domingo, 30 de setembro de 2007

Barreiros na TV



Hoje à noite, na RTP2, pelas 22H30 (se a emissora cumprir com a programação), o imbatível João Barreiros subirá ao ringue (perdão, ao estúdio) para um dilacerante combate retórico com o físico Carlos Fiolhais. Em jogo, a literatura de Ficção Científica. O evento será arbitrado pela Paula Moura Pinheiro, no palco da Câmara Clara. Algumas informações oriundas de inside trading privilegiado dizem-me que o Contacto de Sagan volta a estar sobre a mesa.

É caso para perguntar: que livros de FC anda a ler a nossa comunidade científica desde 1985?

Mais comentários após o evento...

What's Up?



Final de mais um mês atarefado com a papelada que vai ajudando a pagar as contas, onerando porém este blogue com actualizações mais esporádicas. Que se passou entretanto, desde o final do MOTELx?

Desde logo, e num único dia (21 de Setembro) tive o prazer de apresentar na FNAC do Colombo o primeiro romance de David Soares, A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência). A sala esteve composta e a audiência foi-se fixando, captiva do livro e do autor, senão das modestas palavras do apresentador. O Luís Rodrigues captou o momento para a posteridade, de forma que aqueles que não estiveram lá, ou que ainda não tiveram oportunidade de visionar o filme no blogue do David, podem fazê-lo agora.




Foi também uma oportunidade de rever o fandom nacional (esteve lá quase todo), e apenas o prólogo para um fim-de-semana irrepreensível que incluiu uma visita à Quinta da Regaleira (um dos cenários da Conspiração) guiada de forma fascinante pelo David Soares; também a oportunidade de provar um delicioso jantar preparado pela Gisela em casa do David, e beber café preprado numa engenhoca que aparece também no livro (fotos da experiência em breve).

Oportunidade ainda para pôr a conversa em dia com o Luis Corte-Real (em casa de quem eu a a Carla passamos o fim-de-semana) e ultimar detalhes quanto a duas novelas minhas que a Saida de Emergência vai publicar a partir de 2008.

Também no dia 21, o Público distribuiu uma nova edição da colectânea Ficções Científicas e Fantásticas (da Chimpanzé Intelectual), ao preço modesto de € 7.50. Refiro-o com certa ambiguidade, pois a colecção de contos de diversos autores (desde os inevitáveis João Barreiros, Luís Filipe Silva e David Soares aos inesperados Rui Zink, Clara Pinto Correia e Luísa Costa Gomes) não brilha pela qualidade, servindo antes e uma vez mais para demolir as teses daqueles que defendem a inexistência, quer de géneros literários, quer de protocolos de leitura próprios desses géneros. De referir, porém, que o conto de Clara Pinto Correia, por si só, justifica a compra do volume, pois é tão inacreditavelmente mau e negligente que, fosse eu o editor do volume, teria que o encarar como um insulto pessoal (se não queria escrever na área do fantástico, só tinha que o dizer). Posto isto, é uma boa prenda para quem não gosta de FC&F: confirma todos os seus preconceitos, e apresenta poucos pontos favoráveis. Uma vez que afirmações destas exigem sustentação fáctica, esperem por uma crítica mais detalhada num dos próximos domingos.



Ainda no dia 21, terminou finalmente o Verão. Como o Outono é estação de Halloween e folhas moribundas, granito húmido e névoas vagabundas, resolvi dedicar as noites de sexta-feira no Blade Runner a revisitar alguns dos Midnight Movies que fizeram do fantástico, do excesso e da violência marcas indeléveis no nosso crescimento. Arrancaremos estas midnight sessions no próximo dia 5 com The Wild Angels (1966), o clássico de Roger Corman que fez de Peter Fonda um ícone da estrada muito antes de Easy Rider (1969).

terça-feira, 11 de setembro de 2007

SEIS ANOS DEPOIS...




... continuam a faltar as palavras.

sábado, 8 de setembro de 2007

HORROR COM SOTAQUE DO NORTE






A Noiva (2006) é o título da curta-metragem (cerca de 6') que Ana Almeida realizou na zona de Entre-os-Rios, precisamente ali onde o Douro se tornou tristemente conhecido pelo temperamento inconstante e violento. A fotografia de Jorge Quintela captura perfeitamente esse temperamento sombrio e plúmbeo, puxando o espectador para o interior duriense, na peugada de Maria (Bárbara Magalhães) e Fernando (Rodrigo Santos), um jovem casal adúltero (ela tem um namorado, e não é o Fernando) que procura numa velha quinta abandonada o cenário propício à consumação carnal.

Ora, não é preciso consultar o acervo de clichés das séries Scream ou Scary Movie para saber que promiscuidade + sexo + local ermo + jovem atractiva = morte violenta. É a receita de qualquer slasher movie que tenha assombrado as telas desde que Halloween (1978) e Friday the 13th (1981) nos apresentaram Michael Myers e Jason Vorhees.

Ana Almeida e José Pedro Lopes (que assina o argumento) não deixam de seguir a fórmula, fazendo-o conscientemente e com uma piscadela de olho a David Lynch, numa citação directa de um momento iconográfico de Twin Peaks (ver foto). Não é o suficiente para distrair o espectador da escassez de argumento; a curta-metragem não chega a contar uma história, limitando-se a homenagear incontáveis sequências semelhantes de outros tantos filmes.


No entanto, funcionaria na perfeição como uma cena de um filme mais longo; a atmosfera está muito bem construída e, coisa agradavelmente surpreendente, Bárbara Magalhães e Rodrigo Santos conseguem manter uma interpretação segura e constante (apenas uma fala de Rodrigo me fez arreganhar os dentes pela pouca naturalidade). Os diálogos são naturais e realistas e nota-se na realização um flair visual para imagens ao mesmo tempo glaucas e inquietantes.



