Simon & Schuster, London, 2005
583 páginas
ISBN: 0-7434-0400-9
Ian McDonald é uma das vozes mais relevantes da geração de autores de ficção científica que se começou a destacar na década de 80. As suas obras, subtil mas fortemente marcadas pela situação da Irlanda do Norte, onde cresceu (McDonald vive em Belfast desde 1965), exsudam uma vincada preocupação com os problemas do colonialismo, do confronto de culturas e do choque civilizacional, tanto nas suas componentes ideológicas, como económicas. O sombrio dos temas - e a violência, física e psicológica, não é escassa naquilo que escreve - é tratado com uma elegância literária que lhe permite ombrear com gigantes como Dan Simmons, Lucius Sheppard ou Jeff VanderMeer, todos eles consumados estilistas e excelentes storytellers. Desde o seu primeiro livro publicado, Desolation Road (1988), McDonald ainda não foi capaz de me desiludir; cada um dos seus livros acrescenta algo aos anteriores, e todos eles fornecem uma utensilagem rica e variada pela qual nos é permitido entrever a luta - quantas vezes surda e incompreensível - dos países subdesenvolvidos. A sua saga dos Chaga - de onde se impõe destacar a sua noveleta Tendeleo's Story (2000) - é um exemplo acabado de como o imaginário e as ferramentas da literatura de antecipação podem ser utilizados com mestria para denunciar uma situação dramática - sem diminuir a sua gravidade, e sem deixar de parte a componente lúdica de uma obra de ficção.
No entanto, analisar uma obra de McDonald, por tudo quanto supra se disse, é uma tarefa tão delicada quanto a da desconstrução da mais delicada das filigranas; exige-se o uso de lupas de relojoeiro, das mais precisas pinças, e da mais viva atenção. RIVER OF GODS (2004) é uma das suas obras mais marcantes e melhor conseguidas, apresentando-se como uma brilhante manifestação da ficção científica de cariz sociológico emergente da New Wave dos anos sessenta e setenta do século passado. Na verdade, e deixando-nos de rodeios desnecessários, podemos afirmar que RIVER OF GODS é o melhor livro de ficção científica publicado nos últimos cinco anos – afirmação que não se mostra isenta de uma dose de injustiça para com outros títulos indubitavelmente meritórios (Matter de Banks, é um exemplo) mas que me permitirá justificar a curta extensão desta análise. Não é que o texto se apresente impenetrável ao escalpelo do crítico, ou que a sua estrutura seja tão frágil que a mínima incisão provoque a ruptura da membrana que o mantém coeso. Pelo contrário, revirar-lhe as entranhas não pode senão aumentar o fascínio pela mestria com que o mundo que McDonald nos convida a explorar foi construído. Mas há algo que se perde na devassa de um tal objecto… o muito que se descobre, o tanto que se aprende, não esconde uma certa destruição perversa do prazer da leitura incompleta. Como um egiptólogo que desmembra a melhor preservada das múmias para expor os seus segredos, ser-nos-ia lícito comunicar a excelência da escrita e da obra, mas nunca conseguiríamos partilhar aquele momento único e luminoso em que nos é dado contemplar a Estória (termos que abomino, mas a que recorro para me referir àquilo que a crítica estruturalista americana define como Story).
Mas comecemos por tentear o corpo da estória com a ponta aguçada do bisturi – de pronto descobrimos que a narrativa estende metástases por uma dezena de pontos de vista conflituantes e interrelacionados, cada um proporcionando-nos um olhar sectário sobre o grande subcontinente Indiano, atravessado pelo Ganges que escorre dos Himalaias, esganado pela construção de uma gigantesca barragem ilegal, sugado pela monção que há já três anos se recusa a engrossar os caudais e a saciar a terra sequiosa, até desaguar na Baía de Bengala, onde um gigantesco iceberg, arrastado das vastidões geladas do antárctico numa tentativa de estabilizar o clima cintila sob o Sol inclemente como uma miragem de vidro. A estória começa numa noite quente de verão e leva-nos a acompanhar um cadáver que desce o rio nos braços da correnteza. O que dele vemos, e o que ele nos mostra, é um quadro que se vai construindo de inúmeras referências que se acumulam em cada frase como escolhos nas margens… é um mundo e uma cultura que nos são estranhos que emergem das águas escassas e barrentas do rio… mas uma cultura sólida, de imersão total. Os pormenores, deslumbrantes – as piras incandescentes dos ghats – e escabrosos – as crianças que aguardam semi-emersas no lodo das margens para saquear cadáveres e aproveitar-se dos dejectos – vão-se somando lentamente para construir um universo multifacetado e perfeitamente coeso, palpável, real. RIVER OF GODS opera um world building de inigualável mestria, onde os dados facilmente reconhecíveis do mundo nosso contemporâneo se revestem de uma capa de estranheza e novidade que vão muito além do mero exotismo local. É como a linha de horizonte de uma cidade percebida através da bruma, ou uma paisagem industrial distorcida pela iluminação nocturna: ali vemos formas que julgamos familiares, acolá percebemos inexistentes as características que pensáramos reconhecer. É um holograma que engana os sentidos e que McDonald manipula a contento, levando-nos alegremente a ver sombras de objectos que lá não estão, e revelando com o júbilo de um ilusionista aquilo que realmente se passa. Não há melhor forma de descrever o acto do livro: através das perspectivas individuais e necessariamente subjectivas do seu extenso elenco de personagens, McDonald vai-nos permitindo perceber toda a riqueza do seu mundo, adentrar progressivamente nos modos de falar e de pensar, imergir-nos na cultura tão estranha e tão credível de uma Índia futura, no limiar de uma guerra e de um desmembramento ainda maior do que o ocorrido em 1947, cem anos antes do tempo narrativo.
