quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A muralha da indiferença é a muralha mais alta


Há determinados livros que nos fazem repensar todo um género. Que nos obrigam a rever mesmo os nossos hábitos de leitura, o nosso conceito de narrativa e a nossa relação com o texto impresso. São livros que surgem raramente e espaçados no tempo.

Hoje chega às livrarias um desses livros: A Muralha de Gelo (Saída de Emergência), é a segunda parte de A Guerra dos Tronos, ambos formando o primeiro volume da saga As Crónicas de Gelo e Fogo de George R.R. Martin. Mas dizer isto é ficar aquém da realidade, pois as separações são totalmente arbitrárias numa série de volumes que contam uma só história, espartilhada somente por exigências editoriais, quer na edição original, quer nas várias traduções que se vão distribuindo um pouco por todo o mundo.

Digamos então que As Crónicas de Gelo e Fogo são aquilo que todos os épicos de fantasia gostavam de ser: complexas, violentas, intrincadas, com magnífico desenvolvimento de personagens e, acima de tudo, dotadas de uma perfeita coerência interna a nível da essencial irrealidade das suas premissas.

O mérito da obra não é de difícil reconhecimento: abençoados (ou amaldiçoados) com o intervalo de tempo que mediou entre a sua publicação original e a tradução que agora nos chega às mãos, não somos obrigados a um esforço crítico. A obra é já reconhecida como um marco da literatura fantástica – a par de outros como O Senhor dos Anéis, Gormenghast ou Glorianna – cujo lugar definitivo na Grande Biblioteca da Imaginação se mostra apenas dependente da efectiva conclusão da epopeia, e dos precisos termos dessa conclusão.

Por isso o livro desafia os nossos hábitos de leitura, o nosso conceito de narrativa, a expectativa com que sempre enfrentamos um livro novo: a de encontrar um final. As Crónicas de Gelo e Fogo ainda não têm um final; mas deliciem-se os leitores com os vários finais e recomeços que vão marcando o fluxo da acção. Martin é um artesão da escrita, e a ríspida simplicidade da linguagem, em toda a sua aparente simplicidade, é o maior logro dos grandes artesãos.

Quando, na revista OS MEUS LIVROS de Novembro de 2005 – há exactamente 2 anos – me pediram uma lista de obras de Fantasia de referência, considerei uma vergonha que ainda não tivesse sido traduzido entre nós George R.R. Martin: agora que o foi, é uma vergonha se lhe respondermos com indiferença.

Por isso, aproveitem esta semana tão propícia ao Fantástico e a bem conseguida tradução de Jorge Candeias (anos luz à frente da tradução da edição pirata que ainda se pode encontrar no refugo de algumas feiras do livro), para mergulharem no mundo cruel, sombrio e violento de Martin; e acabarão por descobrir quão soberbo e resplandecente pode ser.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Leitura Aleatória: ARMADA (Michael Jahn, 1981)


Por vezes é curioso ver o que a prateleira nos entrega quando lhe pedimos uma sugestão. De olhos fechados, das fileiras de trás onde as sombras eclipsam as lombadas em sucessão misteriosa, retiramos um volume à sorte, ao calhas, entregando às parcas o destino de umas poucas horas de leitura.

Desta vez calhou-me Armada, uma space opera de Michael Jahn (n.1943), cujo percurso pela ficção científica se cingiu a um par de títulos há muito esquecidos (The Olympian Strain de 1980 é o outro) e um punhado de tie-ins. Mal se abre o livro, já se adivinha o que nos espera:

"The rock was the size of a small car. (...) (It) caught the sunlight and reflected it in a strong metallic glint which inflamed Broadsword's spirit of adventure. «Hold on», e said, reaching for the throttles.
Margot covered his hand and the throttle levers with hers.
«You'll make us late», she said.
«So what?»
«H5 needs the cargo.»
«What? More crystals for more transistors so everyone can have two wrist radios?»"

