segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

La Habitación del Niño (Álex de la Iglesia, 2006)




Uma das melhores ideias que enconrei num conto de FC recente, lido há alguns anos na Analog, dizia respeito a um casal que discutia por a esposa acusar o marido de ressonar, facto que ele negava categoricamente. Decidem, por isso, adquirir um gravador de activação automática para esclarecer quem tem razão. Ao ouvirem a gravação na manhã seguinte, descobrem o som de vozes no interior seu próprio quarto… vozes de alguém que falava sobre eles, enquanto eles estavam adormecidos, indefesos. É uma ideia literalmente arrepiante. O não me recordar do título ou do autor da história deve-se, principalmente, ao facto de o conto não se ter revelado à altura das expectativas. Algo que, desconfio, é normalmente verdade para a maior parte das lendas urbanas. São óptimas como premissa, mas uma vez exploradas, sujeitas ao crivo da realidade, conduzem quase sempre a conclusões ridículas.



E essa é a principal fragilidade deste LA HABITACIÓN DEL NIÑO, o primeiro (tele)filme da série PELÍCULAS PARA NO DORMIR, que procuram recuperar o espírito da série original de Narciso Ibañez Serrador, que passou na TVE (televisão pública espanhola) em três temporadas, respectivamente em 1966, 1967 e 1982. Artilhado com uma forte carga de temas e referências, desde o tropo da casa assombrada ao da necessidade de descobrir qual dos doppelganger é o real, passando por citações de inúmeros filmes e séries televisivas anteriores (desde a HAMMER’S HOUSE OF HORROR e de PROFONDO ROSSO a THE AMYTIVILLE HORROR e THE SHINNING), LA HABITACIÓN DEL NIÑO mantém a mente do espectador suficientemente ocupada para que adormeça a consciência da essencial falta de sentido da narrativa, embora não o bastante para a apagar por completo.




Juan e Sonia (Javier Gutiérrez e a deslumbrante Leonor Watling) mudam-se com o seu filho recém-nascido para uma casa que estão a restaurar e que conseguiram adquirir por preço muito inferior ao praticado para o bairro classe alta onde se situa. Quando obtêm um monitor de som para o quarto do bebé, ouvem a voz de alguém que fala com o recém-nascido. É o primeiro passo na curta estrada da entropia matrimonial, uma estrada bem conhecida de Jack Torrance e de muitos outros pais obcecados. Quando uma rápida busca pela casa demonstra que não existe qualquer intruso, o casal decide adquirir um monitor vídeo, através do qual Juan prontamente vê a figura sinistra de um homem sentado junto do berço. O medo não tarda a trazer ao de cima o pior da sua personalidade, permitindo a de la Iglesia escarafunchar com gosto nas feridas ainda abertas por sentimentos xenófobos bem vivos em países Europeus como a Espanha, a França, ou mesmo Portugal, bem como realçar o sempre presente receio da idade avançada e da decrepitude física (“Somos viejos, y los viejos estamos todos locos”, como diz uma das personagens). Quando o crescente grau de paranóia e os instintos de protecção da família o levam a quase matar acidentalmente Sonia, ela decide mudar-se com o bebé para casa dos seus pais, deixando Juan sozinho, livre para mergulhar nos abismos incontroláveis do desespero.






O terço intermédio do filme depende essencialmente da capacidade de Javier Gutiérrez para transmitir ao espectador o já bastas vezes representado mergulho na semi-loucura à medida que as coisas começam a escapar ao seu controlo, e nisso ele é muito bem sucedido, embora não esteja claramente ao nível de um Jack Nicholson, coisa que não pode ser usada contra ele. Infelizmente, o facto de Álex de la Iglesia lançar mão do estafado “perito no sobrenatural” que acaba por explicar as coisas ao atormentado protagonista – neste caso um jornalista equipado com umas quantas teorias de física quântica – esvazia atabalhoadamente de sentido as provações de Juan e praticamente destrói a coesão narrativa. O horror sobrenatural funciona ao seu melhor nível quanto é mantido no plano do simbólico, no plano do terror primordial, das coisas estranhas e inexplicáveis que se acolhem nos cantos mais sombrios e inexplorados da mente humana. Foi isso que fez de THE HAUNTING (1963), THE BIRDS (1963) ou THE SHINNING (1980) verdadeiros clássicos intemporais, que continuam a recompensar o espectador mesmo quando revisitados, uma e outra vez. Uma vez racionalizado o elemento do horror, este é sujeito a interrogações, e essas interrogações exigem total coerência para que aquele se mantenha; foi isso que transformou magníficos fracassos como PRINCE OF DARKNESS (1987) naquilo que são: fracassos.