De lamentar apenas a fragilidade dos efeitos visuais gore e a curta duração, que priva a acção de um pouco mais de suspense e coerência. No geral, uma agradável surpresa que nos fará procurar futuros trabalhos desta jovem equipa. Ana Almeida realizou já uma outra curta-metragem (Uma Questão de Sangue, que não vi) onde trabalhou também com Rodrigo Santos e que é um título a procurar.
Mais informações sobre esta curta, podem ser encontradas aqui.

Resta-me agradecer ao José Pedro Lopes por me ter chamado a atenção para este filme e pela amabilidade de me ter cedido uma cópia a fim de poder escrever este pequeno texto.

OS CONTOS DO HOMEM PEIXE

O Lançamento da antologia Contos de Terror do Homem-Peixe, teve lugar no cinema S. Jorge (há dois dias), perante uma sala bem composta e contou com a presença de praticamente todos os autores, ilustrador, editor e coordenadora do concurso, a simpática Catarina Ramalho do CTLX.

Para aqueles que não estiveram lá (e se não estiveram, onde estavam?, como certamente perguntaria Baptista Bastos, se lá tivesse estado), aqui fica uma foto do evento, da autoria de Luís Rodrigues.



Da esquerda para a direita: Miguel Neto (editor da Chimpanzé Intelectual), António de Macedo, David Soares, João Maio Pinto (autor das magníficas ilustrações), João Seixas (vosso anfitrião neste blogue), João Barreiros, Possidónio Cachapa, Fernando Ribeiro, Guilherme Trindade Filipe (menção especial do júri) e Pedro Martins (vencedor do 1º Concurso de Contos de Terror do CTLX).

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

MOTELx: ROOM SERVICE




O género do Horror é um género eminentemente sensual. Tal como a pornografia, o drama ou a comédia, o seu anseio – e a medida do seu sucesso – mede-se pela intensidade do efeito físico que logra provocar. E, como qualquer outro género, reside num eterno presente, que se renova pela reciclagem dos instrumentos que se mostraram capazes de suscitar aqueles efeitos.

Por tal razão, é difícil, na longa genealogia de cerca de 270 anos (desde que os Graveyard Poets, Blair, Boswell, et. al., introduziram uma nova perspectiva e tratamento da morte) encontrar marcados pontos de ruptura com a tradição que antecede cada obra. Facto que é tão verdadeiro no Horror escrito como nas suas manifestações cinematográficas.

Um tal ponto de ruptura, pode procurar-se no trabalho dos autores representados no documentário The American Nightmare (que ontem passou no S. Jorge) de que já aqui falamos, naquele curto e furioso período que se estendeu entre 1968 (The Night of the Living Dead) e 1977 (ano de Star Wars, e da reposição dos valores da família).

Não se pense que tais marcos, porém, são meramente arbitrários: uma análise minimamente atenta aos títulos mais marcantes do Fantástico a partir de 1977, centram-se quase que exclusivamente na exploração dos limites do conceito de família nuclear. Onde esta era subvertida por Romero (a filha que devora a mãe, cobrando assim o máximo sacrifício parental), Hooper (a família disfuncional de The Texas Chainsaw Massacre) ou Carpenter (o desaparecimento dos pais ou a entrega dos filhos a nannys, que não possuem o necessário instinto maternal e que viria a caracterizar um verdadeiro subgénero posterior), passa a ser afirmada como único reduto de salvação em obras como Poltergeist (do mesmo Hooper, 1982), ou mesmo no sucesso comercial de Kramer vs Kramer (Benton,1979) e The Brood (Cronemberg, 1979) ou este H6: Diário de un Asesino (Barón, 2005, ainda que com um curioso twist final), que será projectado na sexta-feira, no âmbito do festival.

Curiosamente, fenómeno idêntico tinha já ocorrido no ocaso do Gótico, quando o conceito de domesticidade foi introduzido na literatura, substituindo o sense and sensibility.

E é no Gótico que encontramos as raízes do horror moderno: ambos respondem à ânsia de sensações extremas num mundo urbano, confortável e homogeneizado.

Neste sentido, uma coisa que se parece observar, é que o Horror filmado regressou uma vez mais às raízes “B”, sendo de produtoras independentes ou especializadas que surgem as obras mais marcantes, a par de uma inusitada e completamente inesperada deslocação dos conteúdos mais ousados do cinema para a televisão (como se a família, tivesse deixado a sala de estar e se tivesse mudado, em peso, para os cineplexes). Desapareceram completamente das telas dos cinemas produções dos grandes estúdios como The Haunting (Wise, 1961), Rosemary’s Baby (Polanski, 1968) The Exorcist (Friedkin, 1973), ou mesmo o Jaws (Spielberg, 1975). Neste último caso, é pertinente observar como o homem e o filme que criaram o summer blockbuster, se transmutaram, em 1993, no desdentado Jurassic Park.

Poderá isto ser explicado, por uma nova domesticidade do horror? Ou por uma crescente concorrência de fontes de frisson, que competem com o Horror e o empurram para as margens?

O fornecimento de sensações extremas foi tomado de assalto por parques temáticos e desportos radicais (perfeitamente sanitários na sua não menos extrema segurança) e apropriado pelos próprios telejornais (com os seus sensacionalismos vácuos) e programas da manhã (com os seus desfiles de desgraças, doenças e casos da vida).

Escrevendo sobre o Gótico, Clive Bloom (Gothic Horror, 1995): “At once escapist and conformist, the gothic speaks to the dark side of domestic fiction: erotic, violent, perverse, bizarre, and obsessively connected with contemporary fears”.

No caso do cinema de Ivan Cardoso, essa dicotomia assume uma curiosa ironia, pois muitos dos seus actores são rostos bem conhecidos das assépticas novelas da Globo (o doméstico por excelência, num mundo idealizado e confortável, onde a vilania é sempre punida), e surgem em filmes como O Segredo da Múmia (1982) As Sete Vampiras (1986) ou Um Lobisomem na Amazónia (2005) em cenários, papéis e comportamentos completamente inesperados, “eróticos, violentos e bizarros” (voltaremos ao cinema de Ivan Cardoso num próximo post).

