
Se a afirmação do Fábio Ventura, no pobre contexto editorial português, não é inteiramente repreensível, o desenvolvimento pelo qual ele optou suscita outras questões que merecem ser apontadas; logo após a reacção do David, o Fábio Ventura adiantou um mea culpa no seu blogue explicitando aquilo que, ao que parece, não teria conseguido dizer na polémica resposta. E o que o Fábio Ventura escreve é o seguinte (ênfase minha): “Não quis, de modo algum, dizer que o género Fantástico é um género menor, para os mais inexperientes ou que não requer rigor ou seriedade. Quando refiro a "experiência de vida" refiro-me a maturidade suficiente para escrever um livro onde as relações entre as personagens adquirem uma profundidade que eu, aos 22-23 anos, não consigo representar. O erro da resposta está na generalização do género Fantástico. Eu referia-me ao tipo de Fantástico presente nos meus dois livros, dirigidos a um público juvenil, com uma escrita leve e, vá lá, mais comercial. Mas é no tratamento da história e das personagens, fortemente baseadas numa imaginação mais surrealista e idealista e cujas relações são de uma certa ingenuidade tipicamente juvenil, que realmente admito que não tenho experiencia de vida suficiente para torná-las mais densas e maduras. (…)”
Como é de bom-tom em Portugal, logo que o pecador adianta uma palavra de arrependimento, erguem-se hossanas e ecoam revoadas de palmadinhas nas costas, e como não podia deixar de ser, este caso não foi diferente, tendo a própria Andreia Torres ajudado a sacudir a caspa dos ombros do incipiente autor. No entanto, a leitura atenta da “desculpa” do Fábio Ventura revela antes uma realidade bem distinta: o que Ventura faz é ceder o osso para ficar com o bife. Ninguém – nem o David – apontou ao Fábio Ventura apenas imaturidade no tratamento das personagens. O David chegou mesmo a deixar entender que o díptico Órbias não passa de mera fanfiction da série de animação Sailor Moon, fanfiction essa marcada por uma total falta de originalidade, incompetência na escrita, e ignorância quanto à forma como se estrutura uma narrativa (isto já sou eu a dizer, para que não restem dúvidas). Se o Fábio recorre à desculpa que apresentou, procurando redireccionar as suas palavras do fantástico em geral, para aquilo que ele apelida, com a mesma inconsequência impensada que parece dedicar a tudo o que escreve, “o tipo de Fantástico presente nos meus dois livros”, não muda sequer uma vírgula àquilo que escreveu. É que o Fantástico presente nos seus livros, não é diferente daquele presente nos livros do David. Como o David escreveu no seu post, “O Fantástico é. Ponto.” E não basta tentar ocultar o que se disse por trás de vacuidades sem sentido como a afirmação de que a narrativa e as personagens são “fortemente baseadas numa imaginação mais surrealista e idealista” (seja lá isso o que for).
Tanto mais que isso é, pura e simplesmente, mentira. Uma mentira com que o Fábio procura ocultar uma linha de pensamento que lhe é comum e que deixa transparecer em várias das entrevistas que vai reproduzindo no seu blogue. O que o Fábio vem dizer à laia de desculpa é que não acha que o Fantástico seja um género para autores e leitores em experiência de vida, mas que os seus próprios livros o são. Como ele próprio afirma em resposta a um dos comentários ao seu texto, “Como disse no post, a minha intenção nunca foi denegrir o Fantástico nem sequer tenho essa opinião de que é literatura juvenil. A resposta vinha no seguimento do que estava a falar sobre as minhas obras e os elementos de Fantástico presentes nelas.” Só que, lendo a entrevista, aquilo que ele vinha dizendo sobre as suas obras era precisamente o oposto do que ele agora pretende transmitir; mormente, que, uma das diferenças do segundo volume em relação ao primeiro é precisamente “o enfoque nas personagens e nas suas relações, uma vez que o primeiro volume focou mais a sua apresentação e a do mundo de Orbias. Penso que está mais sombrio e maduro que o primeiro livro, mas foi uma evolução natural”.