Armada posiciona-se face ao passado; as suas referências são as heróicas space operas pré-Campbelianas, onde intrépidos aventureiros de queixo firme exibem o seu desprezo pela autoridade aos comandos das suas estrondosas naves espaciais. O espírito da fronteira, do pistoleiro sem lei mas com um forte sentido moral, essa tradição americana que o Western legou à Ficção Científica e ao Policial como seus dignos descendentes, forma a coluna vertebral deste tipo de aventura.

Neste caso os aventureiros são Nathaniel Broadsword, Margot Chambers e Curtiss Baxter, modernizados pelos sinais dos tempos (Margot não só é uma piloto exímia, como tem uma vida sexual activa), mas ainda assim livres empreendedores que se verão no centro, não só do primeiro contacto com uma civilização alienígena, mas da primeira invasão da Terra por uma espécie intergaláctica.

Situando a acção num 1995 que já lá vai, Jahn não consegue libertar-se do kulturgeist em que escreve: 1981 estremece ainda sob o ímpeto de Star Wars (1977) e seus derivados. Battlestar Galactica (1978), The Black Hole (1979), Buck Rogers in the 25th Century (1979-1981) Flash Gordon (1980), The Empire Strikes Back (1980) ou Battle Beyond the Stars (1980) eram os filmes e séries de televisão que preenchiam o imaginário tecnofantástico e impunham a sua reprodução memética. Fiel a esses modelos, Jahn apresenta-nos um espaço próximo já colonizado pela Terra e pela sua modesta frota de dez vaivéns espaciais, que se vão bater contra uma sinistra e antropófaga espécie alienígena que vagueia pelo universo procurando o alimento mais nutritivo.

Os leitores habituais do género reconhecerão muitos dos seus temas e tratamentos, não deixarão de protestar pelos muitos clichés e infantilidades, pela narrativa atamancada, pela fácil antecipação do desfecho mas, acredito, não deixarão também de apreciar alguns dos resmungos mais inesperados: A designação "Armada", surge quando a gigantesca e impenetrável nave alienígena regurgita os primeiros caças em forma de boomerang. «Jesus Christ, it’s a fucking armada!», expletiva que merece a observação «Beats the hell out of “a big step for mankind”».

Por outro lado, à medida que a refrega se torna cada vez mais desesperada (e o livrinho, pese a leveza, tem os seus momentos sangrentos), os heróicos terrestres não deixam de perorar a iniciativa S.E.T.I. que, anunciando ruidosamente a nossa presença e localização, se revela pouco adequada a um universo de presas e predadores, ideia que não é de todo desprovida de alguma originalidade. De lamentar apenas que não fosse explorada numa obra melhor.

O volume não termina sem que os protagonistas sofram as suas perdas – coisa em que Jahn se mostra implacável – mas é no optimismo final da obra que se revê o wishfull thinking que apenas então, antes do Challenger, antes do Columbia, antes de Bush, era possível: os alienígenas foram aniquilados e, com o habitat orbital destruído, as bases lunares em ruínas, a NASA não começa a fechar-se numa concha autista; acelera o programa espacial, antecipa a colonização de Marte, mostra às estrelas que o Universo pertence a quem o reclamar.

Em 1981, ainda tinhamos o futuro ao alcance das mãos...

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Para abrir o apetite...

...deixo-vos com dois estádios de desenvolvimento da capa da novela que o João Barreiros vai apresentar no próximo Fórum Fantástico. O primeiro esboço foi apresentado aquando da ilustre participação do indomável Barreiros no programa Câmara Clara do passado dia 30 de Setembro. A monocromia da capa não deixa transparecer ainda o multicolorido visceral que pinga de cada uma das suas modestas páginas.



O segundo estádio foi publicado pelo João Maio Pinto que, cada vez mais e de forma mais visível, vem enriquecendo sumamente algumas das obras do fantástico de lavra mais recente.




O Projecto Candyman, novela de ritmo intenso e extremamente divertida, forma a primeira parte (independente) do já tão anunciado "tríptico" A Bondade dos Estranhos (a publicar pela Chimpanzé Intelectual), que retalha, com todos os utensílios que a ficção científica pôs ao nosso dispor, a nossa boa e velha Terra, partilhada por três espécies alienígenas "invasoras". Preparem-se para rir, chorar e conter vómitos agoniantes.