Dessa forma nos é apresentado Nandha, o Polícia Krishna, chamado de urgência para realizar o exorcismo a uma fábrica de massa possessa por um demónio, que não é afinal mais do que uma IA rebelde que procura reproduzir-se ilegalmente e a que ele dá caça com outras IAs que se manifestam através de avatares do panteão hindu. Ou Lal Darfan, um actor virtual que interpreta um papel numa novela virtual, um dos programas de maior audiência na Índia e um pouco por todo o mundo, e que se orgulha de nunca se confundir com a personagem que desempenha, sem saber que essa mesma personagem, noutros países, é representada por outros actores virtuais à medida dos gostos locais. Através de cada um deles e da sua interacção com o universo narrativo, absorvemos o palco mental em que decorre a narrativa – e digo palco mental, para o distinguir do que num livro menor seria apenas o mundo alterado pela tecnologia que sempre serve de pano de fundo aos cenários futuristas; se o estranhamento sempre foi um elemento essencial à literatura de ficção científica, em RIVER OF GODS, pela sua conjugação com um mapa cultural que nos é quase totalmente alheio, mas real – o mapa cultural hindu que McDonald domina com invejável proficiência – vê-se utilizado como interface que permite ao leitor mergulhar no miasma sensorial que a leitura exige para ser absolutamente satisfatória. Daí eu ter referido o prazer da leitura incompleta: a menos que o leitor domine a cultura e a religião hindus, sentir-se-á como um turista numa envolvente cultural fascinante e assustadora pela sua parcial impenetrabilidade à compreensão. E penso que essa sensação de estranhamento do próprio leitor é intencional da parte de McDonald, pois apesar de o volume ser acompanhado de um glossário relativamente extenso (págs. 577-583) debalde procurará o leitor cerca de metade dos termos e conceitos de que McDonald lança mão. Fica-se com a sensação de se ler um autor indiano – talvez um desconhecido autor de ficção científica recentemente traduzido por um excelente tradutor – e sentimo-nos obrigados, vez por outra, a lançar um relance ao nome do autor na capa para nos certificarmos de que realmente é McDonald que escreve; ao contrário de Kipling que escreveu sobre a Índia na perspectiva colonial (por muito pró-Indiano que fosse) ou de Simmons que no seu A Canção de Kali (1985) recentemente reeditado entre nós pela Saída de Emergência (2009) nos mostra a Índia na perspectiva de um estrangeiro, McDonald consegue que sejamos nós, que partilhamos o seu background cultural, a sentirmo-nos estrangeiros. O que é de grande importância para melhor se apreciar o segundo e o terceiro actos do livro, quando já imersos no mundo que nos foi tão convincentemente criado – com as suas estrelas virtuais, os seus nutes de terceiro sexo, as suas sinistras conspirações, com os seus interesses geoestratégicos e geopolíticos, com o seu asteróide que abriga uma IA mais velha que o sistema solar – podemos finalmente assistir (mais do que assistir, sermos literalmente arrastados) pelo desenrolar da narrativa que se adensa como as nuvens da monção que se acastelam no horizonte em pé de guerra.
É uma leitura tremendamente satisfatória, daquelas que, como a Night Dawn’s Trilogy (1996-1999) de Peter F. Hamilton, nos convida de imediato a voltar a mergulhar nela uma e outra vez, apreciando os pormenores que nos escaparam da primeira vez. O leitor que a isso se sinta tentado pode dedicar-se a explorar a riqueza do subtexto que McDonald nos permite intuir com o uso certeiro de avatares religiosos e manifestações culturais. Mas essa exploração revelará que tal como os actores virtuais, também as divindades são apenas ilusões a que só os homens dão sentido através de actos irreflectidos. Tentar romper a epiderme do texto servirá apenas para diminuir a ilusão de verdade. E é tão raro quando um livro nos deixa com a sensação de termos entrevisto algo mais.
Outras leituras podem ser encontradas no CÍRCULO DE LEIBOWITZ:
3 comentários:
Olá!
O meu nome é Patrícia, tenho 31 anos e gosto muito de livros.Comprei há pouco tempo Os Contos de Terror do Homem-Peixe por causa do João Barreiros, e fiquei maravilhada com a qualidade de alguns dos contos, sobretudo com o de David Soares e o seu: "Djinn" é absolutamente maravilhoso!... Adorei!
Peço desculpa pelo comment despropositado, mas tive de vir aqui dizer-lho. Já a gora, uma vez que aqui chegeui, espero descobrir obras tão interessantes como a sua através deste blog. Obrigada!
João, enviei e-mail, uando tiveres tempo responde...
Roberto
Patrícia:
Muito obrigado pelo comentário. Fico satisfeito por ter gostado do DJINN e espero escrever outras coisas de agrado no futuro. E já agora, cá fica o convite, não só para descobrir outras obras aqui pelo Blade Runner, mas também para partilhar connosco alguns livros que considere interessantes.
Roberto:
Sorry. Já respondi ao mail.
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