Sucede que em entrevista ao blogue O Homem do Fraque, Fábio Ventura tinha isto a dizer quanto à imaturidade do primeiro volume, e ao seu carácter intencional (mais uma vez, a ênfase é acrescentada por mim): “Eu escrevi uma primeira versão do Orbias e tentei a minha sorte com as editoras. Na altura não tive sorte porque percebi mais tarde que aquela versão estava realmente fraca e revelava muita imaturidade de escrita. Dois anos depois, voltei a pegar na história e reescrevi-a totalmente. Diria que houve uma transformação de 200%.” Respondendo à observação de que as críticas apontavam para o facto de que as personagens do primeiro livro eram superficiais, o autor responde: “Realmente, a maior parte das personagens não foi muito bem desenvolvida no primeiro livro. Mas não foi uma "falha" completamente inocente. A minha intenção com este primeiro volume era apresentar as personagens, o mundo de Orbias e o conflito e iniciar um processo e crescimento e evolução das personagens principais que culminarão no final do segundo volume. Daí as personagens poderem parecer mais "superficiais"(…) Desde o início que a minha intenção com este segundo volume era focar o desenvolvimento das personagens e as suas relações.(…) Tomei alguns riscos com algumas personagens, nomeadamente com o Sebastian e Lorelei, mas penso que essa melhoria do tratamento das personagens colaborou da melhor forma numa melhoria generalizada da história de Orbias.”
Ou seja, o que o Fábio Ventura faz à laia de “desculpa”, é pegar nas críticas que lhe eram apontadas ao primeiro volume do seu díptico, que o David nem sequer referira e que ele acabara de afirmar (ao mesmo tempo) corrigidas e intencionais, e apontá-las como sendo a (única) falha do seu trabalho, fingindo, porém, responder à questão essencial da sua resposta amaldiçoada: se considera ou não o Fantástico um género “de e para os jovens”, ideal para os escritores que “não têm muita experiência de vida”.
Ora, no mesmo comentário no seu blogue, o Fábio Ventura, traindo um pouco a insinceridade da sua “desculpa”, afirma que já publicou “dezenas de entrevistas aqui no blog e não foi a primeira vez que respondi a esta pergunta. Por isso, achei um pouco injusto todo o debate e acusações que surgiram após uma simples frase mal interpretada.” Na verdade, de todas as entrevistas que publicou no seu blogue, apenas em duas outras lhe foi colocada a mesma pergunta, tendo ele respondido que “O fantástico é o meu género de eleição. Mas gostaria de explorar outros géneros. Não só para não tornar a minha carreira monótona, mas porque queria explorar a minha criatividade e ganhar alguma experiência na escrita.”, coincidindo com uma outra resposta similar ao blogue D’Magia, mas onde desta feita se nota mais a veia calculista que ele procura ocultar. Perguntado se alguma vez pensou escrever outro tipo de livros, respondeu: “Sim, mas a longo prazo. A verdade é que não é boa estratégia mudar repentinamente de género ou de estilo porque dá muito trabalho fidelizar um público, não convêm perde-lo logo a seguir. Espero ir mudando aos poucos. O meu objectivo é tornar a minha carreira o mais versátil possível, mas aos poucos e com sensatez.”
Quando falo em veia calculista, não quero acusar o Fábio de um cinismo que sei não ter. O cinismo exige uma inteligência mais sofisticada do que a que deixa transparecer nas suas entrevistas e posts, mas o calculismo de alguém que ainda “não se sente” escritor, e que por isso, vai dando a impressão de brincar à Literatura.
Mas como responder então à questão central da sua polémica resposta? Pois bem, não sei se o Fábio Ventura pensa ou não que o Fantástico é um género (ou um conjunto de géneros) juvenil e desenvolvido por autores jovens e sem experiência de vida. No entanto, acredito que sim, que é essa a sua opinião. Primeiro porque nas suas entrevistas há uma ideia que se repete uma e outra vez: “o meu público-alvo é os jovens” (sic), os leitores de Stephenie Meyer e aqueles que se lembram de Sailor Moon. Mas isso, só por si não basta; de que ele escreve para um público infantil, não restam dúvidas, mas será que o facto de se considerar um autor de juveniles permite, só por si, confirmar a afirmação que ele agora procura invalidar? Talvez não, mas a somar-se à flagrante mentira com que se justifica, encontramos uma outra afirmação sua que permite encerrar o círculo: “Penso que o meu livro trouxe uma nova essência à literatura fantástica portuguesa que fazia falta. E uma vez que o meu livro foi tão bem sucedido, acredito que outras editoras se sintam mais seguras para dar oportunidades a outros jovens autores. Temos tão bons talentos em Portugal! Gostava que o nosso “grupo” crescesse, principalmente porque a literatura só tem a ganhar com as visões originais e refrescantes de autores mais jovens. E quando digo “jovem”, falo da casa dos 20 e não da casa dos 30 como a imprensa refere…”
Parece-me, assim, que a visão que o Fábio Ventura tem do Fantástico é aquela a que deu voz na sua resposta amaldiçoada, justificando plenamente tudo o que o David escreveu e mais as sete pragas do Egipto. Mas posto isto, perguntar-se-ão os que habitualmente lêem este blogue porquê perder tanto tempo com uma questão insignificante, sobre o autor de dois livros que mal figurarão como notas de rodapé na história da literatura infanto-juvenil portuguesa?
