terça-feira, 20 de abril de 2010

Mapas e Territórios da FC em Portugal




Confesso que hesitei muito antes de responder ao último post do Nuno Fonseca, integrante do debate, interessantíssimo (também muito por mérito dele) que temos travado. Essa hesitação deriva, em primeiro lugar, de uma estúpida sensação de dejá vu que me assaltou. Ao ler o texto do Nuno, era outro o interlocutor que parecia querer intrometer-se. O método retórico a que o Nuno recorreu fez-me lembrar um outro, bem conhecido do nosso fandom, que tinha o condão de transformar qualquer troca de ideias num lodaçal em que era impossível avançar um passo sem ser necessário desbravar o ínfimo significado de cada palavra. Por cada afirmação precipitada que o indivíduo proferia, o debate deslocava-se da substância para a forma: passava-se a discutir não o que ele tinha dito, mas se ele tinha dito aquilo que disse. E essa foi, predominantemente a forma escolhida pelo Nuno para me responder. A ela, somou-lhe uma táctica dúbia, que é tomar os meus silêncios por fuga à resposta, complementada pelo apelo ao leitor que ele não considera iletrado, analfabeto ou acéfalo, com a necessária implicação de que é assim que eu o considero. O Nuno dirá de imediato : “Estão a ver? Não foi nada disso que eu disse! Eu apenas disse que eu não os considero assim”. Mas a verdade, como o Nuno bem sabe, é que a linguagem, felizmente para todos nós que nos sentimos próximos da escrita e dela tiramos algum rendimento, não se confina ao que é dito. Estende-se ao que se sugere, ao contexto em que se diz o que se diz, em suma, reveste-se de capacidades retóricas que a enriquecem e enriquecem qualquer troca de ideias.

Por isso, não vou entrar no jogo do Nuno de estar aqui a dizer que ele interpretou mal aquilo que eu disse, ou que afirma que eu disse coisas que não disse, pois tudo isso é irrelevante. No meu texto, a que o Nuno responde, referi desde logo que considerava que o anterior texto do Nuno (sim, eu sei, isto é confuso) apenas nalguns pontos era susceptível de fricção com o que eu próprio havia escrito: como tal, abordei apenas esses possíveis pomos de discordância, não perdendo tempo a comentar aquilo com que concordo, ou aquilo com que, discordando, considero abarcado por pontos anteriormente abordados. O Nuno considera que isso são “formas epistolares de fuga à resposta”. No entanto, na ânsia de esclarecer as contradições que lhe apontei, o Nuno mergulha desabridamente por uma defesa incendiada da sua posição, fazendo os necessários acertos para que tudo encaixe. E é nesses acertos que tudo desaba.

Atente-se, desde logo, na primeira questão suscitada: O Nuno insurge-se contra a minha observação de que “Fonseca reconhece a realidade essencial que apontei no meu texto: algures entre finais dos anos 80 e meados dos anos 90 do século passado, desvaneceu-se o público leitor”. E o Nuno, não só se insurge contra a minha afirmação, como afirma agora que o inverso é que é o ponto essencial do seu artigo. Porém, aquilo que o Nuno escreveu, claramente e sem subterfúgios foi que (ênfase minha) “Durante cerca de 30 anos, entre os anos 50 e os 80 do século passado, houve pelo menos uma colecção de FC que vendeu como a “uva mijona”: a argonauta. As pessoas faziam esperas aos livreiros para os adquirir, iam regularmente às livrarias à procura do "último argonauta" e ainda hoje todos se lembram disto. Nesse mesmo período todas as grandes editoras tiveram colecções ou publicações regulares de FC e muitas das pequenas também. Por outro lado, hoje em dia, de uma forma ou outra, todas as editoras vão produzindo alguns títulos, de forma completamente casuística na maior parte dos casos, embora numa produção incipiente.” A única coisa em que esta frase difere da conclusão que eu atribuí ao Nuno é a expressão “desvaneceu-se o público leitor”. Mas como melhor sumariar a conjugação de “vendeu como a uva mijona”, “as pessoas faziam esperas aos livreiros”, e “todas as grandes editoras tiveram colecções e publicações regulares de FC e muitas das pequenas também” com “hoje em dia” vão-se produzindo “alguns títulos” “de forma incipiente”? Foram as editoras que perderam a vontade? Foram os autores que deixaram de escrever? Foram as livrarias que se recusaram a vender? Ou foram os leitores que deixaram de comprar?