Pensada para ser a mais ambiciosa obra da FC nacional desde a publicação de Terrarium (1995), sofreu altos e baixos na sua execução, sujeitando-se às mutações e trepanações que a realidade do nosso mercado lhe impôs. A segunda parte, A Alma do Louva-a-Deus (título provisório), é da autoria deste vosso humilde escriba, e se tudo correr bem verá a luz do dia para começos de 2008, logo seguida do grand finale assinado por Luís Filipe Silva.

Entretanto, podem ler um excerto do Projecto Candyman na página do Fórum. Divirtam-se.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Palavras que vale a pena repetir...


Do editorial do mais recente número da Free Enquiry (Outubro/Novembro 2007), onde Paul Kurtz define o seu conceito de Neo-Humanismo e reflecte sobre o papel da hierarquia da Igreja Católica no vergonhoso caso do abuso sexual de menores em Los Angeles; sobre as críticas visando a recente publicação de nada menos que seis livros pelos cinco cavaleiros do ateísmo (Dawkins, Harris, Dennett, Hitchens e Stenger), eis o o que tem a dizer:


"Yet nary a word of criticism has been made about the fact that the latest Harry Potter book by authorJ. K. Rowling, Harry Potter and the Deathly Hollows, had a firt printing of twelve million copies. I do not wish to be accused of being an old fuddy-duddy, but I deplore the fact that millions of young people rush out to devour books of fantasy, touting witchcraft and other paranormal phenomena, without even a semblance of skepticism. Bookstores are so eager to stay in business, they've had special parties for readers heralding its publication. Why not have such parties for bestsellers that are science fiction but at least ground their speculations in responsible extrapolation from the known?"

sábado, 6 de outubro de 2007

Porque ontem foi sexta-feira...

... era dia de iniciarmos as nossas Midnight Sessions, revisitando o filme The Wild Angels (1966) de Roger Corman. O filme, um clássico de culto, foi o primeiro - e, para mim, o melhor - a explorar o fenómeno dos Hell's Angels, mercê do olho do Sr. Corman, sempre atento a matéria prima de choque e exploitation, sem descurar, se nãi um comentário, pelo menos um registo socialmente relevante. Antes de Easy Rider e os Steppen Wolfe terem feito do rock'n roll uma presença habitual nos Road Movies, a canção "Blue's Theme" de Davy Allan e dos Arrows tornou-se um sucesso nas cadeias AM. E a trilha composta por Mike Curb, arrasta os espectadores pelo sol das estradas desertas e pelas neblinas matinais do sul da Califórnia, anotando com mestria (quando logra conter uma certa tendência histriónica, bem patente no ritual pagão das exéquias de Loser) os estados de espírito dessas almas penadas do asfalto (o filme começou por se chamar, All the Fallen Angels).

Charles B. Griffith

No entanto, mais do que a direcção e a música, é o argumento de Charles B. Griffith que eleva o filme acima do mero entretenimento. Responsável pelo argumento de incontáveis clássicos de Corman, entre os quais se incluem The Little Shop of Horrors (1960), Not of This Earth (1957), A Bucket of Blood (1959), Attack of the Crab Monsters (1957) ou Death Race 2000 (1975), Chuck Griffith assinou The Wild Angels depois do seu exílio europeu (voluntário) que se estendeu de 1961-1966, anos em que manteve afastado do cinema.

Chuck Griffith faleceu no passado dia 28 de Setembro, e também por isso esta revisita a The Wild Angels seria uma homenagem a um dos mais importantes agentes da A.I.P. e, consequentemente, do cinema fantástico. Infelizmente, um problema técnico, por cuja resolução fico mais uma vez em dívida para com o incansável Luis Rodrigues que, às 3 da manhã de hoje, ainda me estava a auxiliar via google, impediu-me de formalizar essa homenagem.

