sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

And All Through The House (Tales From the Crypt, s01e02, 1989)



Todos os anos, numa certa noite do ano, criancinhas de todo o mundo aguardam ansiosas a chegada do Pai Natal. Nessa noite, os pais pactuam com a ideia de que é perfeitamente normal deixar entrar em casa um perfeito desconhecido, que desce pela chaminé como um comum ladrão, só porque ele traz presentes. No resto do ano, os mesmos pais insistem que as mesmas criancinhas não devem aceitar rebuçados de estranhos, mesmo que eles pareçam uns senhores muito simpáticos. Se há melhor forma de criar uma sociedade esquizofrénica, é difícil imaginar.



Talvez seja por isso que simpatizo tanto com a personagem de Mary Ellen Trainor no episódio “And All Through the House” que Robert Zemeckis assinou para a série TALES FROM THE CRYPT (1989-1996). Quando a vemos pela primeira vez, no cenário doméstico da noite de consoada, está a pegar no atiçador da lareira, enquanto o marido (Marshall Bell) sorve um gole de um copo de whisky. A postura dele, as poucas palavras que profere, queixando-se do frio em tom ainda mais frio, levam-nos de imediato a uma sensação de antipatia pouco adequada à quadra. Ele é claramente alguém que trata mal a mulher. Provavelmente um executivo de escalão intermédio, ou o chefe de equipa de vendas de uma qualquer empresa local. À beira dele, a esposa parece frágil, como um copo prestes a transbordar.




Mas não é. O decorrer da acção não tarda a revelar-nos isso. O Natal é a quadra da família, dizem-nos. Mas é também, enquanto antecâmara do novo ano, uma época de balanços e recomeços. A nossa dona de casa – porque é difícil pensar nela de outra forma; sendo apenas identificada nos créditos como a “esposa”, sem nome que a individualize, ela é certamente alguém que hipotecou a sua individualidade à segurança económica nos braços de um marido de oportunidade – faz o necessário balanço da sua vida no espaço que leva a erguer o atiçador, e o saldo traduz-se no crânio trespassado do marido, decorridos que são apenas três minutos desde que fomos apresentados ao casal.

Há que livrar-se do corpo sem que a filha (fruto do seu casamento anterior) mandada para a cama com a garantia de que nessa noite o Pai Natal não podia vir, se aperceba, objectivo para o qual o poço no quintal da casa suburbana de Pleasantville promete ser meio adequado, e numa noite em que, diz-nos um alerta policial via rádio, que a nossa heroína não ouve, um lunático escapou do asilo e massacrou quatro pessoas nas respectivas residências, de uma das quais furtou um fato de Pai Natal, encontrando-se por isso apropriadamente vestido para a quadra.




É agora um mundo convertido num postal natalício pela excelente direcção de fotografia do prestigiado Dean Cundey que serve de cenário a uma luta de manha, vontade e determinação entre uma dona de casa acossada e a corporização de um pesadelo natalício que se apresenta sob a forma de um Pai Natal alucinado que em vez de presentes traz consigo um machado. A figura rechonchuda que a Coca-Cola nos legou, é substituída por uma criatura grotesca, sonho de qualquer frenologista, a cujo desempenho Larry Drake empresta a adequada dose de alucinação delirante.







A ameaça irracional do assassino à solta faz-nos esquecer o homicídio perpetrado pela nossa heroína, mesmo quando a vemos telefonar ao seu amante, dando-lhe conta da boa nova, e de que a fortuna do marido é agora deles; mesmo quando começamos a somar dois mais dois e nos apercebemos de que ela é uma caçadora de fortunas. Algo que o seu robe de seda vermelho, cor da luxúria e do pecado, cor do sangue e do Natal, já nos fizera intuir. Mas a vida é dura, dizemos a nós próprios com a titubeante firmeza do crente que se prepara para encher o copo dos convidados com água, na esperança de que esta se tenha convertido em vinho. Mas a determinação com que despacha o marido, com que faz frente ao maníaco que a persegue pelo quintal coberto de neve, com que se defende e ataca, obrigam-nos a torcer por ela, fazem-nos temer quando ela se apercebe de que não pode chamar a polícia pois tem o cadáver do marido ainda no quintal, e sorrir quando resolve telefonar à polícia dizendo que foi o maníaco quem matou o marido.



E a verdade, é que quase resulta. E nós queremos que resulte. Depois de tanto esforço, depois de puxarmos por ela, loura, desadequadamente vestida, pura imagem da fragilidade, de a vermos escapar uma e outra vez daquela força imparável de aspecto monstruoso, não queremos que ela acabe assim, traída pela inocência das crianças.







Há uma noite do ano em que lhes dizemos que é normal deixar entrar em casa um perfeito desconhecido, que desce pela chaminé como um vulgar ladrão, só porque traz presentes. E o tom ufano da inocência… I told you Santa would come, and he didn’t even have to come down the chimney. I let him in!... é muitas vezes equivalente ao ressoar fúnebre da morte.

1 comentário:

Miguel Garcia disse...

Bom natal João Seixas!

Estes últimos post mexem com as minhas lembranças, os X-files tenho bastante mais presente, até porque ando a rever a serie toda.

Mas este Tales from the crypt, ao ver no imdb acho que em portugal passaram alguns episódios. Lembro-me de um em especial que na altura o terror foi ampliadissimo pela tenra idade que tinha em que uns médicos faziam uma experiência pós morte com um colega que se via (out of body) em todo o processo que um cadáver tem no seu fabrico.
Gostei do post, e vou investigar!
Abraço

Já agora, ontem ia comprar Com a cabeça na Lua na Fnac Colbomo para oferecer; está esgotado! Acho que são boas noticias!