Na verdade, e no que se refere ao fornecimento de sensações extremas, é fácil imaginar as nossas donas de casa, alimentadas a novelas e programas matinais a comportarem-se como a Miss Andrews de Northanger Abbey (Austen, 1817), “a sweet girl, one of the sweetest creatures in the world” que, no tocante a novelas de horor, “has read every one of them”.

Tal como a novela gótica, o horror filmado contemporâneo é composto por um punhado de títulos de referência – aceites pelo mainstream – e uma corrente subterrânea de obras marginais, mais extremas, que penetram nos medos contemporâneos, trazendo à superfície as feridas sociais que o estado wellfare cobre com mera cosmética: a pedofilia, os serial killers, as doenças que não conhecem fronteiras (Gripe das Aves, Vacas Loucas), ou a simples consciencialização da perda do controlo que exercemos sobre as nossas vidas numa sociedade de efeitos globais. Ou a simples, imponderável e assustadora senescência.

Todos estes medos estão presentes, de uma forma ou outra, nos títulos seleccionados para a secção Room Service.

Dos títulos propostos, de que nos chegam ecos de outros festivais, devo confessar que apenas conheço o já referido H6 (Barón, 2005), que recomendo vivamente, com algumas ressalvas que discutirei num outro post dedicado exclusivamente a esse título. Dos restantes, a comédia neo-zelandesa Black Sheep (Jonathan King, 2006) retoma a fórmula popularizada por Shaun of the Dead para nos apresentar uma praga de carneiros zombies numa região do mundo onde há mais carneiros (muito mais carneiros) do que humanos. Pedirá sempre comparação com o clássico Night of the Lepus (1972), embora a participação da empresa Weta (responsável pelas armas e demais accoutrements da trilogia Lord of the Rings) lhe permita um aspecto visual com que o clássico de William Claxton nunca poderia sonhar. Pode bem ser um filme que faça finalmente jus ao dito dos Monty Python, “there’s no animal more dangerous than a sheep with ideas”.

The Living and the Dead (2006), do britânico Simon Rumley, assume um tom tipicamente british para exorcizar numa comédia negra, aquilo que Rumley descreve como “the trauma of having to watch my mother die of cancer”. No entanto, ao mesmo tempo que exorciza a sua experiência pessoal, quando Donald (Roger Lloyd-Pack) deixa a esposa acamada (Kate Fahy) aos cuidados de uma enfermeira, que o filho do casal (Leo Bill), igualmente dependente de medicamentos prontamente expulsa de casa para mostrar a sua capacidade de tomar conta da mãe, Rumley oferece-nos uma análise certeira e pungente, quer da dependência medicamentosa em que se encontra grande parte da população ocidental, quer do encargo cada vez maior que a idade avançada e a doença prolongada representam nos nossos dias.

A ideia mais assustadora, porém, pode perfeitamente ser aquela que nos faz pensar que o comportamento societário, só pode ser mantido por forte medicação e, livrássemo-nos da carga de estimulantes, anti-depressivos e ansiolíticos que fazem a fortuna das farmacêuticas, e a sociedade desabaria como um castelo de cartas aflorado por um sopro.


O filme que me suscita maior curiosidade é Mulberry Street (Jim Mickle, 2006), um regresso aos ratos assassinos de Rats - Notti di Terrore (Bruno Mattei, 1984), numa Nova Iorque pós-onze de Setembro, e que parece fechar o círculo de domesticidade e família de que vínhamos falando, ao mesmo tempo que tudo se vai fechando: o prédio na rua que dá título ao filme, expropriado para demolição pela Câmara, gerando uma camaradagem de vizinhança que vai ser testada à medida que se prolonga o cerco de homens-rato, infectados pelo vírus; Manhattan, cujos acessos são encerrados como naquela fatídica terça-feira de 2001; e a distância através da geografia nova-iorquina enervantemente calma e silenciosa que separa Casey (Kim Blair), que regressa de uma comissão no Iraque do pai Clutch (Nick Damici, que também escreveu o argumento).

São dedadas fortes que ficam impressas nas telas dos nossos cinemas, sempre a realidade lhes consegue deitar a mão. Certamente nenhum destes filmes se converterá num clássico do Horror, mas que isso não nos impeça desfrutar de quatro snapshots dos terrores contemporâneos.

Tal como as novelas góticas de onde nasceram há um par de séculos, revelam “surprising social relevance in their apparently escapist fictions” (Walter Kendrick, The Thrill of Fear, 1991).

MOTELx: O ARRANQUE

E depois de toda a antecipação, o MOTELx arrancou finalmente, e de forma exemplar.

O agradável convívio no pátio interior do Palácio Belmonte, onde decorreu o cocktail de recepção aos convidados, com direiro a uma vista magnífica sobre o Tejo e a outra margem, serviu para trocar ideias com o António de Macedo, o João Maio Pinto (que vê hoje também estrear no cinema S. Jorge a exposição de ilustrações com que enriqueceu a colectânea de Contos de Terror do Homem Peixe, que amanhã é apresentada ao público) a Safaa Dib, o Pedro Souto o João Monteiro e a Catarina Ramalho do CTLX, e sobretudo com as "estrelas convidadas", Ivan Cardoso e Mick Garris (na foto com este vossos anfitrião).


Mas o cocktail foi apenas o aperitivo para a primeira sessão cinematográfica que abriu oficialmente o Festival de Cinema de Horror, com o documentário The American Nightmare. Diz quem conhece, que não se lembrava de ver o S. Jorge de tal forma apinhado. A foto mostra apenas o final da longa fila, quando ia já largamente ultrapassada a hora prevista para o início da sessão.


Único ponto fraco da noite, a curta-metragem que antecedeu a projecção do documentário.