Toda esta série de perguntas, porém, conduz à minha segunda fonte de hesitação para a elaboração desta resposta: há uma coisa em que o Nuno tem toda a razão. Não dispomos de números que nos permitam responder de forma cabal e incontestável a todas as questões que ele formulou nos seus dois posts. Só que, à luz da argumentação do Nuno, essa ausência de dados impede toda e qualquer resposta; impede mesmo o ensaio de uma resposta. E isso é tão verdadeiro para ele como para mim. Será, portanto, tão irrelevante dizer que a FC vende pouco, como dizer que isso não é verdade. E isso torna inútil qualquer debate. À boa maneira pós-modernista, a tal da esquerda académica que eu aqui critiquei, a falta de prova equivale à prova da falta. Como não há provas de que o Manel matou a Maria, logo o Manel não matou a Maria. E, com um pouco de esforço, chegaremos rapidamente ao extremo: como não há provas de que o Manel matou a Maria, logo o Manel não matou a Maria, logo a Maria ainda está viva. Sei que é uma redutio ad absurdum, mas como me ensinaram há muito na exegese jurídica, esse é o melhor método para testar a bondade de uma premissa ou a eficácia de uma tese. E não se diga que estou a exagerar demasiado. A impressão com que fiquei depois de ler o texto do Nuno foi essa: como não é possível afirmar com toda a certeza que a FC não vende, então ela vende. Mas fico sem saber se será lícito acrescentar, vender vende, pode é não ser comprada. Nunca me adaptei bem a estas realidades panglossianas, a esta vivência no melhor dos mundos, que só pode ser o melhor dos mundos, porque não logramos provar as suas deficiências.

É um argumento que eu até posso aceitar: implica o fim da discussão, pois tudo o que nos resta, como o Nuno diz, é formular uma questão atrás da outra. Só que nenhuma dessas questões vai ter a resposta que o Nuno exige, com números concretos, pois ninguém está disposto a avançar com eles. E quando avançam, são números debatíveis, porque existe uma miríade de razões (desde económicas, fiscais, e outras mais) que justificam que uma editora esconda os números reais das vendas. Não importa que elas não tenham o mínimo pejo em alardear os milhares de exemplares e as trintenas de edições sucessivas de Bolaños, Luís Miguéis Rochas, Xicos Viegas, Sousas Tavares, Rebelos Pintos e outros tantos mais. Mas quando chegam à FC... Aí, o segredo reina. Só aí os números têm que ser escamoteados, porque é uma vergonha e um prejuízo irreparável para as editoras confessarem que por cada 10.000 ou 30.000 Sousas Tavares que vendem, conseguem empurrar mais do que 1000 exemplares de um livro de FC. Há, por isso, que escamotear as vendas… certamente para não envergonhar os autores sérios, que poderiam ficar melindrados por venderem tanto como os rasteiros autores de histórias de lulas no espaço.

O Nuno certamente contrapor-me-á que apenas estou a referir os best-sellers, que isso é um fenómeno à parte. A questão não é nova. Penso que foi o David G. Hartwell quem contou esta história (e se não foi, peço que me perdoem, mas estou a escrever de memória): Um dia é chamado ao gabinete do director-mor do Grupo Editorial onde dirigia a linha de FC, que lhe diz “Estamos a pensar descontinuar a linha de FC, porque está a vender muito pouco”. O editor, surpreso, contrapõe, “A vender pouco? Mas se tenho dois livros no top de vendas do New York Times há mais de três meses”. “Ah, sim?” pergunta o big boss, de pé atrás “Quais?” “Os dois últimos do Asimov”, responde o editor. “Aaaah. Mas o Asimov não é FC. O Asimov é best-seller”. Só que os best-seller são uma categoria, não são um género. E há, também, best-sellers no Fantástico e na FC, como os há na Fantasia. Só cá é que não. E é de cá que estamos a falar.

Curiosamente, neste ponto, a falta de números e a falta de provas não são exigidas pelo Nuno para afastar os números apresentados pelas editoras. Para ele basta-lhe a existência de razões para que elas escamoteiem os seus números. E não é o único ponto. Quando me pediu estudos sobre a distribuição demográfica do consumo de FC, indiquei-lhos efectuados entre finais dos anos 70 e 2005. Como lhe dava jeito, escondeu o de 2005, e centrou a atenção no facto de datarem de início dos anos 80. Mas, pergunto eu, e os números para os contrapor, para mostrar que eles são hoje diferentes? Irrelevante. O Nuno aprendeu a gostar de F com a mãe e conhece muitas meninas que lêem FC. Esquecendo que, para quem pede números objectivos e estudos científicos, a experiência pessoal e a evidência anedótica são “major no nos”.