Por três ordens de razões: a primeira para demonstrar que até aqueles que se mostram mais atentos aos pontapés nas virilhas do Fantástico que estes “jovens” autores vão desferindo a contento, como a Andreia Torres, se podem deixar enganar pelos falsos gestos de boa vontade; em segundo lugar, para deixar bem clara a minha posição nessa polémica, uma vez que à data, por imperativos profissionais, não pude nela participar; mas, sobretudo, porque a “desculpa” do Fábio Ventura, parece ser mais voltada para a qualidade do que escreve, do que propriamente para a sua afirmação. Se antes os elementos do “nosso grupo”, se defendiam contra os ataques dos “invejosos” dizendo “nós escrevemos tão bem como eles”, agora a defesa parece ser “nós havemos de escrever tão bem como eles; se escrevemos maus livros agora é porque ainda não temos suficiente maturidade”.
E os seus livros, os livros do “nosso grupo”, os livros dos Fábios Venturas, dos Victor Frazões, das Carlas Ribeiro, dos Pedros Venturas, dos Rafaéis Loureiro e das Dianas Tavares são de facto muito imaturos, mas não propriamente por causa da idade dos seus autores. Pensemos, por exemplo, que Isaac Asimov escreveu as suas obras mais conhecidas e reconhecidas (Foundation, I, Robot, Nightfall) entre os dezoito e os vinte e um anos de idade; pensemos em Randall Garrett que publicou profissionalmente “Probability Zero”, o seu primeiro conto, aos dezassete anos de idade (o conto teria sido escrito quando tinha apenas dezasseis), ou em Theodore Sturgeon que publicou o seu primeiro conto aos vinte anos, um ano antes de se voltar para a Ficção Científica. A mesma idade com que Ray Bradbury, por exemplo, começou a publicar em fanzines. A sua primeira obra-prima, The Martian Chronicles, reúne contos que escreveu quando ainda estava na casa dos vinte (a sua primeira publicação profissional, foi aos vinte e um). Os exemplos são virtualmente intermináveis.
Que distingue, então, estes autores desta nossa leva nacional de quem brinca à literatura? Essencialmente três factores, por ordem decrescente de influência:
a)Desde logo, o conhecimento profundo do género em que pretendem trabalhar; um conhecimento que só se adquire lendo, lendo e lendo, o mais possível, com o máximo de variedade, mas certamente com exaustão as obras que se inserem no campo em que se pretende singrar.
b)Depois, fazendo o esforço de colmatar a inexperiência (a imaturidade) através do recurso a fontes credíveis e a uma pesquisa aturada; por exemplo, o jovem Asimov, escrevendo a sua Foundation, leu e releu os seis volumes do imperecível Decline and Fall of the Roman Empire de Gibbon. Não é, certamente, jogando videojogos ou vendo animes que se aprende a escrever e se adquire a maturidade necessária à construção de uma narrativa cativante, ainda que com personagens imaturas ou meramente esboçadas.
c) Se os dois primeiros factores são da responsabilidade do aspirante a autor, o terceiro escapa ao seu domínio: a existência de um bom editor, como Campbell foi para os autores da Golden Age, capaz de oferecer ideias, trabalhar os textos, espicaçar a criatividade mas, sobretudo, capaz de atirar imediatamente com um mau manuscrito para o caixote do lixo. E o caixote do lixo de Campbell estava a abarrotar de Orbias. Faltando um editor destes, como certamente faltou ao Fábio (de acordo com ele, teve a resposta da sua editora ao fim de dez minutos e através da leitura de um único capítulo do livro), deve o autor aprender pelo menos a encarar de forma crítica os elogios fáceis de quem claramente não sabe distinguir o Dracula de Stocker do Twilight de Meyer.
É que, como bem escreveu o David no seu post, faz falta que alguém diga basta. É preciso por termo a este brincar à literatura. De brincar ao Fantástico. Porque o que o Fábio acaba por dizer na sua “desculpa” é apenas isto: não sei escrever, ainda, um livro que mereça ser publicado. Fábio, é para isso que existem as gavetas.