terça-feira, 1 de julho de 2008

Blade Runner Ano 2: O Ano Pulp



Pois é. Quase sem darmos por ela, o Blade Runner cumpre hoje o seu primeiro aniversário. Ao contrário do que é normal, não vou fazer nenhum balanço do ano que passou. Aliás, os escassos 62 posts mal o justificam. Dizer apenas que foi um ano de experiência, de tentar descobrir como exprimir todos os meus interesses pessoais num blogue que queria essencialmente temático, procurando ao mesmo tempo prestar algumas informações relevantes quanto ao (ainda) tão mal-tratado Fantástico. Voltada esta página, começa hoje o segundo ano de actividade, que procurarei ser mais frequente e com actualizações mais relevantes. E, como tinha prometido num post anterior, o ano de 2008-2009 vai ser principalmente dedicado à pulp fiction.

E à pulp fiction em todas as suas vertentes: literária, televisiva, cinemaográfica, radiofónica e (nalguns casos contados) na banda desenhada. Usualmente associada ao entretenimento pouco exigente, escapista, voltado para a acção e a aventura, brutal, violento, racista e sexista, a ficção pulp tem ínsita uma riqueza de imaginação que lhe vem assegurando um fascínio insuperável ao longo dos últimos noventa anos. É certo que, folheando hoje as aventuras de Doc Savage, e confrontados com a violência dos seus conteúdos, estranhamos como pode essa revista ter sido concebida para crianças e jovens adolescentes; mas, ao mesmo tempo, confirmamos esse alvo demográfico pela forma expressa e enfática com que Kenneth Robeson afasta qualquer interesse sexual do Homem de Bronze, em construções frásicas cuja leitura nos embaraça, pois são de um homoerotismo latente.

No entanto, a ficção pulp, com os seus heróis perfeitamente recortados, os seus vilões incontornavelmente sinistros, as suas claras posições morais e moralistas, cumpriu uma função essencial num período histórico difícil, nomeadamente, a Grande Depressão dos anos 1930 (período que ficou para sempre associado ao visual e à iconografia pulp). Foi a década da ascenção dos regimes fascistas na Europa, das filas da sopa na América, dos gangsters e do New Deal. Foi igualmente a época em que os preços do entretenimento fizeram que a literatura pulp, barata de produzir, fosse a forma mais acessível de entretenimento e escapismo. A revolução industrial tinha democratizado a literatura, e a lei da oferta e da procura rapidamente gerou as obras que eram acessíveis a uma classe operária recentemente alfabetizada mas sem a capacidade de entender (ou suportar) as obras mais "eruditas" da literatura canónica.

Foi em 1896 que Frank Munsey decidiu dedicar a revista que publicava (The Argosy) unicamente à ficção popular. Para tanto resolveu servir-se do papel à base de polpa de madeira (processo desenvolvido por Friedrick Gottlob Keller em 1844 e popularizado em finais do século XIX), bastante mais barato, espesso, poroso e pouco durável, para criar aquela que foi a primeira revista pulp.

Como consequência directa, o tipo de literatura dado à estampa nessas revistas de grande formato e capa de cor berrante, ficou conhecido como pulp fiction, conceito para sempre identificado com o tipo de narrativas que supra referi, ainda que traduzidas para outros suportes: o celulóide, a prancha de banda-desenhada, a rádio ou a televisão. A ficção pulp abrangia um espectro exaustivo de histórias perfeitamente formulaicas e identificáveis: as histórias desportivas, as aventuras nos mares do sul, o western, a espionagem; as aventuras aéreas, a guerra aérea, as aventuras na selva, as aventuras no Norte de África, as explorações Árcticas, o Perigo Amarelo, as aventuras do Extremo Oriente, o Ocultismo, o Horror, as histórias médicas, etc... A proliferação das revistas pulp temáticas foi precursora da criação de vários géneros literários, muitos deles abatidos pelo desinteresse no pós-guerra. Destes, a ficção científica foi possivelmente o único género criado pelas pulps, opinião perfilhada também por Don Hutchinson no seu importante (e recentemente revisto - 2007) The Great Pulp Heroes (1996), e um dos poucos (juntamente com o Horror, a Fantasia, o Policial e o Romance cor-de-rosa) a sobreviver pujante até à actualidade.


É difícil afirmar que a pulp fiction tenha alguma vez desaparecido. Com períodos intermitentes de maior ou menor popularidade, foi acompanhando o desenvolvimento da cultura popular do século XX, ora assumindo maior premência no cinema (os saudosos serials que antecediam a projecção do filme principal), ora na televisão (as séries dos anos 50, que os substituíram), ora testemunhando um renascimento literário (a extinta colecção da DAW Books de lombada amarela dos anos 70), ora novamente no cinema (primeiro o fracasso do Doc Savage de 1975, depois o sucesso fulgurante de Star Wars em 1977 e Raiders of the Lost Ark em 1981). E, em cada uma das suas encarnações, soube captar fãs entusiastas como nenhum outro tipo de arte ou literatura (a não ser, talvez, o rock and roll). O sense of wonder, de extrema aventura, os super-heróis e as ameaças dos mais sinistros vilões que caracterizam a ficção pulp, garantem renascimentos periódicos impulsionados pelos leitores que buscam ansiosamente recriar aquela primeira sensação de descoberta de mundos de aventuras sem igual. James Bond, Dirk Pitt, Kurt Austen, Blade, The Gypsy, Preacher, Jason Bourne, etc... são os acuais descendentes de Doc Savage, do Shadow, do Operador #5, de Flash Gordon e Rocky Jones, de Tom Corbett, do Spirit e de tantos outros heróis inesquecíveis.


Tentativas de recriar esse emaravilhamento quase infantil podem assumir as formas de neo-pulp, retro-pulp ou pseudo-pulp, etiquetas que quero propor e desenvolver ao longo deste ano no Blade Runner. Mas, seja qual for a etiqueta a aplicar, a ficção pulp não deixa de ser, como tão bem sintetizou Don Hutchinson, "...calculatedly disposable literature that was too exciting to be respectable and too much fun to be taken seriously".

So, stay with me...

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