quinta-feira, 21 de maio de 2009

O Círculo de Leibowitz: RIVER OF GODS (2004)





Simon & Schuster, London, 2005
583 páginas

ISBN: 0-7434-0400-9

Ian McDonald é uma das vozes mais relevantes da geração de autores de ficção científica que se começou a destacar na década de 80. As suas obras, subtil mas fortemente marcadas pela situação da Irlanda do Norte, onde cresceu (McDonald vive em Belfast desde 1965), exsudam uma vincada preocupação com os problemas do colonialismo, do confronto de culturas e do choque civilizacional, tanto nas suas componentes ideológicas, como económicas. O sombrio dos temas - e a violência, física e psicológica, não é escassa naquilo que escreve - é tratado com uma elegância literária que lhe permite ombrear com gigantes como Dan Simmons, Lucius Sheppard ou Jeff VanderMeer, todos eles consumados estilistas e excelentes storytellers. Desde o seu primeiro livro publicado, Desolation Road (1988), McDonald ainda não foi capaz de me desiludir; cada um dos seus livros acrescenta algo aos anteriores, e todos eles fornecem uma utensilagem rica e variada pela qual nos é permitido entrever a luta - quantas vezes surda e incompreensível - dos países subdesenvolvidos. A sua saga dos Chaga - de onde se impõe destacar a sua noveleta Tendeleo's Story (2000) - é um exemplo acabado de como o imaginário e as ferramentas da literatura de antecipação podem ser utilizados com mestria para denunciar uma situação dramática - sem diminuir a sua gravidade, e sem deixar de parte a componente lúdica de uma obra de ficção.

No entanto, analisar uma obra de McDonald, por tudo quanto supra se disse, é uma tarefa tão delicada quanto a da desconstrução da mais delicada das filigranas; exige-se o uso de lupas de relojoeiro, das mais precisas pinças, e da mais viva atenção. RIVER OF GODS (2004) é uma das suas obras mais marcantes e melhor conseguidas, apresentando-se como uma brilhante manifestação da ficção científica de cariz sociológico emergente da New Wave dos anos sessenta e setenta do século passado. Na verdade, e deixando-nos de rodeios desnecessários, podemos afirmar que RIVER OF GODS é o melhor livro de ficção científica publicado nos últimos cinco anos – afirmação que não se mostra isenta de uma dose de injustiça para com outros títulos indubitavelmente meritórios (Matter de Banks, é um exemplo) mas que me permitirá justificar a curta extensão desta análise. Não é que o texto se apresente impenetrável ao escalpelo do crítico, ou que a sua estrutura seja tão frágil que a mínima incisão provoque a ruptura da membrana que o mantém coeso. Pelo contrário, revirar-lhe as entranhas não pode senão aumentar o fascínio pela mestria com que o mundo que McDonald nos convida a explorar foi construído. Mas há algo que se perde na devassa de um tal objecto… o muito que se descobre, o tanto que se aprende, não esconde uma certa destruição perversa do prazer da leitura incompleta. Como um egiptólogo que desmembra a melhor preservada das múmias para expor os seus segredos, ser-nos-ia lícito comunicar a excelência da escrita e da obra, mas nunca conseguiríamos partilhar aquele momento único e luminoso em que nos é dado contemplar a Estória (termos que abomino, mas a que recorro para me referir àquilo que a crítica estruturalista americana define como Story).