Com realização de Pedro Baptista (que esteve presente para a apresentar), os doze minutos deste Sangue Sobre Vermelho (2006) colocam mais uma vez em evidência que a fragilidade da produção nacional não advém da falta de meios-técnicos (a sonoplastia e a fotografia não merecem reparos de maior) mas da incapacidade crónica a nível de argumento e direcção de actores. Ou, no caso, na não-direcção de não-actores.

Constituindo mais uma re-interpretação do conto do Capuchinho Vermelho, a curta arranca de forma promissora com a bem filmada e alucinante corrida do pai/lobo (João Urbano) por um bosque denso, até à cabana onde se encontra a avó (Urbana Conceição Jesus) e a capuchinho (Ana Raquel Ramos). Os avanços sexuais e incestuosos do lobo sobre a capuchinho, vão desencadear uma série de actos violentos que desembocam num dos mais infelizes clichés de que há memória no cinema recente. Esquecida fica qualquer razão para a corrida inicial, que não a intenção predatória.

Se a sucessão de imagens não chega a constituir uma narrativa coerente e auto-suficiente, o efeito é minado de forma inapelável pelo uso desastrado da trilha sonora e pela incapacidade expressiva dos intérpretes principais, com Urbana Conceição Jesus a arrancar involuntárias gargalhadas ao proferir um seco e impassível "Filho, não" perante o avanço do lobo ameaçador com o machado assassino, uma citação directa de Jack Nicholson em The Shining. Também o guarda-roupa de Ana Raquel Ramos faz lembrar de forma pouco confortável aquela icónica imagem de Hard Candy (David Slade, 2005), sublinhando mais uma vez o facto de que a homenagem é por vezes difícil de distinguir da falta de imaginação.

A noite terminou há pouco, numa esplanada dos Restauradores em companhia do David Soares e da Gisela.

Tudo considerado, está de parabéns a organização.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

A CONSPIRAÇÃO DOS ANTEPASSADOS: UMA ENTREVISTA COM DAVID SOARES



Nesta frenética rentrée, repleta de novidades para os amantes da literatura e do cinema de Horror, chega hoje às livrarias o primeiro romance de David Soares, A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência). Aqueles que já apreciavam os seus contos e álbuns de BD, ou a inteligência que coloca nos ensaios que dedica aos mais diversos assuntos, vai encontrar neste livro todos os ingredientes a que já está habituado. Quem nunca leu David Soares, e quiser experimentar este romance, vai descobrir um mosaico literário de delicada artesania, composto de exaustiva pesquisa histórica, um saudável cinismo autoral e um sentido de ritmo narrativo que o manterá agarrado da primeira página até à fascinante secção final, informativa e profusamente ilustrada. Quem não estiver para aí virado, sempre poderá desfrutar do agradável aspecto gráfico do livro (do qual não resisto a destacar o tratamento dado à lombada).


A publicação deste livro dá o mote a mais esta entrevista; como bom conversador que é, acabamos por falar de muitos outros tópicos.

David, depois de teres explorado várias técnicas narrativas, desde o conto ao argumento de Banda Desenhada, surge agora o salto para o romance. Trata-se de uma história que tinha de ser contada assim, ou sentiste que já tinhas esgotado a forma curta?

O modo como uma história começa a ser formada na minha cabeça, muitas vezes começando com um cruzamento de ideias ou uma determinada imagem, diz-me, logo no início, se ela se vai tornar um conto, um álbum de BD ou, neste caso, um romance. Tudo se relaciona com aquilo que a história precisa: algumas ideias prestam-se melhor a serem contadas com palavras e imagens, outras só com palavras; não existe uma situação de esgotamento diante de um modo particular de desenvolver um enredo.

A Conspiração dos Antepassados” é um livro que me acompanhou durante muito tempo, mesmo quando, na sua fase embrionária, se resumia a dois trabalhos diferentes: uma biografia sobre Fernando Pessoa e uma biografia sobre Aleister Crowley, ambas iniciadas há quatro anos, mas, entretanto, interrompidas em virtude de outros trabalhos. No primeiro caso, tratava-se de um trabalho em spoken-word chamado “Os Quatro Elementos”, uma biografia ficcionada sobre Pessoa, com bastante hermetismo à mistura. No segundo, pensei em escrever uma trilogia em BD; comecei a escrevê-la, mas não tive sorte em encontrar um desenhador que quisesse aventurar-se numa tarefa tão grande. Esses projectos nunca saíram do meu horizonte, contudo e, mais tarde, conjugaram-se de um modo natural noutro formato. É revelador da plasticidade das histórias: quem deseja trabalhar como contador de histórias não pode olhar para as ideias como objectos estanques.

Penso que tenho muita sorte enquanto escritor porque também sou um desenhador e o meu trabalho em banda desenhada é muito útil no que alude à visualização de ambientes e personagens. Em essência, vejo aquilo que escrevo com bastante clareza. É preciso esclarecer que tanto a banda desenhada como a prosa são dialectos distintos do espectro visível composto pelas linguagens narrativas: ou seja, as duas são ferramentas perfeitas para contar histórias.

Dizes no teu blogue que este livro é, até agora, o que traduz de modo mais eficaz as tuas “preocupações autorais, temáticas e ambientes”. Vertentes que se prestam deliciosamente a exploração, começando por sondar em que sentido traduz este livro que agora chega às livrarias as tuas “preocupações autorais”?

Gosto muito de escrever contos, e entendo-os como peças muito específicas, cirúrgicas, até, mas um romance é uma forma maravilhosa de brincar com aquilo que mais nos fascina porque é muito maior. Não me considero uma pessoa negra, mas o meu universo autoral é feito de imagens negras. Penso que possuo uma sensibilidade mais escura no que diz respeito à abordagem aos assuntos e é essa qualidade que se transfere para o produto final. “A Conspiração dos Antepassados” não é excepção porque contém elementos de romance histórico, de thriller, de literatura fantástica, mas, no seu âmago, é ainda um livro de horror. É um romance de horror sobre um período especial da história de Portugal, uma história de horror sobre Fernando Pessoa, Aleister Crowley e Lisboa. Penso que por ter sido escrito com a já referida sensibilidade negra em mente acabou por ficar com uma intensidade insuspeita.