E é isso que arrasta LA HABITACIÓN DEL NIÑO um par de degraus para baixo na escada que conduz à excelência. (Um conselho de amigo: se ainda não viram o filme, o melhor é saltar as próximas frases.) Acamado, e claramente um entendido no tipo de folclore ufulógico que domina o info-entretenimento da televisão espanhola contemporânea, o Domingo de Sancho Grazia expõe a Juan o célebre paradoxo do gato de Schrödinger, usando-o como analogia para o que sucede entre realidades paralelas, que por vezes podem ser entrevistas através de aparelhos eléctricos sempre que um intenso evento emocional logra impressionar a matéria – um processo a que ele se refere como imanência, tal como fazem os aldrabões da parapsicologia. Isso leva Juan a adquirir uma dúzia de vídeo-monitores sem fios, através dos quais pode explorar a realidade paralela que se esconde sob (ou por detrás) as aparentes camadas da casa que ele e Sonia adquiriram, com o grau de zelo que esperaríamos encontrar num especialista em segurança da NSA. E, através das portas da percepção que acaba por revelar – literalmente – é-lhe possível penetrar nessa outra realidade, apenas para ser confrontado com o seu doppleganger, bem como o de Sonia e do filho de ambos, enquanto protagonistas principais de um crime hediondo. Se tentas salvar o gato, disse-lhe Domingo, acabas por ficar no lugar dele, uma máxima que não encontra o mínimo de sustentação no postulado de Schrödinger, mas que aqui serve para dizer ao espectador que, se ele consegue entrar, então, alguém pode conseguir sair. E sai, embora as razões e os objectivos não sejam inteiramente satisfatórios. Sobretudo quando a atmosférica sequência que antecede os créditos iniciais do filme, situada nos anos 1930 (provavelmente nos primeiros tempos do regime Franquista, no final da década), nos mostra alguém que se projecta desde o “outro lado” e arrasta um miúdo, que vemos sair pouco depois – ou talvez apenas o seu doppelganger – com a ajuda de algo tão pouco sofisticado quanto um velho aparelho de rádio, o que faz com que o cenário contemporâneo e os modernos monitores pareçam de todo desnecessários. Tal como sucede, aliás, com a história secundária da velhota (María Asquerino) que ficou com o rádio dessa cena inicial e que é totalmente irrelevante para a narrativa principal.






E no entanto, pese embora as suas fragilidades, é um filme estranhamente fascinante. De la Iglesia e o director de fotografia José Luis Moreno criam uma atmosfera claustrofóbica e de crescente corrupção, que a montagem atenta de Alejandro Lázaro e David Pinillos transformam em algo quase palpável. Não há, que me recorde, outro filme que consiga executar com tanto sucesso o velho susto do “homem debaixo da cama”. Na verdade, onde o filme falha a nível intelectual, compensa largamente os espectadores em termos de imaginário, som e montagem, embora não consiga deixar de pensar que se perdeu uma excelente oportunidade quando de la Iglesia não aproveitou uma cena anterior – quando Juan desce as escadas, recuando perante o assassino invisível que apenas consegue ver através do monitor – que lhe poderia permitir, na sua posterior repetição, surpreender o espectador ao revelar que alguém atravessou as barreiras para o “nosso” mundo. Não seria muito mais eficaz se Juan deixasse cair o monitor, revelando que o assassino estava ali, em carne e osso?



Não obstante estas limitações, LA HABITACIÓN DEL NIÑO possui uma beleza técnica que transcende completamente as suas raízes televisivas, e a maravilhosa interpretação de Leonor Watling e Javier Gutiérrez, a par de um elenco de actores veteranos como Sancho Gracia, Terele Pavéz ou o cativante Antonio Dechent que, como patrão de Juan, domina o ecrã em cada uma das suas cenas, cria um filme que, apesar de não ser perfeito, não deixará de adicionar alguns momentos eficazes ao repertório de pequenos horrores dos aficionados do cinema de género.

1 comentário:

rafael disse...
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