Mas comecemos por tentear o corpo da estória com a ponta aguçada do bisturi – de pronto descobrimos que a narrativa estende metástases por uma dezena de pontos de vista conflituantes e interrelacionados, cada um proporcionando-nos um olhar sectário sobre o grande subcontinente Indiano, atravessado pelo Ganges que escorre dos Himalaias, esganado pela construção de uma gigantesca barragem ilegal, sugado pela monção que há já três anos se recusa a engrossar os caudais e a saciar a terra sequiosa, até desaguar na Baía de Bengala, onde um gigantesco iceberg, arrastado das vastidões geladas do antárctico numa tentativa de estabilizar o clima cintila sob o Sol inclemente como uma miragem de vidro. A estória começa numa noite quente de verão e leva-nos a acompanhar um cadáver que desce o rio nos braços da correnteza. O que dele vemos, e o que ele nos mostra, é um quadro que se vai construindo de inúmeras referências que se acumulam em cada frase como escolhos nas margens… é um mundo e uma cultura que nos são estranhos que emergem das águas escassas e barrentas do rio… mas uma cultura sólida, de imersão total. Os pormenores, deslumbrantes – as piras incandescentes dos ghats – e escabrosos – as crianças que aguardam semi-emersas no lodo das margens para saquear cadáveres e aproveitar-se dos dejectos – vão-se somando lentamente para construir um universo multifacetado e perfeitamente coeso, palpável, real. RIVER OF GODS opera um world building de inigualável mestria, onde os dados facilmente reconhecíveis do mundo nosso contemporâneo se revestem de uma capa de estranheza e novidade que vão muito além do mero exotismo local. É como a linha de horizonte de uma cidade percebida através da bruma, ou uma paisagem industrial distorcida pela iluminação nocturna: ali vemos formas que julgamos familiares, acolá percebemos inexistentes as características que pensáramos reconhecer. É um holograma que engana os sentidos e que McDonald manipula a contento, levando-nos alegremente a ver sombras de objectos que lá não estão, e revelando com o júbilo de um ilusionista aquilo que realmente se passa. Não há melhor forma de descrever o acto do livro: através das perspectivas individuais e necessariamente subjectivas do seu extenso elenco de personagens, McDonald vai-nos permitindo perceber toda a riqueza do seu mundo, adentrar progressivamente nos modos de falar e de pensar, imergir-nos na cultura tão estranha e tão credível de uma Índia futura, no limiar de uma guerra e de um desmembramento ainda maior do que o ocorrido em 1947, cem anos antes do tempo narrativo.

Dessa forma nos é apresentado Nandha, o Polícia Krishna, chamado de urgência para realizar o exorcismo a uma fábrica de massa possessa por um demónio, que não é afinal mais do que uma IA rebelde que procura reproduzir-se ilegalmente e a que ele dá caça com outras IAs que se manifestam através de avatares do panteão hindu. Ou Lal Darfan, um actor virtual que interpreta um papel numa novela virtual, um dos programas de maior audiência na Índia e um pouco por todo o mundo, e que se orgulha de nunca se confundir com a personagem que desempenha, sem saber que essa mesma personagem, noutros países, é representada por outros actores virtuais à medida dos gostos locais. Através de cada um deles e da sua interacção com o universo narrativo, absorvemos o palco mental em que decorre a narrativa – e digo palco mental, para o distinguir do que num livro menor seria apenas o mundo alterado pela tecnologia que sempre serve de pano de fundo aos cenários futuristas; se o estranhamento sempre foi um elemento essencial à literatura de ficção científica, em RIVER OF GODS, pela sua conjugação com um mapa cultural que nos é quase totalmente alheio, mas real – o mapa cultural hindu que McDonald domina com invejável proficiência – vê-se utilizado como interface que permite ao leitor mergulhar no miasma sensorial que a leitura exige para ser absolutamente satisfatória. Daí eu ter referido o prazer da leitura incompleta: a menos que o leitor domine a cultura e a religião hindus, sentir-se-á como um turista numa envolvente cultural fascinante e assustadora pela sua parcial impenetrabilidade à compreensão. E penso que essa sensação de estranhamento do próprio leitor é intencional da parte de McDonald, pois apesar de o volume ser acompanhado de um glossário relativamente extenso (págs. 577-583) debalde procurará o leitor cerca de metade dos termos e conceitos de que McDonald lança mão. Fica-se com a sensação de se ler um autor indiano – talvez um desconhecido autor de ficção científica recentemente traduzido por um excelente tradutor – e sentimo-nos obrigados, vez por outra, a lançar um relance ao nome do autor na capa para nos certificarmos de que realmente é McDonald que escreve; ao contrário de Kipling que escreveu sobre a Índia na perspectiva colonial (por muito pró-Indiano que fosse) ou de Simmons que no seu A Canção de Kali (1985) recentemente reeditado entre nós pela Saída de Emergência (2009) nos mostra a Índia na perspectiva de um estrangeiro, McDonald consegue que sejamos nós, que partilhamos o seu background cultural, a sentirmo-nos estrangeiros. O que é de grande importância para melhor se apreciar o segundo e o terceiro actos do livro, quando já imersos no mundo que nos foi tão convincentemente criado – com as suas estrelas virtuais, os seus nutes de terceiro sexo, as suas sinistras conspirações, com os seus interesses geoestratégicos e geopolíticos, com o seu asteróide que abriga uma IA mais velha que o sistema solar – podemos finalmente assistir (mais do que assistir, sermos literalmente arrastados) pelo desenrolar da narrativa que se adensa como as nuvens da monção que se acastelam no horizonte em pé de guerra.