Fica então prometido para a próxima sexta-feira o início destas midnight sessions. Porém, não queria deixar de lembrar Chuck Griffith, que porventura muitos terão já esquecido, mas que é o autor do célebre manifesto que Peter Fonda profere num dos momentos altos do filme (e poderia haver melhor epitáfio?):
We wanna be free! We wanna be free to do what we wanna do! We wanna be free to ride! We wanna be free to ride our machines without being hassled by The Man! And we wanna get loaded! And we wanna have a good time. And that's what we are gonna do. We are gonna have a good time... We are gonna have a party!"

Right on, Chuck! And God Speed to you...

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Que leitores?


Estava eu a dispor alguns livros na minha modesta biblioteca pessoal (não, não é a da fotografia... negligentemente, não tinha a câmara comigo) quando me deparei com uma dúvida aflitiva que deve tocar a qualquer pessoa que tenha por hábito acumular livros e DVDs como se a sua vida dependesse disso (yeap, sou um desses...): onde arrumar determinado livro, de determinado autor, quando ele está inserido numa colecção? Junto com as outras obras desse autor, deixando uma brecha na colecção? Ou colocá-lo na colecção, deixando uma brecha na bibliografia de lombadas?

É uma questão ociosa, dirão os leitores mais pragmáticos. Mas para quem tem frequente necessidade de citar obras e autores, uma fácil e imediata localização de um dado título é um imperativo de sobrevivência. Pois bem, enquanto estava ali perdido com o livro na mão, hesitando entre uma estante e outra, com os olhos a dilatar e a respiração a alterar-se perceptivelmente (a perda de tempo é outra grande ameaça), dei comigo a procurar padrões adoptados em situações anteriores. E como acontece sempre nestes casos, a vertigem de lombadas obriga-nos a retirar um e outro livro, saboreando velhas experiências de leitura, procurando lembretes esquecidos entre as páginas, frases ou cenas favoritas, anotações de que nos arrependemos ou excertos que devíamos ter anotado.
E no meio de tudo isso, apercebi-me de que, com excepção das prateleiras com o alinhamento uniforme das lombadas amarelas da DAW, e de uns quantos títulos da SF Masterworks, tenho sempre arrumado os livros por autor, por tema ou por período. Nunca por colecção.

A razão é óbvia. Basta olhar para a distribuição dos livros e a constatação é evidente: o conceito de colecção de ficção científica tem desaparecido progressivamente. Esfumou-se o prazer juvenil de esperar pelo dia em que surgia nas livrarias o "número X" de determinada colecção. O prazer de o ler, na certeza de que no mês seguinte surgiria um outro, uma surpresa, um título aleatório. Retrospectivamente, é curioso que recordo essa sensação, com particular intensidade, em relação à colecção "Guerra & Espionagem" da Europa-América, que comprei religiosamente desde os meus 11 anos, quando foi publicado o primeiro título, A Sul de Java de Alistair MacLean (a tradução de South by Java Head), autor que se batia com Robert Heinlein pela minha preferência.

Creio que todos nós, entusiastas da literatura de género, o somos, em parte, por causa do conceito de colecção. Sob determinada égide, sabíamos que íamos encontrar um cardápio variado de obras que, umas vezes mais, outras vezes menos ao nosso gosto, nos proporcionava a expectativa e a experiência de uma similaridade temática que nos fixava o gosto e nos educava os sentidos. E não eram poucas as colecções que competiam pela nossa atenção: a Argonauta, a DH Ciência, a Panorama, a Bolso Noite, a Europa-América de bolso, a Nébula da mesma EA, a colecção azul da Caminho, todas elas nos apresentavam títulos e autores variados, unidos sob o signo (quase escrevia "estigma") de um género prenhe de aventuras, descobertas, cientistas loucos, naves espaciais e monstros de olhos esbugalhados.

