sexta-feira, 21 de março de 2008

THE WILD ANGELS (Roger Corman, 1966)




A linguagem do cinema desdobra-se em dois planos complementares e por vezes concorrentes: o plano da imagem e o plano da narrativa. Se aquele primeiro teria como original função servir o segundo, ilustrando os acontecimentos da história, substituindo assim a imaginação visual do espectador, cedo os realizadores se aperceberam da potencialidade do “jogo” que se pode estabelecer entre o que é “contado” e o que é “mostrado” (poder-se-ia também considerar aqui um terceiro plano, o do som, que pode “ilustrar”, “comentar”, confirmar ou negar aquilo que os dois outros planos nos mostram, cumprindo a superior função – emocional – de conduzir o espectador a receber a mensagem da imagem ou da narrativa no estado psicológico pretendido pelo autor).



Ora, se a narrativa deste The Wild Angels nada faz para se libertar das grilhetas do banal, a elegância visual que Corman imprime ao segundo plano narrativo – o da imagem – assegura um culto continuado a esta pequena jóia do subgénero do road movie que é o biker film. E, no puro plano das imagens, encontramos uma segunda narrativa – histórica, sociológica, cultural – difícil de esquecer.



Comecemos pela história: Heavenly Blues (Peter Fonda, segunda escolha para este icónico papel, depois de Corman ter corrido com George Chakiris que pediu que fosse um duplo a substituí-lo sempre que tinha que conduzir a sua Harley), líder de um gang de motociclistas em Venice, Califórnia, faz com que o seu amigo Loser (um insubstituível Bruce Dern) seja despedido do seu emprego numa exploração petrolífera quando cria um desentendimento com um dos capatazes (o habitue de Corman, Dick Miller) ofendido pelas insígnias nazis que adornam a vestimenta do motociclista. Blues informa Loser de que a mota que lhe tinha sido roubada fora encontrada em poder de um gang rival, da cidade de Mecca, perto da fronteira com o México. Em breve, todo o bando de Blues [incluindo Loser e a sua mulher Gayish (Diane Ladd)] parte numa demanda através do magnífico deserto californiano para recuperar a moto roubada. Demanda é aqui a palavra adequada, pois Corman não se poupa a esforços para nos incutir a ideia de que estamos a assistir a um ritual pagão, com os seus próprios códigos de honra e conduta, tão absurdos e grandiosos como os dos (religiosos) cavaleiros medievais – uma imagem que se repete, insistente ao longo do filme, preparando-nos, sem que nada o faça prever, para um final absolutamente magnífico de tão niilista.



Em breve, enquanto parte do grupo de entrega a torneios com frondes de palmeiras sobre as suas poderosas máquinas, ou a uma desbragada orgia com a “Mamas” do grupo, Blues conduz um grupo de “bravos” que vai enfrentar o Mecca Gang no seu próprio quartel (como não podia deixar de ser, neste universo de máquinas e motores, uma oficina mecânica). O confronto, verbal e fisicamente brutal é interrompido pela Highway Patrol, que obriga os intervenientes a pôr-se em fuga. Loser consegue escapar apoderando-se de uma mota da polícia, apenas para ser atingido a tiro durante a perseguição. Sem se aperceberem de que aí começa a desagregação de uma realidade que eles próprios não compreendem, mas em consonância com o estranho código de honra a que se vêem vinculados, Blues decide resgatar Loser do hospital onde se encontra em recuperação de uma intervenção cirúrgica de emergência. O resgate vê-se comprometido quando o frasco de soro de Loser se parte e Joint (Lou Procopio) tenta violar uma enfermeira (Kim Hamilton), que mais tarde vem a identificar Blues como tendo sido o seu atacante. Loser vem a morrer entre os seus companheiros, pois os seus pulmões ainda sob efeito dos anestésicos não conseguem sobreviver à passa do charro que pede para comemorar a sua libertação (“It was beautiful, man”, assegura-lhes ele).




Blues, mergulhando cada vez mais numa espiral entrópica e, sem que o saibamos, acometido de crescentes dúvidas sobre o sentido de tudo aquilo (dúvidas pressagiadas já, num golpe de génio, pela imagem inicial do filme, onde Fonda, como um gigante imperecível na sua icónica Harley, é objecto do fascínio de um garotinho que brinca por ali e que só a mãe consegue arrastar da motorizada), resolve organizar um funeral condigno na cidade natal de Loser, a bucolicamente baptizada Sequoia Groves. Aí, insatisfeito com o convencional elogio fúnebre do sacerdote (o actor de culto, Frank Maxwell) que se refere a eles como “filhos de Deus”, Blues interrompe-o, contrapondo “No, not children of God. Hell’s Angels”, transformando a cerimónia num crescendo de violência que culmina com o sacerdote espancado, amordaçado e encerrado no caixão, Loser sentado num banco com um charro enfiado na boca e imobilizado pelo rigor mortis, enquanto a sua mulher é submetida a uma violação colectiva por detrás do altar, por esta altura coberto com uma enorme bandeira nazi. O caos, sublinhado pela histriónica, mas estranhamente viciante trilha sonora, adquire as características de um godamerüng, um final dos tempos, um imparável desfazer da ordem natural das coisas, pelo menos como esta é entendida pelos membros do gang. Até a “namorada” de Blues (uma surpreendente Nancy Sinatra), agastada com o seu crescente afastamento, cede aos avanços do segundo em comando, Dear John (Buck Taylor), sinal seguro de que nunca nada voltará a ser como antes.