Trata-se de um romance onde exploro muita coisa que me dá prazer: o estudo da história e as ciências ocultas, por exemplo. Eu sou ateu e não acredito em Deus e na existência do espírito, mas gosto muito de escrever sobre temas sobrenaturais. Apenas tento observá-los à luz do cepticismo, tento descobrir novos pontos de vista para escrever sobre eles. Acredito que existe mesmo um ponto de encontro entre a ciência e o oculto porque a maioria dos conceitos herméticos encontra um reflexo na ciência. Acho que alguns feiticeiros foram mesmo proto-cientistas, mas na ausência da terminologia da física e da química usaram a astrologia e a numerologia para descreverem as experiências e as descobertas. Estou a lembrar-me da Árvore da Vida cabalística, que cito múltiplas vezes no romance. É uma forma poética, mística, de falar sobre aquilo que os físicos e os astrónomos actuais chamam de Multiverso. O nosso universo é composto por 90% de matéria negra e uma força física chamada energia negra que concorre para o expandir, lutando contra o coice da gravidade. Os cientistas acreditam que durante esse processo de expansão o nosso universo cria universos novos, assim como nascem pequenas bolhas na superfície de uma grande bola de sabão que estejamos a soprar por uma palhinha. Isso é a Árvore da Vida: vários universos semelhantes, mas diferentes, coexistindo; brotando uns dos outros.

Existem temas recorrentes no meu trabalho, certas ideias... Gosto de pensar que as minhas histórias são optimistas, mesmo assim. Acho que sou obcecado tanto por imagens de trevas como imagens de luz.

Lisboa é uma cidade normalmente associada à sua luz e é verdade que sempre se pressentiu Lisboa em toda a tua obra. Não só nos contos que fazes desenrolar aí, mas como uma personagem mais que aparece mascarada, como cidade túmulo ou como ruína graffitada. De onde provém esta paixão lisboeta?

Começou de um modo muito simples. Sempre gostei da cidade, mas quando me mudei para Campolide comecei a ler mais sobre a sua história. Principalmente, moveu-me o impulso de conhecer bem o lugar para onde tinha ido morar. Descobri que Lisboa tem uma história riquíssima, e que nem sempre é luminosa. A noção de Lisboa como “Cidade Branca” é totalmente falsa: Lisboa é vermelha e castanha, azul e amarela. É uma cidade pintada com uma paleta mediterrânica quente, mas escura. O Sol é muito enganador, basta subir até ao Castelo de São Jorge para o constatar, basta passear pelos bairros históricos para o aprender. Apesar disso, não considero Lisboa uma cidade “gótica”, como Londres. Nada disso. A escuridão de Lisboa é de outra ordem… Telúrica, talvez. A escuridão que se encontra numa cidade soterrada quando se quebra a casca estratigráfica. Lisboa é uma cidade soterrada; já o era antes do terramoto de 1755: ela é que ainda não se apercebeu disso.

Agora moro em Alcântara, o que não me surpreende, pois, de uma forma ou de outra, acabo sempre por ser “atirado para aí”. É um lugar de infância onde passei várias temporadas com os meus avós, é o sítio onde encontrei o meu primeiro emprego numa agência de publicidade e, agora, é o sítio onde moro. É muito relaxante sair de casa depois do jantar e ir passear a pé até ao Mosteiro dos Jerónimos. Onde mais eu poderia espreitar pela janela e ver mais de quinhentos anos de história debaixo do nariz? É um privilégio!

Como sabes, gravei um spoken-word sobre Lisboa: é um dos meus trabalhos preferidos! Lisboa nunca me sai da cabeça enquanto escrevo. Mesmo quando escrevo sobre cidades sem nome vou roubar panoramas a Lisboa.

Não obstante, esta “Conspiração” traz a Londres das neblinas até Lisboa, aflorando a exótica Tunísia. De certa forma, são todos ambientes propícios ao fantástico. Há alguma dimensão pessoal nos loci que escolheste? Ou foram exclusivamente ditames de correcção histórica?

A Conspiração dos Antepassados” é uma história sobre o encontro de Fernando Pessoa com Aleister Crowley, mas foi o segundo quem viajou para falar com o primeiro. Sempre considerei que esse encontro poderia servir de base para contar uma história interessante, mas apenas se fosse encontrada uma excelente razão para a ocorrência. Com isto quero dizer que o encontro real não foi muito interessante: Pessoa esteve com Crowley pouco mais que três breves vezes. Acho que Crowley gostou mais de Pessoa que Pessoa gostou de Crowley; a evolução da correspondência entre ambos é evidente. Crowley continuou a escrever cartas, inclusive uma na qual manifesta o desagrado em não ter respostas. Essa foi a última carta. Existe uma pequena circular dirigida a Pessoa que era missiva exclusiva dos membros da Argenteum Astrum, uma das fraternidades mágicas que Crowley organizou, mas dizer-se que Pessoa foi iniciado nessa ordem, ou outra, com base nesse documento é conjectural. A verdade é que ninguém sabe a verdadeira razão que fez Crowley vir a Lisboa em Setembro de 1930. A minha conclusão é que ele veio, simplesmente, em férias.

Estava a passar um mau-bocado e começavam-se a esgotar os países onde ele poderia estar. Já tinha sido proibido de entrar em Itália e na França… Acho que ele apenas quis mudar de ares e o facto de ter um correspondente em Lisboa, que ainda por cima falava inglês, pesou na decisão de vir a Portugal. Enquanto cá esteve não fez nada de traquinas: foi à praia, pintou uns quadros e passeou em Sintra e Lisboa. Só quando a namorada o abandonou é que ele procurou Pessoa com maior urgência para que o ajudasse a forjar o suicídio na Boca do Inferno. Foi nesse período que estiveram mais próximos e, logo em seguida, Crowley foi-se embora. Isto não é material suficientemente intrigante para se escrever um bom romance.