Mas, uma a uma, elas foram desaparecendo. Provavelmente, faço parte da última geração a experimentar o fenómeno "Colecção de FC". O que podemos observar agora, é uma dispersão de títulos capaz de despistar os leitores mais atentos. Subitamente, publica-se literatura fantástica com uma frequência quase frenética, mas sem tino aparente: surge Neal Stephenson na Tinta da China, Gordon Dahlquist na Bertrand, Susanna Clarke na Casa das Letras, Valerio Evangelisti na Asa, Preston & Childe partidos entre a Ulisseia e a Saída de Emergência, de uma forma que - espera-se - alcança um número mais alargado de leitores, sem perder muitos dos que normalmente comprariam já esses livros. Enquanto isso as colecções que nos formaram enquanto leitores do fantástico vão desaparecendo paulatinamente (a Argonauta vai vegetando estupidamente rumo ao oblívio, seguindo quer o Dodó, quer a colecção da EA, que parece ter morto deliberadamente a Nébula com a publicação de A Era das Brumas).

Importa, porém saber, se isso reflecte uma preferência do público, ou é uma opção editorial que se vai reflectir no público leitor. É uma consequência da crise do fantástico (não só em Portugal, embora o conceito de colecção, sobretudo numerada, nunca tenha sido normal na cultura de língua inglesa, onde os livros se distinguem claramente das revistas - essas sim numeradas - que competem com eles; mas em França as colecções prosseguem, e numeradas), ou é uma das causas dessa crise? Reflecte um abandono por parte do público, ou é uma imposição editorial? É uma afirmação da morte do fantástico (o conceito de género morreu, e as obras que se "aproveitam" são integradas no mainstream) ou uma tentativa de afirmar o seu predomínio fora do nicho das colecções?

Não há, para já, muito onde procurar respostas. Os poucos exemplos que temos não são concludentes. A Editorial Presença tem duas colecções dedicadas ao fantástico (a Via Láctea e a Viajantes do Tempo), ambas numeradas e com publicação regular; no entanto, depois de um começo promissor, parecem ter-se concentrado num público-alvo young-adult, o que pode explicar a sobrevivência do conceito de colecção numerada; a Saída de Emergência assumiu o conceito de colecção temática, não numerada e com abrangência mais vasta, cobrindo todas as áreas do fantástico (a colecção BANG!, com predomínio da fantasia, e rareando a FC). Mas é uma colecção atípica (pela variedade temática, pela irregularidade de publicação, que pode ir de um ou nenhum, a vários títulos no mesmo mês), tradutora de uma estratégia interessante de identificação do leitor com a literatura do fantástico e de separação do remanescente do (abundante) catálogo.

Outras editoras mais recentes, que surgiram com fortes apostas no fantástico (a Livros de Areia, de que sou suspeito para falar com total isenção, e a Chimpanzé Intelectual, parecem ter resolvido - para já - não apostar no conceito de colecção num ou noutro sentido.

Certo é que, como resposta ou causa, a "colecção" pode estar intimamente ligada à crise do fantástico como género literário. A aposta numa colecção de Ficção Científica à antiga parece ser encarada como um risco pelos editores nacionais, a não ser que destinada a um publico-alvo específico como no caso da Presença.

Há, porém, uma vertente que se pode explorar: face às novas tecnologias, com claro destaque para a Internet, não é necessário grande esforço para se organizar uma boa colecção de ficção científica. Nem é preciso grande génio. O trabalho está todo feito pelos editores internacionais. Procuram uma colecção que apresente uma montra da variedade, riqueza e vitalidade do género? É só copiar o catálogo da SF Masterworks. Querem uma colecção moderna e actual? Basta ler a Locus todos os meses. Querem uma colecção mais arrojada e não muito cara de produzir? É só copiar o catálogo da PS Publishing. Qualquer editor pode facilmente criar uma excelente colecção.

Mas haverá público para uma colecção? Ou será apenas um custo capaz de arrastar uma editora para o charco? João Barreiros, que tem um gosto irrepreensível e um conhecimento inexcedível do género tentou duas vezes com resultados históricos, honrosos mas estéreis. O Luís Filipe Silva, que não lhe fica atrás, tentou e tombou ao fim de apenas um número. Em ambos os casos, não há defeito que se possa apontar às escolhas efectuadas. Eram títulos incontornáveis, obras marcantes, autores exímios e livros representativos. Num dos casos, a colecção era ainda enriquecida por uma apresentação em hardback com dusk jacket.

