Pensei, primeiro, que fossem reminiscências da Tovaritch Nina de Esteban Maroto, uma banda desenhada tão curiosa, pulpesca e sexy, que cheguei a escrever umas quantas cenas (directamente para a gaveta) com uma outra persnagem chamada Kamarada Natalya, Agente de Stalin; depois compreendi que era algo mais profundo, mais religioso (isso, riam-se).
Que a personagem é um piscar de olho à sinistra Rosa Klebb (Lotte Lenya) de From Russia With Love (1963) parece-me perfeitamente evidente: aliás, na foto abaixo, que penso datar de 1928, quando a actriz interpretava Charmian Peruchacha na produção berlinense da peça "Die Petroleuminseln" de Lion Feuchtwanger, é impossível deixar de encontrar algumas semelhanças entre Lenya e Spalko. Irina é, assim, uma versão mais jovem, sexy e felina da própria Klebb. E, com todos esses atributos físicos, para além de um doutoramento, Spalko não precisa das deselegantes lâminas que Klebb ocultava nos sapatos, confiando-se antes ao seu elegante e fulminante rapier. Não pensem que isso é acidental. O rapier tem significados mais profundos, pois Irina não esconde o seu bem visível coldre, onde, acredito, se aninha uma fiável Tokarev 33 (ok, provavelmente é uma não menos fiável Colt .45, mas prefiro imaginar a personagem com a Tokarev).
E tratando-se Irina Spalko de uma agente do KGB, por muito que nos queira enganar com as suas patranhas parapsicológicas, para além de fisicamente atraente deve seguir a mui saudável vertente intelectual do ateísmo.
Isto ocorreu-me quando pensei no triste final da personagem, queimada pelos alienígenas com a mesma chama de sarça ardente que se guardava na Arca, de olhos muito abertos, como uma corça maravilhada, enquanto pede "I want to know. I want to know everything!", que é coisa que só um ateu sabe pedir e querer. E só um ateu pode ser assim castigado pelos poderes divinos. Indy sobrevive, porque se converteu (veja-se como ele teve a capacidade miraculosa de recuperar a mente ensandecida e destruída de Ox, pela mera invocação do seu nome, Henry Jones, Jr, como um mantra); Irina viu e quer saber mais. Viu e quer questionar. E que belo o rosto dela, iluminado por uma chama interior, contemplando a morte que se aproxima, enquanto Indy e os outros correm para salvar a pele como os apóstolos no monte das Oliveiras.
Irina é não só ateia, mas uma deusa pagã, uma encarnação de Artagatis. Escrevendo em Sinema: Erotic Adventures in Film (Citadel Press, 2002), eis o que Douglas Brode tem a dizer sobre ela:
"As surviving statuary makes clear, Artagatis was encircled by a benign snake, symbol of the male phallus necessarily joining with the female principle if life on earth was to continue. Likewise, the Minoan deity Knossos (worshiped on Crete before being replaced, in the public imagination of that time, by Zeus) was bare-breasted, gripping a snake in either hand. This suggests a positive power in women owing to their sexual and nurturing abilities, as well as their desire to control men (literally grasping obvious representations of male organs) to achieve positive female purposes.
Drawing on this conception while reversing the original implications, the Eden story was consciously crafted to warn man against sensuous/curious woman".
Não é difícil encontrar as implicações: Indiana Jones tem pavor a cobras e serve-se do chicote (também ele uma cobra - ou um pénis flácido), ao passo que Irina se serve de um rapier, uma espada rija, erecta, claramente fálica. Irina Spalko está assim para Indiana Jones como Irene Adler (Irina não é quase Irene?; e Adler não é quase adder, uma outra serpente?) está para Sherlock Holmes. As pancadinhas que lhe desfere na face quando lhe quer arrancar informação, mostram bem como ela o tem na mão, através do figurado falo que é o rapier; no mesmo sentido, não deixa de ser significativo que quando Irina e Mutt (um Indy ainda jovem e viril) esgrimem sobre os veículos em movimento, arbustos entre os dois camiões massacrem incessantemente os genitais da personagem, tornando claro que Irina é uma personagem castradora de pai e filho (ao passo que quando ela se vê sozinha com Karen Allen no camião, o olhar de Spalko é o de uma deusa pagã que encontrou a Virgem Maria no seu altar: algo também irónico, pois Marion - a quem Mutt se refere como Mary/Maria tem um filho ao passo que Irina, fria, distante e superior, pode bem ainda ser virgem. Mas tão mais sexy, com o seu uniforme cingido ao corpo, enquanto a feminilidade de Allen desaparece sob camadas de roupa - depois de mãe, deixa de ter sex appeal, à boa maneira da direita americana).
Irina Spalko permite-nos assim interpretar o filme como admissão inconsciente do envelhecimento e perda de virilidade da personagem, que é também, infelizmente, da série. E, quiçá, o tipo de deusa pagã que atemoriza os family men como Spielberg e Lucas (lembram-se do que dizia Carrie Fischer, por ser obrigada a conter os seios com faixas de pano? No bouncing in space. No jiggling allowed in the Empire).
Só por isso, Irina Spalko está no meu panteão das deusas do cinema.
2 comentários:
Bem visto. Já o crítico do New Yorker, David Denby, encontrou a mesma comparação/inspiração para a personagem de Blanchett. Curiosamente ele até nem fala muito mal do filme...a critica em geral anda muito branda com a peça. Sujeito a contra-argumentação, quase se pode dizer que é mesmo o pior filme de Spielberg.
É verdade. O pessoal não saca das facas com o entusiasmo que seria de esperar, atenta a pouca qualidade do filme. Acho que é por um certo pudor... aquele desconforto que sentimos quando vemos o malabirista deixar cair as bolas ou o guarda-redes sofrer um frango. A trilogia original é tão boa, que este é poupado por alguma deferência. Mas sim, talvez seja o pior filme do Spielberg.
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