É uma leitura tremendamente satisfatória, daquelas que, como a Night Dawn’s Trilogy (1996-1999) de Peter F. Hamilton, nos convida de imediato a voltar a mergulhar nela uma e outra vez, apreciando os pormenores que nos escaparam da primeira vez. O leitor que a isso se sinta tentado pode dedicar-se a explorar a riqueza do subtexto que McDonald nos permite intuir com o uso certeiro de avatares religiosos e manifestações culturais. Mas essa exploração revelará que tal como os actores virtuais, também as divindades são apenas ilusões a que só os homens dão sentido através de actos irreflectidos. Tentar romper a epiderme do texto servirá apenas para diminuir a ilusão de verdade. E é tão raro quando um livro nos deixa com a sensação de termos entrevisto algo mais.


Outras leituras podem ser encontradas no CÍRCULO DE LEIBOWITZ:

quarta-feira, 13 de maio de 2009

O Regresso da Bang!


A Saída de Emergênciatem disponível no seu site, para download gratuito, o sexto número da revista BANG!. Com capa evocativa do ano Poe que atravessamos (ainda por cima, marca em números redondos o nascimento e a morte do autor, ocorridos respectivamente em 1809 e 1849), apresenta-se mais uma vez de conteúdo abundante. Porque ainda me não foi possível degustá-la a preceito, resta-me apenas fazer uma especial referência (sem demérito para os restantes participantes) ao ensaio de António de Macedo que vem complementar a "tertúlia" que eu, ele e o David Soares mantivemos no número anterior (nos próximos números segue-se um ensaio semelhante do David e, por fim - batam na madeira - o meu), ao conto e ao ensaio de Nuno Fonseca que tem neste número uma participação em cheio, e à primeira parte de um extenso e muito interessante ensaio sobre o papel de Lovecraft na cultura ocidental, assinado por José Carlos Guerreiro Gil, e que estou ansioso por ler com mais atenção.

Importante observar também que a Saída de Emergência volta a inserir na BANG! - e bem - mais um texto com preciosas e pertinentes observações sobre a arte da escrita de género, desta feita assinado por Richard Curtis, renomado agente literário e especialista em matérias editoriais.

A revista electrónica pode ser descarregada aqui, ou directamente do site da editora.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

21 sem Heinlein


Robert A. Heinlein faleceu há precisamente 21 anos, a oito de Maio de 1988. A efeméride em si, não é digna de especial destaque; afinal, não estamos a falar dos redondos 20 anos que se cumpriram no ano transacto, ou do centenário do seu nascimento que se celebrou em 07 de Julho de 2007. Mas este 21 não deixa de ter o seu significado peculiar, no sentido em que praticamente nenhum país do mundo estabelece a maioridade para lá dos 21 anos (apenas me ocorre El Salvador que a fixa nos 25). O que significa que qualquer pessoa que não tenha ainda entrado na maioridade, nunca experimentou o prazer de ter um livro novo de Henlein para ler.

Ainda me recordo das circunstâncias em que pela primeira vez li algo do primeiro Grand Master da ficção científica, mais concretamente a tradução portuguesa de I Will Fear No Evil (1970) no escaldante Verão de 1986. Lembro-me de o ter comprado por não conseguir encontrar um livro do Alistair MacLean de que ia à procura e queria ler algo nesse fim-de-semana. E li-o - todo - sem sair de casa apesar do calor... a não ser para ir procurar mais livros do Heinlein. E que maravilha foram os anos 80, pois ainda era possível encontrar quiosques onde comprar livros aos Domingos, com enormes reservas de velhos Argonautas, em Viana do Castelo (hoje já não existem). Que I Will Fear No Evil não fosse um dos melhores de Heinlein foi apenas mais uma fascinante surpresa... mais um sintoma de que me estava a viciar em Heinlein e, através dele, em FC.

Não voltei a ler esse livro - e ainda não li toda a sua obra, apesar de a ter em casa, devidamente alinhada cronologicamente e complementada por alguns volumes críticos e biografias. Ultimamente, por via do trabalho numa antologia que vai incluir três dos seus contos, voltei a contactar de perto com alguns dos meus títulos favoritos. Alguns, é certo, já não se lêem com o prazer de antes, mas é impossível deixar de reconhecer a presença nas suas páginas do código genético da ficção científica actual.

Visitando hoje as livrarias, já não se encontram frequentemente os seus livros, essencialmente traduzidos para as colecções Argonauta e FC de Bolso da Europa-América, mas com passagem também pela Azul da Caminho. Poucos dos jovens leitores de hoje saberão que durante quase cinquenta anos, de 1939 a 1987, Heinlein foi a força dominante da FC, um género que fez seu e que moldou de forma indelével.

