esquartejado, tomarem iniciativas sem informar os restantes elementos do grupo ou, simplesmente, receberem todas as informações necessárias, em cima da hora e por deus ex maquina (no caso um investigador privado que Westmore contratou).

Assim, quando entramos finalmente no mundo do TEMPLE OF FLESH, o Chirice Flaesc, a própria narrativa parece responder à parada de clichés que Lee fez desfilar pelas suas cinquenta páginas, incluindo traições e revelações dignas do mais banal thriller de televisão, com um dos mais significativos finais anti-climáxicos de que há memória na literatura de horror. O que nos leva a Seattle, nove meses depois…, e a uma conclusão previsível, embora engenhosa…
Gostava que Lee tivesse injectado mais vida, mais conflitos nas suas personagens; Willis e Mack têm algo no passado que os inimiza, mas tal inimizade não desempenha qualquer papel na narrativa. Os remorsos de Nykvysk pela morte de um jovem amante que não teve a coragem de abraçar são inoperantes como ponto fraco que o tornasse mais permeável à influência demoníaca da casa, e as mulheres são apenas apetitosas desculpas para delírios carnais do autor. E o próprio Reginald Hildreth necessitava de mais consistência para que fosse mais do que uma sombra indistinta que surge aqui e ali como um brincalhão jack-in-the-box… Face à engenhosa solução final, um arabesco lateral que confere um traço de niilismo à narrativa até agora tão banal, somos forçados a concluir que Hildreth, Westmore e companhia eram tão necessários à história que Lee nos queria contar como uma lanterna à luz do dia.

Em abono de Lee deve reconhecer-se desde já que é difícil escrever um livro de horror eficaz quando se introduzem elementos de sobrenatural desde a página 7. Kingsley Amis conseguiu-o com The Green Man, onde um fantasma surge na página 4, mas tal como já Jane Austen compreendera em Northanger Abbey, o horror é um dos meios privilegiados de subversão das convenções sociais, para tal, é necessário que o quotidiano que nelas assenta seja reconhecível desde logo. Sem a subversão da realidade, não existe o verdadeiro horror. Apenas o grotesco. E o grotesco de Lee funcionou maravilhosamente em City Infernal e Infernal Angel, porque as duas realidades, quotidiana e infernal, funcionavam em planos distintos, sendo que apenas os raros Ethereals conseguiam atravessar a fronteira entre elas. Da normalidade, viajávamos até uma irrealidade dantesca, uma grotesquerie caricatural de hiper-violência. Mas aqui, em Flesh Gothic, o cómico mórbido de imagens como a da cabeça colocada numa prensa até que os miolos esguichem pelos olhos, narinas e orelhas, casa mal com a realidade, em que se insere, do nosso mundo cinzento de prostituição, drogas, violação, gravidez adolescente, abortos, corrupção, scat, e golden ou Herschey showers…Em última instância, toda a narrativa foi construída para Lee poder mostrar o seu mundo infernal; só que quando o leitor espreita por trás dos monstros e papões, compreende que estes são apenas homens em fatos de borracha, e os personagens seguiram o guião ingrato, que não lhes dava qualquer papel.

A INDEFINÍVEL ESSÊNCIA DO SER

Muitos foram os que tentaram definir os géneros do fantástico. Da ficção científica, disse Frederik Pohl ser “uma forma de pensar sobre as coisas”. É uma preposição vaga mas não isenta de virtudes. É a forma de ver as coisas desde a perspectiva dos anjos.

A ficção científica postula a inevitabilidade da diferença e a imanente contingência do real, diferença e contingência essas apenas alcançáveis através do método e do conhecimento científicos. Pessoalmente, gosto de pensar na ficção científica como a manifestação lúdica da Ciência.

O que a separa da Fantasia, enquanto substituto racional do pensamento mítico-religioso com todas as ressonâncias culturais e psicológicas que tal asserção implica. A Fantasia pressupõe uma substituição do real por uma lógica distinta e impossível, da qual não se exige mais do que a coerência interna dos seus próprios postulados.

O Horror, liberto que vem sendo das suas raízes góticas, funciona melhor como modo transversal a todas as manifestações artísticas e culturais da humanidade. É a mais sublime expressão do niilismo do humano definitivamente despido das aspirações divinas. E nunca como sob o olhar mórbido do horror, foi o Homem tão humano.

Nenhum destes géneros poderia ter surgido sem o abandono da fé religiosa.
O Fantástico é filho orgulhoso da modernidade e do iluminismo.

CAN YOU HEAR ME MAJOR TOM?

A literatura de ficção científica, animal difícil de classificar, de domar, de compreender, vem de longo trotando com o lombo marcado pelo ferro incandescente do escapismo. A altiva Literatura olha-a de soslaio, incomodada pela presença do intruso maltrapilho e brincalhão que dos seus andrajos coloridos, de cara ao vento que sopra do amanhã, envergonha o grande projecto jamesiano de imortalizar o presente em catedrais imperecíveis.

Escapismo. Fuga. Aceleração. Onze mil quilómetros por hora. Velocidade de escape. A FC não come da madelaine de Proust. Ground control to Major Tom. Take you protein pills and put your helmet on. Commencing countdown, engines on.

Como Clute, nascemos demasiado cedo, num planeta à beira do futuro, com o peso insuportável da Terra a agarrar-nos os calcanhares. Somos a primeira geração a quem foram prometidas as estrelas e a quem foi mostrado o berlinde azul suspenso no vazio deixado pelo cadáver de deus. Somos os primeiros despojados do futuro, os cegos a quem foi removida a venda, a quem foi revelado o amanhã heisenberguiano. Somos a primeira geração que pretende regressar às árvores, para assim se aproximar do céu.

Literatura de escapismo, de libertação da gravidade, da chama incandescente dos gafanhotos de prata.

Há dois tipos de literatura: de costas vergadas para o solo; e de olhos fixos nas estrelas, sentindo a Terra sob os pés, como uma gigantesca grilheta.
Presos gritamos ao céu nocturno: can you hear me Major Tom? Can you?