E nesta linha poderíamos seguir ad infinitum, sem que nada se adiantasse e nada se ganhasse. No entanto, e como o Nuno bem sabe, embora prefira fazer de conta que não, onde não existem dados concretos, existem indicadores. Alguns desses indicadores são objectivos. Entre eles podemos contar:

a) Publica-se, hoje, menos FC do que antes.
Esses dados podem ser ainda mais concretizados e de forma objectiva: não levando em consideração as obras slipstream, ou o surgimento de volumes pontuais publicados fora de colecção por editoras que normalmente não publicam FC, e não distribuídos como FC, publicaram-se em Portugal, entre Janeiro de 2000 e Dezembro de 2009, 318 livros de FC, destinados ao público adulto. Essa publicação foi efectuada por 5 grandes editoras (Gailivro, Presença, Saída de Emergência, Livros do Brasil e Europa-América) e duas pequenas editoras (Livros de Areia e Chimpanzé Intelectual).
Concretizando ainda mais esses dados, é possível observar que a publicação desses 318 livros se distribuiu de uma forma absolutamente desequilibrada, com 299 a serem publicados entre 2000 e 2005, e apenas 19 entre 2006 e 2009. Um diminuição, portanto, na ordem dos 94% em apenas 5 anos. (Seria interessante observar que livros de Fantasia ou outros géneros concorrentes foram publicados nesse ano e qual as suas vendas, e analisar a sua potencial influência sobre esta diminuição na publicação de FC. Mas já todos conhecemos a resposta, não é?)

b) Das editoras referidas anteriormente, duas delas (Europa-América e Livros do Brasil) cessaram praticamente a publicação de FC, descontinuando as suas colecções. Das três grandes editoras remanescentes, uma delas (Presença) apresentou uma diminuição acentuada na publicação de FC entre 2000-2005 (25 livros) e 2006-2009 (2 livros). As duas remanescentes apenas tiveram actividade significativa após 2005, pelo que não é relevante qualquer comparação. Objectivo, também, é que as duas primeiras (que cessaram a publicação) publicavam apenas ou maioritariamente FC (em detrimento de outros géneros do Fantástico, como o Horror ou a Fantasia), a terceira concentrou-se quase exclusivamente na Fantasia ou na Literatura adolescente, e as duas restantes incluem as obras de FC em colecções maioritariamente dominadas por obras de Fantasia ou outros géneros do Fantástico.

c) Todas essas editoras, nas escassas informações prestadas, maioritariamente através de entrevistas ou reportagens, indicam uma média de venda das obras de FC em torno dos 600 exemplares.

d) O mesmo número era já indicado também pela Caminho aos seus autores, em período anterior ao referido em a).

e) Os números indicados permanecem constantes independentemente da apresentação gráfica das obras ou das diferentes “máscaras” com que estas são comercializadas. Permanecem também constantes independentemente do preço de capa ou da qualidade desta, e independentemente de serem incluídas intra ou extra-colecção. Estes números aumentam na sequência de adaptação cinematográfica ou televisiva ou tie-in com as mesmas. (Estes dados parecem indicar ou uma constância do número de leitores de FC, ou uma constância de leitores de FC que dividem os seus afectos por sub-géneros da FC ou que, em ultima instância, compram FC enganados ou apenas pelo efeito de arrasto do sucesso das vertentes áudio-visuais).
f) No início dos anos 1980 assistiu-se a um incremento de publicação de FC, de certa forma mais consistente e concertado do que o que fora experimentado no imediato pós-25 de Abril. (Em ambos os casos, existem possíveis explicações sociológicas ou culturais para o facto: no primeiro caso, a conotação da FC com futuro, progresso e contra-cultura em meados dos anos 70, perfeitamente condizentes com a euforia pós-revolucionária; e no segundo caso pelo grande sucesso de STAR WARS, CE3K e E.T. e pela aproximação do ano de 1984).

g) Estudos recentes indicam que a frequência do ensino superior mais do que triplicou entre 1990 e 2005, e que as universidades são mais frequentadas por estudantes do sexo feminino do que masculino. Os mesmos estudos, ou estudos similares, indicam que se lê cada vez menos nas camadas universitárias e que a dita iliteracia funcional atinge em Portugal valores da ordem dos 80%.

h) São menos de 15% os portugueses que recorrem às compras on-line, seja em Portugal seja no estrangeiro. Desses, apenas uma percentagem escassa compra livros. (É certo, como eu já tinha aventado no meu primeiro post, e como o Ricardo Loureiro deu testemunho pessoal na caixa de comentários, que muitos leitores deixaram pura e simplesmente de ler em português, preferindo ir directamente à fonte. Mas atenta a percentagem de compradores on-line e a percentagem ainda menor de consumidores on-line de livros – para não referir já a ínfima minoria que compra livros de FC on-line – esse dado é negligenciável).