O que se confirma durante o enterro, num cemitério maravilhosamente envolto em neblina, quando uma pedrada desferida por um miúdo local despoleta um violento confronto com os habitantes. Com as sirenes da polícia a crescerem na distância, os Anjos Selvagens põem-se em fuga, deixando Blues junto da campa ainda aberta de Loser, determinado a enterrar o amigo e convicto de que já não há mais para onde ir (“there’s nowhere to go”).








Se as personagens, com a excepção do Loser de Dern e do Heavenly Blues de Fonda, não passam de recortes cartonados (e muitas delas são realmente membros dos Hell's Angels de Venice Beach), sem dimensão ou profundidade, são-no para servir os ulteriores propósitos de Corman, de deixar as imagens falarem por si, sem intervenção da perspectiva subjectiva de qualquer dos intervenientes. E as imagens são radicais, ousadas, inesquecíveis (muito devido também à excelente fotografia de Richard Moore e à habilidosa montagem – aparentemente brusca – de Monty Helman). Desde logo a utilização da suástica em dois quadros marcantes: cobrindo o púlpito, num saboroso contrastes entre as duas cruzes (a gamada e a cristã, ao fim e ao cabo, ambas representando Messias derrotados pelas forças dos tempos); e cobrindo o caixão no magnífico cortejo fúnebre numa manhã de nevoeiro (a fotografia de um cortejo semelhante, durante o enterro de “Mother” Miles, líder dos Hell’s Angels de Sacramento, que surgiu na revista Life, foi a inspiração que levou Corman a produzir e realizar este filme). São imagens de corte, imagens de ruptura com o convencional, imagens que traduzem o facto de que o gang de Blues vive numa realidade cultural diferente e em oposição com a nossa, apesar de tão ritualizada e hierarquizada como ela. Todos neste filme são definidos pelo seu papel, tão rigoroso e fixo como grilhetas numa prisão. Para além dos membros dos gangs rivais de motoqueiros (os Hell’s Angels de Blues, os “chicanos” do gang de Mecca), todos os que aparecem em campo estão definidos pelo “uniforme” de um lugar social fixo: os trabalhadores da exploração petrolífera, a mãe, a enfermeira, os polícias, o padre; categorias sociais que percebemos como imutáveis ao longo dos tempos. Também os rituais medievais dos Hell’s Angels falam de uma rigidez de comportamentos, de um código de conduta que, no contraste que busca com a sociedade “normal”, impõe tantos limites, padrões e clichés como ela. Observe-se a rigorosa hierarquia dentro do grupo, o valor da propriedade, tão apreciada como entre “os outros” (até as mulheres do grupo, ou são a “girl” de alguém, ou são “Mamas”, propriedade colectiva para serem usadas por quem as procurar; até aqui, o nome da “girl” de Blues é significativo, porquanto esconde a sua “identidade” sexual: Mike). Uma rigidez social que impede a livre movimentação entre as categorias (quando os membros do gang se “substituem” aos médicos, o resultado é desastroso; e a enfermeira é tratada por Joint – que a tenta violar – como se fosse apenas mais uma “Mama”; e Dick Miller é quem dá voz à maior de todas as rupturas, quando, ao ver as insígnias nazis de Fonda lhe diz com desprezo: “We used to kill the guys wearing that”.) que, efectivamente, preclude qualquer alternativa, até à conclusão final de Heavenly Blues: “There’s nowhere to go”.


Excepto para a sepultura.


Talvez essa seja, ao fim e ao cabo, a marca do génio que Corman (e Chuck Griffith, o argumentista) soube impor ao tratamento desde tema tão sensacionalista. Apesar da expressa “desconstrução” dos ambientes altamente hierarquizados e ritualizados em que se desenvolvem as dependências intra e extra-grupo, The Wild Angels é, na minha opinião, um filme exploitation extremamente atípico pelo tratamento que dá à morte: na verdade, todo ele pode ser lido como uma viagem rumo a uma cerimónia fúnebre. Pagã, dionisíaca, sem dúvida, mas contendo elementos de uma certa espiritualidade do asfalto. Mas esta danse macabre, esta caminhada para o esquecimento, pode ler-se para lá da viagem literal para o funeral de Loser. Ela está ínsita nos planos inicial e final do filme, que se complementam perfeitamente como pontos de partida (e a partida é sempre uma incógnita) e chegada (sempre conhecida). Como escrevem Jack Sargeant e Stephanie Weston sobre os road movies, “There are no certainties on the road. Only potentialities”.


São potencialidades que Heavenly Blues vê quando, na cena inicial, devolve o olhar do miúdo que admira fascinado a sua mota: não temos dúvidas que é a si próprio que Blues vê, ou Loser, ou qualquer dos membros da sua tribo de Hell’s Angels: miúdos fascinados por máquinas, mas ainda cheios de escolhas à sua frente; tal como é a si próprio que Blues vê quando, sozinho no cemitério de Sequoia Groves, lança pazadas de terra sobre o caixão de Loser, o seu próprio caixão. É Loser, é Heavenly Blues, é o miúdo da cena inicial, completada a viagem, que ali são enterrados.


A grande viagem do filme, a viagem rumo à morte, é a viagem que Blues faz entre aquele menino e aquele caixão, a viagem dos loucos anos sessenta rumo ao final sangrento que iriam encontrar volvidos apenas três anos: o sangue de Fonda e Hopper no final de Easy Rider, o sangue que jorrou sob os ritmos dos Rolling Stones em Altamont, o sangue que manchou as paredes da casa de Polanski a mando do louco Manson, o sangue que empapou os solos do Vietname.


A viagem que a América fez na década em que perdeu a inocência.

2 comentários:

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Embora o meu comentário não seja sobre "The Wild Angels", a que também assisti, escrevi um artigo sobre o filme que dá nome ao seu blog, "Blade Runner". Dá uma passadinha lá.
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Saudações,
Renata Cordeiro