Nessa óptica, urgia encontrar um bom motivo para a viagem de Crowley e para o contacto com Pessoa. Percebi que teria de ser algo relacionado com a história de Lisboa, com a história de Portugal. Não fazia sentido escrever uma aventura onde Crowley se desloca a Lisboa em busca de um artefacto estrangeiro: tinha se ser algo especificamente português; e, ao mesmo tempo, europeu. Algo interdisciplinar que, sem deixar de ter um carácter português, comunicasse com outras histórias, com outras mitologias. A resposta era óbvia: o mito sebástico!

É a escolha perfeita porque consegue unir com elegância as mitologias de Pessoa e de Crowley e, também, servir de coluna a um romance onde eu possa falar de história e de magia. Faz sentido, do ponto de vista ficcional, colocar Crowley em busca de Pessoa porque ele era um profundo conhecedor do mito sebástico. Assim como na ciência, também na literatura as soluções mais elegantes são as melhores.

Atento o título e o teor da história que resolveste contar, receias que o público leitor possa confundir essa elegância de soluções, que muitas vezes separa a boa da má ficção, com os romances pseudo-históricos de Dan Brown ou Luís Miguel Rocha? Como encaras esse modelo literário que parece ter tomado de assalto o mercado editorial?

Penso que nas próximas décadas qualquer livro será comparado, em menor ou maior espessura, com “O Código Da Vinci”, e isso cinge-se ao impulso que os leitores têm de comparar as novidades com aquilo que já conhecem para se familiarizarem rapidamente com elas. Isso é válido para tudo, não apenas para os livros. O que se passa é que esse livro de Dan Brown foi, para o bem ou para o mal, um mastodôntico sucesso comercial. Que significa isso? Que, provavelmente, toda a gente comprou o livro, leu o livro ou ouviu falar dele. Já nem refiro aqueles que só viram o filme... Avaliando a questão desse prisma é óbvio que qualquer livro que seja editado daqui em diante será medido segundo a escala do “Código”; mas a um nível superficial. Acredito que a maioria dos leitores são mais inteligentes que isso e que são capazes de ler um livro sem necessidade dessas muletas. Romances com personagens históricas são publicados às dezenas todos os dias e já o eram antes de “O Código Da Vinci” ser editado. Pessoalmente, eu acho que o Dan Brown nunca imaginou a aberração na qual o seu livro se iria transformar e que ele apenas quis escrever um bom livro de aventuras inscrito na tradição de thrillers que o antecede.

Escrever sobre personagens históricas pode ser um exercício divertido. Eu já escrevi sobre Nietzsche e William Burroughs, adaptei o “Doutor Fausto” de Thomas Mann para banda desenhada, gravei um spoken-word sobre a história e a mitologia de Lisboa e guardo excelentes recordações do processo criativo desses trabalhos. Escrever sobre Fernando Pessoa e Aleister Crowley foi ainda mais divertido porque são, por mérito próprio, personagens maravilhosos. De qualquer das formas, eu não acho que “A Conspiração dos Antepassados” seja um romance histórico. O solo onde a narrativa é plantada é adubado com bastante rigor histórico e biográfico, claro, mas o enredo é completamente ficcionado. Depois, está recheado de elementos de literatura fantástica que costumam estar ausentes nesse género e, mais importante, tem uma intensidade, um dramatismo, que se relaciona com o facto de ter sido escrito como um livro de horror. Volto a dizer que é uma aventura negra que possui elementos de romance histórico, de thriller, de literatura fantástica e horror. Costumo dizer que acabar de escrever um romance é como ter um filho, mas quem tem um filho é muito mais sortudo porque é bastante fácil definir um recém-nascido: ou é menino ou menina. Agora... um romance?! É mais difícil definir o género de um romance. Dizer-se que um determinado título se inscreve na peugada do sucesso do “O Código Da Vinci”, e epígonos, somente porque fala sobre personagens ou acontecimentos históricos revela falta de imaginação. Trata-se de uma entidade complexa que, a fazer-lhe justiça, não pode ser classificada apenas com um rótulo. É preciso lê-lo, pensar sobre ele.

Falando em géneros, se há um género literário que, em Portugal, está em pior situação do que a ficção científica, é o Horror. Como autor, nas várias vertentes criativas, e como criador com uma “sensibilidade negra”, tens sido o único autor nacional a apresentar consistência no trabalho dentro do género. Há alguma razão para que o Horror não seja tão bem recebido entre nós?

Não sei porque é que não existem mais autores portugueses de ficção de horror ou de ficção científica, mas acho que existe um preconceito enorme dirigido a qualquer espécie de livro que tente contar uma história sem se preocupar com o simples relato de emoções, ideias ou expressões. Também existe um preconceito ainda maior voltado contra os livros que se tornem grandes sucessos comerciais: é um absurdo! A má qualidade de uma obra não se correlaciona com um número de vendas elevado nem um título que venda apenas uma centena de exemplares é, à partida, uma obra de arte. Existem livros que vendem bastante e que são muito bons e outros que não vendem nada, precisamente, porque são péssimos.

Acredito que o horror é, por excelência, o género da ruptura: é assim que eu o vejo. É um género que lida com os assuntos humanos através da transgressão, da ruptura, da noção de danação que advém do conhecimento de si. Todas estas ideias são bastante extremas e é natural que sejam, também, desconfortáveis para a maioria dos leitores. Não há nada de errado com isso... Enquanto leitor, ou espectador, gosto de obras que me provoquem, simplesmente porque gosto de aprender e as situações extremas são excelentes salas de aula para aprenderes um pouco sobre ti mesmo.

