Morreu ontem James Graham Ballard. Quis o destino, sempre irónico, que soubesse do facto quando andava às voltas com as suas Memories of the Space Age (1988), preparando algumas notas sobre ele a propósito de um conto de Disch, que faleceu no ano passado. Esta primeira década do século XXI - do século da FC - tem sido fatal para os seus autores mais estimados, como se o próprio Tempo quisesse bater o pé àqueles que moldaram o futuro.
E Ballard moldou certamente o nosso presente, com a sua geografia interior de ruínas e máquinas desmembradas, de celebridade efémera paga com o preço da dor, do sangue e da carne retalhada. Um presente onde os primeiros passos da humanidade no caminho das estrelas foram brutalmente amputados como um sonho do qual despertamos sobressaltados.
Há quem diga que vivemos hoje num mundo Ballardiano. Não sei - ainda - se isso é bom ou mau, se isso é ou não verdade; e desconfio que Ballard não gostaria dessa palavra - verdade. Mas o universo é mestre das pequenas ironias, e Ballard morreu no ano em que se cumprem 40 anos sobre o culminar do Programa Apollo, o qual encarava como "a symptom of some inner unconscious malaise afflicting mankind, and in particular the Western technocracies... a huge desintegrating fantasy". Para Ballard o verdadeiro mundo a explorar era o interior, aquele inner space que domina a psique humana, o inconsciente colectivo onde se agitam as matrizes ancestrais do homem e da besta, como enormes sombras num lodaçal de símbolos.
E poucos como ele souberam tornar esses símbolos em literatura, e a literatura num imaginário tão perfeitamente realizado, que não ficaria surpreso se alguém um dia levantasse a capa que cobre essa grande ficção a que chamamos humanidade, e sob ela encontrássemos a assinatura do autor. Ballard, com cuja filosofia não consigo concordar, é o autor de algumas das imagens mais assombrosas da FC, com os seus mundos inundados, ressequidos, cobertos de florestas de cristal, sobrevoados por arcanos aparelhos voadores e orbitados por astronautas mortos nas suas cápsulas-caixão. Leio Ballard e não consigo deixar de ouvir aquela sublime Space Oddity de David Bowie, a banda sonora por excelência de uma era de promessas envenenadas e tecnologia a entrar em colapso.
Morreu Ballard, morreu o esteta do colapso, calou-se uma das vozes literariamente mais capazes da FC. Ballard é um grande autor, mas acima de tudo, foi um dos nossos. Ground control, over.
2 comentários:
Boas, João.
Belo texto! Com efeito, o Mundo ficou mais pobre e ignorante com a morte de Ballard: não li muitos livros dele, mas os que li impressionaram-me bastante pelo arrojo, bizarria e visão.
Faço votos para que os leitores que nunca lhe passaram cartão, por se tratar (sobretudo) de um escritor de ficção científica, não venham agora a público dizer que sempre foram grandes fãs e o transformem numa criatura de estimação. Mas não me surpreenderia: é o costume. Já estamos habituados.
Abraço.
David
Boa noite João,
É sempre penoso perder um nome da literatura que está a "morrer", espero que não morra com os seus mestres. Apenas posso assumir a sua mestria pelo teu post, e que acredito ser verdade, assim que li o texto saltei para estante à procura nos livros da Argonauta emprestado para ver se tinha alguma coisa... nop... mas é uma lacuna a corrigir![ouvindo Bowie, Space oddity]
Obrigado
Abraço
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