Por isso, e porque 21 anos é demasiado tempo sem Heinlein, aqui no Blade Runner vamos reconstruir, conto a conto, novela a novela, o percurso literário do Homem que nos Vendeu a Lua.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Vasco Granja e a FC



Quando publicou este artigo no Diário de 1 de Março de 1987, prosseguindo incansável a sua missão de divulgar coisas novas à juventude, Vasco Granja tinha 62 anos de idade. Até nisso demonstra o empobrecimento cultural deste país no que concerne à divulgação da arte e da cultura popular. Quem temos hoje, nessa faxa etária (com excepção do António de Macedo, que infelizmente não tem uma plataforma que lhe permita chegar a um maior público), capaz de fazer o mesmo?
Obrigado, Vasco Granja.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

RIP Vasco Granja (1925-2009)


Sem que o conhecesse pessoalmente, Vasco Granja deixou-me uma memória tão viva ao longo dos anos - através da RTP onde apresentava os melhores filmes de animação do mundo, na extinta revista TINTIN, onde escrevendo sobre banda desenhada, me ensinou que havia mais para ler nela do que as meras pranchas e os balões - que sempre acreditei que existiria para sempre... que um dia ligaria a televisão e voltaria a ouvir a sua voz inconfundível.

Agora, nunca mais.

Gostava de poder escrever muito mais sobre ele, mas como acontece com tudo o que temos por certo, nunca nos esforçamos por conhecer melhor. Vasco Granja foi único naquilo que fez, e marcou a nossa geração de forma indelével. Acreditem, como ele foi, não há mais nenhum.

domingo, 3 de maio de 2009

Quinze minutos mais tarde...





... dois focos bem identificados, para quem tiver dúvidas de que se trata de fogo-posto. Acabei de ouvir as primeiras sirenas de bombeiros (segundo me disseram da Protecção Civil, a minha foi a primeira chamada). Estes desgraçados é que deviam ganhar o salário do CR7.

Neste preciso momento...



... começa tudo outra vez...

sábado, 2 de maio de 2009

Burn, Baby, Burn




Hoje, da janela de casa, tenho mais uma perspectiva do país dos Cristianos Ronaldos. Depois de uma noite e uma manhã de sossego, por volta das 11, o regresso das chamas. O quadro é dantesco, marcado pelo eterno compromisso entre o fascínio pelas labaredas devoradoras que emergem, aqui e ali, por entre as árvores torturadas, e a desolação carbonizada que se vê crescer onde o fumo esbranquiçado se ergue, meio tonto, do solo calcinado.



O ar está preenchido pelos gritos dos bombeiros, mas é difícil perceber o que dizem sob o estralejar das chamas que se assemelha a um aplauso contínuo, ou a um mar que investe furioso contra uma praia de seixos. De quando em quando percebe-se um grito a pedir água, água, mas de seguida ouve-se uma árvore a expodir com o calor e a atenção é desviada.



Está um calor quase sahariano e, para sul, o céu é de um azul límpido como o dos olhos de uma sueca, mas para os lados do incendêncio parece um dia de Inverno tal é a densidade do fumo. Não vos vou falar do cheiro. O Verão em Portugal cheira sempre a queimado.

E no entanto, um incêndio que dura já há cinco horas, devorando tudo aquilo que sobrou ontem - por sinal, a única área verde "intocada" em todo o Concelho de Caminha - era facilmente derrotado por um único avião de combate a incêndios. Um avião que custa cerca de 3 milhões de Euros.

Infelizmente, vivo no país dos Cristianos Ronaldos, do país que estoura 650 milhões de Euros na organização de um Campeonato Europeu de Futebol, mas que não compra uma modesta frota de aviões de combate a incêndios, apesar de todos os anos encabeçar a vergonhosa estatística de área ardida em toda a Europa. Um país que brinca aos inúteis TGV, que quer construir pontes e aeroportos, que financia autoestradas que não vão dar a lado nenhum (caso do recente prolongamento da A28), e que permite que a hipocritamente baptizada EDP Renováveis destrua o património natural com barragens e ventoínhas de faz de conta, mas pela-se de medo quando se adianta a mais racional hipótese de construção de duas ou três modernas centrais nucleares.

Felizmente para mim, já há muito desisti deste país.

Ele que arda. Burn, Baby, Burn...

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Hoje à tarde...










... a vista desde o meu alpendre.

Digam o que disserem, a pena de morte resolvia algumas coisas...