Portugal não tem géneros literários de origem, excepto o fenómeno do Novo Realismo que surgiu na segunda metade do século XX como literatura de denúncia política e social. Tudo aquilo que os nossos romancistas escreveram ou escrevem segue os modelos de ficção franceses ou anglo-saxónicos. Os “Vencidos da Vida” do século XIX copiavam os modelos deixados em aberto por romancistas ingleses como George Gissing... Acho que a nossa tradição literária se inclina para a comédia de costumes inaugurada pela Madame de la Fayette no século XVII e tudo o que se afasta desse cânone é, infelizmente, observado como sendo parte menor da literatura. Eu acho que um livro ou é bom ou não é bom, independentemente de fazer parte de uma literatura de género ou de fazer parte daquilo que é considerado pela academia como sendo a alta literatura.

Outra coisa que deve ter influenciado bastante o nosso modo de olhar para a arte deve ter sido o efeito que a tradição religiosa operou, e ainda opera. A inquisição só foi abolida em Portugal há cento e oitenta e seis anos!... Pensar que quase quatro séculos de repressão religiosa não influenciaram o nosso modo de olhar os livros é ingénuo: isso diz muito sobre o modo como a ficção de horror e a ficção científica são mal recebidas aqui e em outros mercados inseridos em países de fortes tradições religiosas.

Um autor que aborda frequentemente uma temática e uma imagética religiosa e escatológica é Clive Barker. Nota-se, na tua obra, uma marcada influência barkeriana. Se é certo que todos os autores buscam imitar os seus escritores favoritos (“retribuir-lhes o prazer da leitura”, como diria Borges), que outros autores ou cineastas te marcaram mais?

Quando escrevo não penso em nenhum autor. O que me interessa é capturar o tom da história que estou a escrever e isso é algo que apenas se aprende com a experiência da escrita, porque não pode ser ensinado de outra forma. Relaciona-se com a voz autoral, mas é uma coisa diferente. Acho que cada autor fala com uma voz distinta: as influências são os sotaques. É possível que tenha um pouco de sotaque barkeriano porque o Clive Barker é um dos meus autores preferidos.

Outro autor que gosto muito é o escritor alemão Günter Grass. Vi o filme “O Tambor”, de Volker Schlöndorff, que adapta o romance homónimo de Grass para o cinema, quando andava na segunda classe e fiquei muitíssimo impressionado. Era grotesco: nunca tinha visto nada parecido! Tinha montes de nudez e sexo, muito perverso, e era, igualmente, muito violento. Acho que a mistura de sexo com a violência, mais o ambiente negro e fantástico, me influenciou muito. Mais tarde li o livro e descobri que era ainda mais extremo que o filme.

Gosto de escrever sobre sexo e tento escrever sobre sexo como parte do horror e não como uma fuga ao horror. Acho que o sexo pode ser uma experiência aterrorizante: é um momento onde se está bastante vulnerável e onde se comunga com outro corpo, com outra mente. O sexo transforma-nos; e se não tivermos cuidado transforma-nos naquilo que não gostaríamos de ser.

Gosto de muitos autores diferentes, mas quando escrevo só penso em mim: naquilo que me está a ser sugerido pela narrativa e como isso afecta o tom que desejo imprimir nas palavras. Costumo ler em voz alta para ouvir o ritmo das frases e se eu não gosto do que ouço, mudo-as. Foi algo que trouxe para a escrita depois de ter gravado o CD “Lisboa”: tento que o texto funcione como uma história contada oralmente. Acho que isso fortalece muito o resultado final porque se acaba por conseguir algo hipnótico, harmonioso. Eu gosto bastante disso! Não tenho ouvido para a música, mas penso que tenho ouvido para as letras.

E jeito para o desenho. Se te pedissem que escolhesses um livro de Horror para adaptar a Banda Desenhada, qual escolherias? E porquê?

Não me lembro de nenhum, mas a BD tem grandes obras originais de horror. O autor japonês Junji Ito é um grande exemplo: “Uzumaki” é uma das melhores obras de horror que já li; é mesmo perturbante e o final é grandioso. Sobretudo é uma obra de horror pensada para ser uma banda desenhada, com cenas imaginadas para esse formato! Penso que as adaptações em BD de romances de horror não são grande coisa, mas as histórias originais de horror em BD costumam ser bastante eficazes.

Pode-se fazer coisas assustadoras em BD... Lembro-me do álbum de Alberto Breccia com adaptações de contos de Lovecraft, mas o Breccia era um mestre! É uma obra genial com soluções gráficas brilhantes. Já a biografia em BD sobre Lovecraft que o filho Enrique Breccia desenhou deixa muito a desejar.

Acho que gostaria de ver alguém adaptar os “Contos da Chuva e da Lua”, de Ueda Akinari, porque consiste em material muito visual e ficaria perfeito se representado com algum surrealismo, algum experimentalismo abstracto. Uma espécie de Mark Rothko meets Kaneto Shindo. Cor, ambiente onírico e violência gore: eu estaria na linha da frente para os autógrafos.

Terminado o primeiro romance, com vários volumes de contos e álbuns de BD no currículo, a seguir, que projectos?

Tenho muitas histórias que quero escrever, mas ainda não sei qual delas será o meu próximo trabalho. Tenho uma ideia em desenvolvimento para um grande romance sobre Lisboa, algo que quero muito fazer porque se trata de uma coisa que ainda não experimentei: um épico! Também tenho muitos argumentos de BD que quero tirar da gaveta, se encontrar desenhadores com vontade de trabalhar, porque adoro essas histórias e quero vê-las cá fora. Ainda tenho muitas ideias para contos. A verdade é que nunca consigo parar durante muito tempo. Sou um contador de histórias: sei o que sou e o que preciso de fazer para ser feliz e faço-o! Não perco tempo com coisas inúteis.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

CONTAGEM DECRESCENTE III: CONTOS DE TERROR DO HOMEM-PEIXE



Depois de amanhã, dia 5, o David Soares tomar de assalto as livrarias com o seu "A Conspiração dos Antepassados", no dia 6 de Setembro é a vez de a Chimpanzé Intelectual e o Cineclube de Terror de Lisboa darem a conhecer a antologia de contos de horror criada no âmbito do 1º Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa, MOTELx: CONTOS DE TERROR DO HOMEM PEIXE.