Por isso, a pergunta que abre o cofre, que transfere a herança, que dá acesso ao budoir é: poderia o regresso à colecção resolver a crise do fantástico? Confesso que é uma experiência que hesito em tentar. Mas que gostaria de ver tentada. Gostaria de ter de voltar a esperar religiosamente por um título todos os meses, ou cada dois meses, ou cada três meses, aguardando para ver que surpresa me reservou o editor. Mas isso é a voz da nostalgia a ecoar pelas estantes.

E ainda não sei onde guardar o livro....

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Mariquices


A propósito deste meu post, recebi o comentário do Miguel Neto, que passo a transcrever:

Olá João. Espero que essa crítica
venha rapidamente para, muito provavelmente, poder contrapor! Desculpe
dizer-lhe, mas, como sabe, escrever uma coisa destas precisamente quando um
livro está em plena venda e com grande visibilidade num jornal nacional sem
qualquer sustentação crítica não me parece muito honroso. Penso também que dar
tal ênfase ao texto da Clara Pinto Correia, (um conto que provavelmente não
mereceria especial referência numa crítica global do livro, a não ser pela
negativa e ainda assim uma referência insignificante) sem referir nenhum ponto
positivo de qualquer outro conto, parece uma linha crítica mais interessada em
denegrir ( advinda, talvez, de algum trauma corporativista instalado no seio de
alguns fãs de FC e Fantástico, compreensível pela necessidade de reacção aos
preconceitos em que estas literaturas estão envoltas, mas que ainda assim gera
reacções maniatadas por alguma raiva infantil) do que em esclarecer os leitores.
Parece-me justo pedir-lhe que essa crítica venha então muito rapidamente!
Colocar um post num blog dizendo mal, sem pexplicar porquê é no mínimo injusto.
Mais valia esperar pela crítica e então publicá-la.
O Miguel Neto, como sabem, é o editor da Chimpanzé Intelectual, facto esse que justifica a presente resposta. E porque entendo que o Miguel levanta algumas questões que, porque arreigadas em "alguns fãs de FC e Fantástico", são por vezes esgrimidas de forma desastrada, com grande prejuízo para os géneros literários que todos gostávamos de ajudar a florescer.

Em primeiro lugar, impõe-se esclarecer um factor que, à primeira vista, me pareceria desnecessário referir: as opiniões são da responsabilidade de quem as emite e avali(z)adas por quem as recebe, consoante o suporte fáctico que as sustentam. No caso particular de um blogue, onde também se procura exercer a crítica literária, sobretudo escrito por alguém que a exerce também numa revista literária, tal opinião trará consigo um lastro de conhecimento e experiência que lhe conferirão maior ou menor autoridade. Traz também uma relação de confiança com os leitores habituais, concordem ou não habitualmente com as opiniões ou críticas proferidas.

Isto porque - e desnecessário seria igualmente dizê-lo - toda a crítica é subjectiva, mesmo quando autorizada por maiores conhecimentos ou experiência. Dizer o contrário, seria afirmar um absoluto estético em que não acredito.

Outra das características essenciais na crítica (literária ou outra) é a isenção de quem a escreve; e só alguém que é por vezes obrigado a "desfazer" o trabalho de alguém que conhece ou por quem nutre amizade sabe quão ingrata é por vezes essa tarefa. Mas Portugal é um palco muito pequeno, cheio de tachos e panelinhas, e a sombra da suspeita pende sempre sobre quem critica. Por isso, quando por vezes tenho que criticar livros de autores que conheço pessoalmente, o penalizado é sempre o autor, pois o escalpelo será mais afiado e fasquia erguida mais alto. Tudo a bem da isenção.
Os editores escolhem por vezes "prostituir-se" ao mercado; os autores " às editoras. É o seu papel, é o que se espera deles se pretendem sobreviver num charco tão pequeno. Mas um crítico que escolha prostituir-se a autores ou editores, não tem futuro. Porque as únicas armas do crítico são a independência e a isenção.

O Miguel não gostou da opinião que expressei no meu blogue. Está no seu direito. Mas o fazê-lo, pôs em causa a minha independência e isenção, e isso fez sem qualquer fundamento ou sustentação, de forma gratuita e interesseira. O que lamento...