Todos estes são indicadores objectivos de que algo vai mal, muito mal, com a literatura de FC em Portugal. A sua conjugação parece indicar que esse é um problema que vai muito além da falta de números objectivos. A ideia de que existe um exército de leitores de FC formado nas últimas décadas, carece de todo de sustentação, quer a nível de factos, quer a nível de indicadores. A afirmação contrária, de que existiam leitores em número suficiente para manter várias colecções simultâneas ao longo de vários anos, prova-se pela existência dessas colecções (e não colhe aqui defender que algumas editoras poderiam – sempre a hipótese, nunca o facto – não pagar direitos, não pagar tradutores, não ter qualidade, não pagar ilustradores, etc… Essa realidade, a existir, permitiria aumentar os lucros das editoras, mas é irrelevante para o número de leitores, que compravam esses livros, ao mesmo preço, independentemente das práticas editoriais).
Penso que, no essencial, o Nuno tomou o mapa pelo território, e não vendo a grande cratera no mapa, resolveu negar a sua existência no real, mesmo enquanto os pés lhe escorregavam pela ladeira. Não quero, porém, menosprezar o texto do Nuno. Apesar de não corresponder à realidade que todos conhecemos, levanta inúmeras questões pertinentes e para as quais era importante encontrar uma resposta. Mas apenas porque todas elas apontam para um facto incontornável: não há FC de qualidade nas prateleiras das livrarias nem nos catálogos dos editores.

2 comentários:

n.fonseca disse...

Não me vou demorar. Somente para dizer que penso a tua opinião sobre o o estilo na troca de ideias completamente errada. Exemplarmente, nem fui eu a iniciá-lo. Mas achei que as afirmações feitas careciam de alguma refutação. Se isso não foi feito da melhor ou mais desejada das formas? Seja. Para mim tb não foram mas como sabes não deixaste hipótese para o contrário.

Fait-divers. Fait-divers prejudiciais à conversa essencial.

O essencial, o de que continuarei a afirmar que não sabemos o que foi a realidade da expressão do mercado de FC, e que continuamos sem poder avaliar no presente, continua de pé. Ignoro se a FC venderá ou não, e afirmei-o. Nunca disse que sim ou que não. Gostaria que sim, como é obvio, mas não sei e nunca soube. Limitei-me a questionar alguns dados e afirmações, com algumas informações disponíveis.

Para variar, fazer este tipo de perguntas que fiz (pertinentes ou não), fazem as águas agitar-se nos bons e nos maus sentidos.

A realidade é o que é.

Como já afirmei no lugar próprio, não argumentarei mais sobre o resto. Os leitores de ambos que compreendam o que quiserem e puderem, e tirem as suas conclusões.

E boa sorte para ti João, no prosseguimento da questão e para quem continuar a conversa. Decerto que o género da FC agradecerá todos os novos contributos.

João Seixas disse...

Nuno, neste momento, e no impasse a que se chegou por via da tua imposição da necessidade dos números, penso que realmente não será muito útil estar a arrastar uma questão que se resume a duas percepções diferentes da realidade editorial da FC.

Mas a troca de ideias, parece-me, foi profíqua, agitou as águas, e permitiu pelos menos deixar algumas questões e alguns dados pertinentes que servirão - mesmo que de forma muito superficial - como plataforma de partida para o próximo nível da discussão.

Esse poderá passar, por exemplo, sobre o que justifica a percepção (já que também não dispomos de números "oficiais") de que a Fantasia da treta vende como pãozinho quente, e qual o papel e o efeito que editoras como a Gailivro têm sobre o estado actual das coisas. E note-se que não falo do grupo LeYa nem o diabolizo; nunca o fiz nestes posts, tendo mesmo afirmado que não vejo diferença entre a Gailivro e a LeYa-Gailivro. As políticas editoriais mantiveram-se e foram, e são - isso sim, afirmei e mantenho - do mais pernicioso que alguém alguma vez tentou contra a qualidade do Fantástico em Portugal.

Mas a isso, iremos noutra altura.

Um abraço,

Seixas