O volume conta com 11 contos de horror de autores portugueses, entre os quais se incluem o vencedor e a menção especial do júri do 1º Concurso de Contos de Terror do CTLX; os contos são ilustrados pela imaginação indomável do João Maio Pinto, que assina também a capa deste tomo.

A apresentação do livro decorrerá na Sala 2 do histórico cinema S. Jorge, pelas 19:00 e contará com a presença dos autores e do ilustrador; presença essa que de nada valerá sem a vossa, caros leitores.

Se passamos o ano em resmungos e choro amargo pela invisibilidade do género no panorama cultural, esta rentrée está de provocar taquicardia aos nossos coraçõezinhos carentes de horror.

domingo, 2 de setembro de 2007

CONTAGEM DECRESCENTE II: MOTELx



É já daqui a três dias que arranca o MOTELx, Primeiro Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa. A mostra, organizada pelo Cineclube de Terror de Lisboa, apresenta-se ambiciosa, buscando assegurar um nicho ao lado de outros festivais como o de Sitges, San Sebastian, o Frightfest de Londres (estes são os meus favoritos, não necessariamente os que a organização elenca no seu site) e mesmo o nosso doméstico Fantasporto.

É claro que, tratando-se de um primeiro esforço, a selecção dos títulos ficará a dever muito às idiossincrasias dos organizadores; e, não sendo uma mostra competitiva, não podemos esperar ante-estreias de nomeada; no entanto, a aposta na série Masters of Horror, e a presença do seu criador, Mick Garris, em Lisboa para os cinco dias do festival (5 a 9 de Setembro) não podem deixar de constituir um excelente presságio para a continuidade do projecto.
Que dizer, então das escolhas?

Antes de mais, saudar a abundância de documentários temáticos; a inclusão de retrospectivas de carreira de dois cineastas, Ivan Cardodo e Guillermo del Toro, cuja obra, pouco conhecida a do primeiro, internacionalmente louvada a do segundo, tem ao mesmo tempo o cunho dos seus países de origem e uma universalidade flagrante, ambas capazes de absorver as estruturas, modas e temáticas do horror comercial e mais mainstream, digerindo-as e regurgitando-as com uma frescura não só bem-vinda como verdadeiramente inovadora; por fim, correndo o risco de ofender os seus fãs, a ausência de títulos de J-Horror, mais um sinal de que o subgénero se aproxima do esgotamento.

De certa forma, é de esgotamento que temos que falar ao abordar a programação deste primeiro festival de cinema de horror de Lisboa, que surge numa altura em que o Fantasporto, festival de referência em Portugal, experimenta um sucesso de tal forma alargado que escancarou as portas à entrada de obras comerciais que apenas marginalmente tocam o Fantástico, deixando na penumbra outros títulos e realizadores que exigiam uma maior exposição.

Esgotamento, também, o das fórmulas do cinema de Horror de ampla distribuição, preso num círculo vicioso de remakes e repetições, que adormecem as faculdades críticas das audiências e potenciam a imbecilização de conteúdos [caso paradigmático o do J-Horror despoletado por Ringu (Hideo Nakata, 1998) que rapidamente degenerou numa repetição de fantasmas de cabelos negros e utensílios electrónicos amaldiçoados, até exalar o bafo final com a série de TV Prayer Beads (Masahiro Okano, 2004)].

Atentemos no facto de que os últimos três anos nos trouxeram remakes de The Texas Chainsaw Massacre (Hooper, 1974, Nispel, 2004), Halloween (Carpenter, 1978, Zombie, 2007-2008), The Hills Have Eyes (Craven, 1977, Aja, 2005), Dawn of the Dead (Romero, 1978, Snyder, 2004), anunciando-se para breve o remake de The Last House on the Left (Craven, 1971).

Sintomaticamente, quatro destes filmes e cineastas são abordados no documentário The American Nightmare (Adam Simon, 2000), que marca o arranque do MOTELx, pelas 21h30 do próximo dia 5 de Setembro, nas salas dos cinemas S. Jorge. Seguindo de perto a tese que Robin Wood expende no seu clássico The American Nightmare: Essays on the Horror Film (1979), Simon analisa de uma perspectiva sócio-cultural aquele seminal período de produção fantástica compreendido entre 1968 e 1977, e que, na opinião de ambos, apenas pôde emergir pela concentração, nesse intervalo, de vários acontecimentos chave do século XX americano: a guerra no Vietnam, o Massacre de Kent State, Woodstock, Altamont, o movimento pelos direitos cívicos e o pico da revolução sexual. Foi um período de intensa e furiosa criatividade por parte de um grupo de jovens realizadores como Romero, Carpenter, Craven, Hooper, Cronemberg (todos eles entrevistados no documentário) e outros mais que, praticamente sozinhos, e sem o auxílio da maquinaria pesada dos grandes estúdios, redefiniu o género do Horror, reduzindo o mal à escala niilista do humano [daí a exclusão do âmbito do documentário, de outros títulos seminais contemporâneos como The Exorcist (Friedkin, 1973) ou Jaws (Spielberg, 1975)], como que procurando reflectir aqueloutro mal (político, económico-ambiental e social) que viam à sua volta.

Neste particular, Simon é certeiro na identificação que faz de imagens de corpos queimados e a serem arrojados para lixeiras em filmes como The Crazies (Romero, 1973) ou Rabid (Cronemberg, 1976), com outras idênticas de massacres no sudeste asiático; ou cenas de zombies a avançar cambaleantes pelas ruas, com jovens que se agitam frenéticos ao ritmo do disco sound.

Foi um período breve, sangrento e brutal, que uma dezena de realizadores resolveu comentar e perpetuar num grupo de obras que sobressaem do plano contínuo do género como picos nevados de um tapete de nuvens… e todos sabemos como a neve ao sol do ocaso, adquire a tonalidade do sangue.

A escolha de The Americam Nightmare para a abertura do festival funcionará – assim espero – como um aliciante manifesto do tipo de cinema de Horror privilegiado pelos organizadores.