A minha opinião, em desabono do livro, fundamenta-se nos mesmos critérios com que tenho recomendado ou avaliado outras obras, em críticas que estão publicadas e acessíveis; emiti a opinião ao referir que o livro em causa tinha voltado a ser publicado e, achando que o livro era merecedor de uma avaliação mais sólida, disse-o. Não por a opinião ser negativa, mas por o livro ser importante.

Nenhum crítico, por muita boa vontade que tenha (nem sequer num género tão marginal) tem tempo para ler e criticar fundamentadamente cada livro que sai, que recomenda ou que rejeita. Nem é obrigado a fazê-lo. Porque a sua opinião conta também para alguma coisa, mesmo quando não está fundamentada. Porque são o critério, a isenção e a coerência que estão por trás dela que a avalizam.

Como editor, o Miguel censura que a minha opinião seja publicitada neste momento em que o livro está à venda. O que o Miguel diz, por outras palavras, é que devia ser obrigação dos críticos calarem as opiniões negativas quando os livros estiverem à venda. Ou seja, que enganem os seus leitores.

É claro, reconheço, podia ter-me calado. Nem sequer referir o surgimento do livro. Pretender que não conheço o género e aquilo que nele se vai fazendo. Mas o problema é que o livro é importante. É um livro que deve ser referido, pelo que significa e representa no panorama literário nacional.

Daí que, forçado a referir-me a um facto - a republicação de um livro importante (ainda que pronunciando-me sobre ele com atraso) - inignorável, me sentisse na obrigação de emitir também a minha opinião sobre ele. Que, infelizmente, foi negativa.

Já o Miguel Neto, vê nisso uma intencionalidade dirigida a denegrir um livro, tomando o todo pela inclassificável ociosidade de umas das partes: o conto de Clara Pinto Correia, que dá pelo título de "Mariquices". Mais, chega mesmo a vestir a capa crítica, considerando que ainda que negativo o conto não devia merecer mais do que uma breve nota em qualquer crítica. Neste aspecto o Miguel acha que os críticos e os leitores são parvos.

Como editor e coordenador do volume, o Miguel não tapou os ouvidos à cantiga melodiosa dos "big names" para promover o livro. Poder colocar nomes como Clara Pinto Correia, Luísa Costa Gomes ou Rui Zink na capa é, de uma perspectiva editorial sã, um isco irresistível. Mas o reverso dessa medalha, é que serão os "big names" a atrair a maior atenção crítica, até pelo exotismo ou ineditismo de os ver a laborar num género que não é, habitualmente, o deles. Quando o resultado dessa estratégia é o desastre imitigável de "Mariquices", não se consegue varrer o facto para debaixo do tapete de uma breve referência negativa. Os altos ficam visíveis. E todos gostam de ver o equilibrista a cair da corda.

Claro que o Miguel atribui esta atenção crítica a "algum trauma corporativista instalado no seio de alguns fãs de FC e Fantástico, compreensível pela necessidade de reacção aos preconceitos em que estas literaturas estão envoltas, mas que ainda assim gera reacções maniatadas por alguma raiva infantil".

E, se calhar, é aqui que o Miguel causa o maior prejuízo à literatura fantástica: é que o Miguel, que apostou meritoriamente num género difícil (e no qual reincidiu, com melhores resultados, pouco depois) e que promete continuar a fazê-lo, ainda encara o género como estando afligido de traumas corporativistas, incapaz de gerar crítica isenta e independente de questiúnculas do fandom, e necessitado de fechar os olhos e calar à boca à passagem de um livro fraco, só porque é do género e há que o ajudar, que ele sozinho não se salva.

É questão de perguntar, onde vai o Miguel buscar as informações que lhe pintaram tal retrato?

Mas o silêncio - especialmente quando se trata de livros do género, de livros importantes e de livros fracos - é intolerável. Porque, como escrevia Damon Knight num dos pontos do seu Credo Crítico (e desculpem-me se o tenho como referência inquebrantável): "a bad book hurts science fiction more than ten bad notices".