João Seixas, Ricardo Duarte (moderador), Rui Baptista (Bela Lugosi is Dead) e David Soares. (Foto de Gisela Monteiro).
Por motivos de facilidade de leitura este texto foi dividido em quatro partes. Adverte-se que o mesmo contém expressões e opiniões susceptíveis de ofender um pouco toda a gente, pelo que se recomenda precaução na sua leitura ou, melhor ainda, evitar a mesma.
1 – A PROPÓSITO DE VAMPIROS
Todo o argumento coerente carece de uma linha condutora. É assim no ensaio, é assim na ficção. Mais uma das lições que parecem esquecidas, num panorama literário despido de contexto e referências. Vamos então escolher para fio condutor, o Vampiro.
No passado dia 19 de Setembro, a convite da Editora Objectiva, eu, o David Soares e o Rui Baptista, estivemos a falar de Vampiros, à hora das bruxas, no centro de Lisboa. A ideia, avançada pelos organizadores e pelo entusiástico moderador, Ricardo Duarte, foi a de que os vampiros estão na moda. Ideia que, como procurei expor numa das minhas intervenções dessa noite, está muito longe de ser verdadeira. Para compreender porquê, seria necessário reconstiuir a evolução do vampiro prototípico, do vampiro literário e cinematográfico, das suas representações populares, algo semelhante ao que Christopher Frayling fez no seu livro Vampyres: Lord Byron to Count Dracula (1991), prosseguido no volume Bram Stoker’s Dracula – Sucking Through the Century, 1897-1997 (1997) organizado por Carol Margaret Davison e actualizado de forma satisfatória pelas conferências realizadas em Budapeste em 2003 e que Carla T. Kungl coligiu parcialmente no volume Vampires – Myths and Matephors of Enduring Evil (2003).
Obviamente, seria um trabalho demasiado amplo e abrangente para um mero post, sobretudo um que está a ser redigido nos interstícios de prazos mais prementes e inclementes. No entanto, importa observar que independentemente das suas prováveis origens no folclore, nas tradições populares e na observação de alguns hábitos etológicos do reino animal, a figura literária do vampiro sofreu claras mutações ao longo do século e meio em que vem desfrutando de certa notoriedade e popularidade. Algumas dessas mutações representaram claras quebras com a tradição literária anterior, e merecem por isso ser destacadas, reclamando especial importância a transição do vampiro lânguido, faminto de companhia e presença humanas – dir-se-ia mesmo que faminto de humanidade – de Polidori e le Fanu, para o vampiro predador e violento de Stoker, e deste para o vampiro emasculado e anoréxico que aflorou pela primeira vez nas páginas de Anne Rice e domina o actual panorama literário. Obviamente, estas duas grandes rupturas emergiram dos seus próprios contextos históricos e culturais e por reacção a estes, moldando à sua maneira as sucessivas “modas” de vampiros bem como reacções à sua própria figuração, numa multiplicação de manifestações dessa figura prototípica. Tal como Nina Auerbach em Our Vampires, Ourselves (1995), podemos dizer “there is no such creature as ‘The Vampire’; there are only vampires”. Esta multiplicidade de vampiros, porém, mantém sempre uma afinidade de características essenciais que nos permite traçar a sua árvore genealógica e identificar as suas variações mais extremas como os vários vampiros psíquicos de Gaiman e Wilson, os vampiros tecnológicos de Star Trek (os Borg não são mais do que um sub-género de vampiros) ou os vampiros políticos de del Toro ou Simmons.
Uma das transformações mais subtis, e se calhar por isso menos notada (honra seja feita a Tomasz Warchol por chamar a atenção para ela em “How Coppola Killed Dracula”), foi aquela operada por Francis Ford Coppola na sua interessante adaptação de 1992: a origem da maldição de Drácula reside agora numa promessa de amor. Este prólogo que Coppola apensou ao texto original de Stoker, e que mergulha Drácula no reino do melodrama, não tardou a unir-se aos vampiros desdentados de Rice para dar origem a uma espécie híbrida e normalmente desinteressante. O vampiro deixa de ser um monstro sobrenatural, e passa a ser apenas mais um outcast, uma vítima da sociedade, tão digna de pena e comiseração quanto o original era de horror. I have crossed oceans of time only to find you, permanecerá como uma das mais pobres frases da história do fantástico, embora pareça ter influenciado sobremaneira os langores pseudo-góticos das novas gerações de fãs e não menos autores.
A estreia do filme de Coppola coincide com um momento de extrema popularidade da literatura de vampiros – em 1989, Nancy A. Collins tinha estreado a sua icónica Sonja Blue em Sunglasses After Dark, a série de novelas do vampiro St. Germain de Chelsea Quinn Yarbro atingia o oitavo volume em 1993 (Darker Jewels), Anne Rice voltava à carga com The Tale of the Body Thief (o último volume de alguma qualidade nas suas Vampire Chronicles, no ano anterior à estreia da adaptação cinematográfica de Interview With the Vampire, 1994), e Laurell K. Hamilton estreava a sua série Anita Blake com Guilty Pleasures (1993), provavelmente a mais imitada e influente das séries mencionadas. O fracasso de Buffy – The Vampire Slayer (1992) de Joss Whedon, seria redimido pela série epónima de 1997-2002, dando azo ao tenebroso mercado de pálidas imitações governado por Stephenie Meyer e outros sucedâneos menores como L.A. Banks, Richelle Mead, Tanya Huff, Charlaine Harris e quejandos.
Como acontece com quase todas as obras de ruptura, os textos de Stoker, Anne Rice, Hamilton ou Coppola, para além de originarem um novo contexto literário onde explorar este novo vampiro renovado, repositório dos medos, angústias, receios e preconceitos do seu zeitgeist, geraram uma vaga de imitadores surdos ao subtexto mas atentos às manifestações mais imediatas e “ruidosas”, num constante processo de filtração da originalidade até manter apenas aquele mínimo denominador comum sobre o qual Baudrillard nos alertava com grande presciência no meio de toda a estática pseudo-científica da sua filosofia. O que fica no coador não são os elementos arquetípicos ou prototípicos do vampiro, mas a familiaridade de uma estrutura desgastada e a busca de renovação de uma emoção perdida por parte do leitor.
(continua)
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